“Visto a partir da nossa época, é o ano de
1979 que deve ser qualificado de data-chave do final do século XX. De um triplo
ponto de vista, foi nessa época que se entrou na situação pós-comunista: com o
princípio do fim da União Soviética (após a invasão do Afeganistão pelo seu
exército), com a chegada ao poder de Margaret Thatcher e com a consolidação da
revolução islâmica no Irão, sob a liderança do aiatola Khomeini.
O chamado neoliberalismo, no fundo, mais não
foi do que um novo cálculo dos custos da paz interna nos países de «economia
mista» capitalista e social-democrata de estilo europeu ou do «capitalismo
regulado» à maneira dos Estados Unidos. O resultado dessa auditoria foi uma
conclusão inevitável: o partido dos chefes de empresa ocidentais pagara muito
caro pela paz social, sob a pressão política e ideológica provisória do Leste.
Considerou-se que chegara a hora de tomar medidas para reduzir os custos,
medidas que, pela sua tendência, transferiram o centro de gravidade do primado
do pleno emprego para a prioridade da dinâmica empresarial.”
(…)
“O quarto de século que se seguiu à
“revolução do mercado” concebida por Keith Joseph e implementada na
Grã-Bretanha por Margaret Tatcher em 1979 (que logo se espalhou por todo o
continente e por grande parte do mundo ocidental, em especial na América de
Reagan, 1981-1988, e de Clinton, 1993 – 2001) mostrou com que precisão esses
diagnósticos correspondiam à situação e a radicalidade das consequências que
dela se extraíam. Tal manifesta-se com maior clareza na duradoura tendência do
neoliberalismo – a longa marcha para o desemprego de massa que marcou o ritmo
do ponto de vista sociopolítico. A nova situação levou ao que era impensável
até então: as populações das nações europeias aceitaram, mais ou menos sem
luta, taxas de desemprego de 8% a 10% ou mais – até mesmo as reduções cada vez
mais sensíveis das prestações do Estado social não chegaram até agora para
reacender as chamas da luta de classes. As relações de soberania inverteram-se
de um dia para o outro: as organizações dos trabalhadores não têm muita coisa
na manga para exercer a ameaça efectiva, pois o privilégio da ameaça passou
quase exclusivamente para o lado dos empresários. Estes podem agora afirmar de
maneira bastante plausível que tudo vai ser ainda pior se a parte adversa se
recusar a entender e atender as novas regras do jogo.”
Peter
Sloterdijk (2006), Cólera e Tempo.
Relógio D’Água. 2010. Pág. 253-254
***
Vivemos já o tempo em que é o “partido
dos chefes de empresa ocidentais” que mais ordena. De acordo com Sloterdijk,
este domínio tornou-se total quando a alternativa que se podia contemplar a
Leste deixou, de um dia para o outro, de existir. De acordo com o filósofo, um
dos inesperados efeitos colaterais do comunismo soviético foi manter o “partido
dos chefes de empresa ocidentais” em sentido, face à possibilidade ameaçadora
da classe trabalhadora abraçar o sistema alternativo que se vislumbrava a
Leste, caso não fossem satisfeitas as condições por ela ambicionadas, entre as
quais o pleno emprego e a construção de um Estado social. Perante tal
possibilidade, os “chefes de empresa” anuíram frente aos trabalhadores na
concessão de tais condições e esse foi um factor que possibilitou a construção
de um Estado social europeu. Quando a queda do bloco de Leste, por fim, afastou
do horizonte essa possibilidade de secessão, o “partido dos chefes de empresa
ocidentais” alterou o seu posicionamento e iniciou o desmantelamento do Estado
social. Nas palavras do filósofo “o partido dos chefes de empresa ocidentais”
apercebeu-se que afinal estivera a pagar um preço demasiado elevado pela paz
social, pois o sistema que se vislumbrava a Leste afinal não era mais do que uma
espécie de fachada. Não são de estranhar pois, as palavras de Margaret
Thatcher, essa cabecilha do partido “dos chefes de empresa ocidental”, de que
“Não há alternativa”. Foi nesse momento que o Bloco de Leste e em particular a
União Soviética começavam a dar sinais de forte de erosão – a dificuldade em vencer
no Afeganistão, por exemplo - anunciadores de um futuro desmoronamento. Ufanava-se
então Thatcher, dizendo que já não havia alternativa pelo que agora o seu
partido teria rédea solta para quebrar a espinha ao forte movimento sindical
britânico e doravante poderia dar início ao desmantelamento do Estado social e
à prossecução de políticas que privilegiavam a dinâmica empresarial em
detrimento do primado do pleno emprego, até ai vigorante. O resultado da
política neoliberal rapidamente se notou com o aumento galopante do desemprego,
da pobreza e das desigualdades sociais. A sociedade - que na óptica de Thatcher
era afinal coisa que não existia, pois para ela apenas haviam indivíduos ou
grupos de indivíduos - tornou-se cada vez menos solidária, sendo a liberdade
individual e o sucesso empresarial erigidos a valores fundamentais. O
individualismo (o grande opositor do colectivismo) tornou-se o caldo de cultura
destas sociedades dessolidarizadas.
Em Portugal, qual Albânia do
Ocidente, registou-se sempre um hiato de décadas entre as tendências políticas
que vigoram no estrangeiro e as que se fazem sentir no país. No entanto a ideia
prevalecente entre a elite indígena de que o que vem de fora é que é bom,
melhor e mais moderno, leva a que os nossos conterrâneos, ilustres iluminados e
estrangeirados, acabem sempre por copiar essas modas ou tendências, ainda que
algumas, entretanto, já tenham passado de moda lá fora. Isto para dizer que o
neoliberalismo chegou tarde e a más horas a Portugal, mas chegou
implacavelmente, primeiro de forma insinuante pela mão de José Sócrates que lhe
preparou bem o terreno, e depois pela mão de Passos Coelho. Mas, na verdade, parece
que o neoliberalismo ainda não passou de moda lá fora. Que o diga David Cameron
do Partido Conservador, no poder no Reino Unido.
Hoje é o “partido dos chefes de
empresa ocidental” e pior do que esse, o partido de Wall Street, que dominam o mundo ocidental, para não dizer o
mundo inteiro*.
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Notas:
(*) - Ainda que hoje também existam, como
sabemos, "partidos dos chefes de empresa" orientais e empresas estaduais
chinesas, vivendo estas sob um regime de partido único.