Ora, a calma da paz incita ao esquecimento, ao passo que o ruído e o furor dos conflitos jamais abandonam a memória.
Michel Serres*
(*) Michel Serres, Antes é que era bom! Guerra & Paz, 2018, p. 15
Ora, a calma da paz incita ao esquecimento, ao passo que o ruído e o furor dos conflitos jamais abandonam a memória.
Michel Serres*
(*) Michel Serres, Antes é que era bom! Guerra & Paz, 2018, p. 15
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O fim é certo como o destino.
Ferdinand Addis, Roma, História da Cidade Eterna, Crítica, 2022.
⭐⭐⭐⭐⭐
Eis-nos
lançados nas ruas de uma cidade antiga. Tão antiga que se diz eterna. Ali nos
cruzamos com personagens de todas as eras. Assistimos às assembleias entre a
plebe, frente ao templo de Júpiter, no topo do monte Capitolino. Vimos passar César
na sua biga triunfal e o escravo que, atrás dele, de vez em quando se lhe assoma ao ouvido para lhe murmurar que é apenas um homem, à passagem entre a multidão que o aclama como se fosse um deus.
Ali
nos cruzámos com Marco Aurélio, Séneca, Ovídio e Nero e muitos mais. Mas não
ficámos apenas naquele tempo romano. Acabamos por atravessar os tempos,
naquela cidade. Chegámos a combater entre os camaradas de Garibaldi. Também ali deparámos
com Mussolini, já no século XX, uma besta sexual com o QI de um sapo. Ele e a
sua última amante, executados e dependurados. E Fellini e a sua Dolce Vita.
A
história de Roma é também a história da civilização Ocidental. Está embrenhada
nela. Vindos da recém-descoberta América, os marinheiros de Colombo inauguram a
propagação da sífilis pela cidade das prostitutas. Isto para dizer que também
as longínquas descobertas ecoaram nas ruas e nas vidas dos cidadãos de Roma.
Muito
haveria para contar dos ilustres personagens que desfilaram na história da
cidade.
Ferdinand
Addis consegue colocar-nos lá, no espaço e no tempo. Viajamos por Roma desde a sua origem até ao século XX e com os romanos. Somos espectadores, somos participantes.
Um
livro excelente, repleto de acção e movimento, dinâmico, que se lê como um
romance.
*****
Uma
passagem:
«Enquanto
os godos recuavam, as balistas nas muralhas entraram em acção. Estas eram uma
espécie de bestas gigantescas: máquinas de arremesso de flechas com dois braços
equipados com molas de torsão, capazes de disparar virotes curtos e grossos a
distâncias além do que a vista alcançava. Estas máquinas aterrorizavam os godos.
Na Porta Salária, por onde a velha estrada do sal saía da cidade, um nobre godo
que se afastou demasiado das suas linhas foi atingido por um virote disparado
por uma equipa de balista com a pontaria afinada. O virote trespassou-lhe a
couraça e pregou-o a uma árvore, deixando-o a baloiçar-se e a contorcer-se,
enquanto os godos mais próximos, demasiado assustados para o ajudarem,
tropeçaram uns nos outros com a pressa de ficarem fora do alcance.»
Ferdinand Addis, Roma, História da Cidade Eterna, Crítica, 2022, pp. 244-245
Hubert Reeves em Moscovo, 1964:
Dia livre em Moscovo. A minha partida para Erevan
(pronunciar «Iérévanne») é no dia seguinte. A multidão moscovita fascina-me.
Erro muito tempo no meio dessas pessoas todas. A variedade de indumentárias e
de rostos lembra-me a imensidão do território da URSS, que vai da Ucrânia ao Kamchatka,
do mar de Barents ao Cáspio.
Estamos em Março. Neva com abundância, caem flocos
espessos na cidade. Os passeios largos da avenida estão repletos de gente. Sigo
a multidão molhada, que progride cada vez mais devagar. Durante longos minutos
permanecemos parados. Estou preso num engarrafamento de peões! O que se passa?
Tento imaginar o que bloqueia a este ponto o nosso
avanço. Em seguida tudo se explica: vejo subitamente três matronas que varrem
vigorosamente a neve suja e molhada do passeio para a sargeta, sem a mínima
consideração pelos transeuntes. Tentando não ser salpicados, eles esperam o
momento propício para atravessar a correr o sítio perigoso, formando assim um
engarrafamento de peões!
O que mais me desorienta é a total ausência de protestos.
Em Paris ou Montréal ter-se-ia chegado a um motim. A resignação é muda.
Compreendo então o sentido profundo da palavra Nietchevo tantas vezes
associada à população russa: «Não faz mal».
Hubert Reeves (1)
TTTT
O povo russo ainda não realizou o seu 25 de Abril. Tal como
o nosso, é um povo resignado. Falta-lhe o ímpeto. Talvez lhe falte, como nos
faltava, o impulso militar de alguns capitães e o apoio de alguns generais.
O que mais me desorienta é a total ausência de liberdade.
Não há outra forma de derrubar o regime totalitário e
extorsionário que os priva da paz, em todas as acepções da palavra: apenas
a revolução.
_______________________________
(1) Hubert Reeves, Já Não Terei Tempo – Memórias, Gradiva, 2010, pág. 191.
Cinco estrelas. 1025 páginas em 20
dias. Não aconselhável a menores de 18 anos nem a pessoas hipersensíveis ou com
os nervos em franja. Bolinha vermelha no canto superior direito. Demasiado gráfico
e, por vezes, pornográfico, por vezes com uso recorrente do baixo calão. O horror
dos desaparecimentos, das moscas e dos cadáveres violados. Onírico, misterioso,
diabólico. Prende o leitor. A ler com muita cautela, ou a não ler.
Ali se encontram Poe, no suspense em que nos coloca, McCarthy no ambiente hostil do Meridiano de Sangue, Eco e o ambiente misterioso do Nome da Rosa nos diabólicos episódios do Penitente, profanador de igrejas, e David Lynch, que Bolaño refere, e muitos muitos outros que escapam ao nosso alcance, ou não, e que seriam demasiados para aqui enumerar.
***
Três dias depois da profanação da Igreja de Santa
Catalina, o Penitente introduziu-se a altas horas da noite na Igreja de Nuestro
Señor Jesuscristo, no bairro da Reforma, a igreja mais antiga da cidade,
construída em meados do século XVIII, e que durante algum tempo serviu de sede
episcopal de Santa Teresa. No edifício adjacente, situado na esquina das ruas
Soler e Ortiz Rubio, dormiam três padres e dois jovens seminaristas índios da
etnia papago que frequentavam os estudos de Antropologia e História na
Universidade de Santa Teresa. (…) De repente, um barulho de vidros
partidos acordou-o. Primeiro pensou, coisa estranha, que estava a chover, mas
logo se apercebeu de que o barulho provinha da igreja e não de fora,
levantou-se e foi investigar. Quando chegou à reitoria ouviu gemidos e pensou
que alguém tinha ficado fechado num dos confessionários, coisa totalmente
improvável pois as portas destes não fechavam. O estudante papago,
contrariamente ao que se dizia das pessoas da sua etnia, era medroso e não se
atreveu a entrar sozinho na igreja.
Roberto Bolaño, op. cit., p. 426.

⭐⭐⭐⭐⭐
«A incompreensibilidade do nosso novo cosmo parece-me, em
última análise, a razão para o caos da arte moderna. Sei pouco mais do que nada
sobre ciência, mas passei a minha vida a estudar a arte, e estou completamente perplexo
com o que se passa hoje. Às vezes gosto do que vejo, mas quando leio os
críticos modernos percebo que as minhas preferências são puramente acidentais.
Contudo, no mundo da acção algumas coisas são óbvias - tão
óbvias que hesito em repeti-las. Uma delas é a nossa dependência cada vez maior
das máquinas. Deixaram de ser ferramentas e passaram a dar-nos instruções. Da
metralhadora Maxim ao computador, são, na sua maior parte, meios através
dos quais uma minoria consegue subjugar os homens livres.
Outra das nossas especialidades é a nossa ânsia de destruição. Com a ajuda das máquinas, demos o nosso melhor para nos destruirmos em duas guerras, e ao fazê-lo libertámos uma enxurrada de maldade, que as pessoas inteligentes tentaram justificar com o elogio da violência, «teatros de crueldade» e por aí adiante. Juntemos a isto a memória dessa companheira sombria que está sempre connosco, como o reverso do anjo da guarda, silencioso, invisível, quase irreal – e, no entanto, inquestionavelmente presente e pronta a afirmar-se ao toque de um botão, e teremos de reconhecer que o futuro da civilização não parece muito risonho.»
Kenneth Clark, op. cit., pp. 409-411.
*****
Se procura o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, enfim, a arte moderna e pós-moderna, não os encontrará por aqui. Esses movimentos artísticos não se contam entre as grandes contribuições da Europa para a Civilização. A arte moderna está num caos. As palavras de Kenneth Clark sobre a actual situação da arte ressoam a decadência de uma civilização e até da Civilização. Estaremos já a viver uma Era crepuscular? Muitas são as vozes a anunciá-lo. A de Kenneth Clark é uma delas. São demasiadas vozes para que fiquemos impávidos e serenos, sem partir para a acção.
Mas talvez já seja tarde. Os novos bárbaros já estão na cidade. E não, não são os imigrantes, nem os refugiados.
Miguel Esteves Cardoso
“A Causa das Coisas” in A Causa
das Coisas, Círculo de Leitores, 1987, p. 412
João Maurício Brás, O Atraso Português, Modo de Ser ou
Modo de Estar, Guerra & Paz, 2022
µµµµµ
Um livro que todos os adultos portugueses, sejam jovens, maduros ou velhos (sim, há jovens que são adultos e adultos que são jovens, embora a infantilização dos adultos prolifere nos nossos tempos, na civilização ocidental: adultos infantilizados, para não dizer imbecilizados, é, aliás, coisa que não falta) deviam ler para saberem em que país estão metidos, em que povo estão metidos e por que pensam como pensam. E por isso mesmo, um livro que os responsáveis (e irresponsáveis) políticos deviam ler, os que nos governam e os que nos desgovernam.
Desde a Causa das Coisas (um o
melhor livro de Miguel Esteves Cardoso) que não liamos com tanto gosto um livro
sobre o nosso país e sobre nós, os portugueses, embora Miguel Esteves Cardoso
tenha optado pelo humor para nos retratar. João Maurício Brás segue outros caminhos,
da Filosofia à História, passando pela Política, Economia, Sociologia,
Literatura, e por aí fora, apoiando-se em autores gigantes (entre os quais, os nossos gigantes),
com destaque para Antero de Quental. E a sua escrita é clara e acessível ao
comum dos mortais.
Um livro que responde à questão: por que temos a mentalidade que temos? Porque é uma questão mental, aquela que temos connosco mesmos. João Maurício Brás, descansa-nos logo à partida: o atraso português não é ôntico, é estrutural, é mental (mentalidade herdada de séculos e ainda por nós alimentada, sem quase nos apercebermos). Estamos efectivamente presos a uma teia mental da qual é muito difícil libertar-nos, principalmente se não o reconhecermos. Difícil, mas não impossível. As mentalidades também mudam, mas demoram tempo a mudar.
Voltaremos a este livro.
Do livro:
Não há um modo de ser português, identificado num antes,
num agora e para sempre.
Brás, op. cit.,
pág. 80
O atraso como resultado de
características ônticas que explicariam a identidade de alguns povos teve o seu
tempo áureo.
Brás, op. cit.,
pág. 81
O destino de cada povo é, em
muito, o que ele quer e consente que seja, a identidade de um país também é a ideia
de futuro que dele se tem e o que cada um está disposto a fazer.
Brás, op. cit.,
pág. 16
A intransigência para com os políticos e os média, mas
também para connosco, é outro passo incontornável para invertermos essa tendência
de persistirmos em aprofundar a nossa miséria.
Brás, op. cit.,
pág. 16
µµµµ
Boa leitura, para quem gosta de escaladas. Nucleares é claro. Para lá já estamos a caminhar, não é verdade?!
Impensável, diz Guterres. Pensável, dizem Ackerman e Stavridis. Pensaram e escreveram.
Esperemos que não passe da ficção científica.
Afinal foi Huntington quem tinha razão e não Fukuyama.
Do seu livro de 1996:
No entanto, aquela eleição [a presidencial de 1994] levantou a questão de a parte ocidental do país se separar da Ucrânia que estava mais perto da Rússia. Alguns russos concordariam. Como disse um general russo, «em cinco, dez ou quinze anos, a Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia Oriental, voltará para nós. A Ucrânia Ocidental que vá para o inferno!» Contudo, essa Ucrânia, uniata e ocidentalista, só seria viável com uma forte e eficaz ajuda ocidental. Porém, tal ajuda só será provável se as relações entre o Ocidente e a Rússia se deteriorarem gravemente para se assemelharem às que existiam no período da guerra fria.
Samuel Huntington, op. cit, pág. 196.
| Richard Rogers (1933-2021) |
Um destes dias morreu o famoso arquitecto Richard Rogers e,
lamentavelmente, não tive tempo de postar uma homenagem, na hora, a esse grande
homem do qual conhecia tão pouco: o Domo do Milénio, em Londres e, mais antigo, o
Centro Georges Pompidou, em Paris, eram obras suas. Fiquei a saber há pouco.
Mas era outra a sua obra que me era familiar: o livro Cidades para um
Pequeno Planeta, da editora Gustavo Gili (GG), de 2001.
A criação da moderna cidade
compacta exige a rejeição do modelo de desenvolvimento monofuncional e a
predominância do automóvel. A questão é como pensar e planear cidades, onde as
comunidades prosperem e a mobilidade aumente, como buscar a mobilidade do cidadão,
sem permitir a destruição da vida comunitária pelo automóvel, além de como
intensificar o uso de sistemas eficientes de transporte e reequilibrar o uso
das nossas ruas em favor do pedestre e da comunidade.
Richard Rogers, op.
cit., pág. 38
Nitidamente, as preocupações de Richard Rogers eram a
prosperidade da comunidade, a mobilidade do cidadão, a vida comunitária, o uso
da rua em favor do pedestre e da comunidade. A comunidade, agora refugiada de
si mesma no automóvel, nos edifícios de escritórios, nos centros comerciais e
nos condomínios fechados. A comunidade fragmentada empobreceu a vida na cidade com
largos segmentos que a compõem a abandonarem a vida de rua, a vida na rua. A
vida saiu da rua. Passam por ali automóveis e, ocasionalmente, um pedestre.
Mas havia outras preocupações:
Acredito piamente na
importância da cidadania e na vitalidade e humanidade que ela estimula. A
cidadania manifesta-se em gestos cívicos planeados e de grande escala, mas
também em gestos espontâneos e de pequena escala. Juntos, eles criam a rica
diversidade da vida urbana.
Richard Rogers, op.
cit., pág. 15
A necessidade de promover a cidadania que se sente escapar
das nossas cidades com a perda de solidariedade e o avanço da indiferença.
Vivemos em sociedades de indiferença (já o disse o Papa) e os indiferentes
somos nós para com os quais os outros, os nossos concidadãos, se isso se lhes
pode chamar, também se manifestam indiferentes. E parecemos todos indiferentes
à nossa indiferença. Nem nos damos conta. Não somos apenas diferentes, somos
indiferentes, e nisso somos iguais. A indiferença é inimiga da diversidade. E
não há como escapar a isto. Como não poderíamos ser indiferentes aos que chegam
a clamar por refúgio e abrigo, e que procurarão chegar cada vez mais, se somos
indiferentes connosco?
Bem-vindos à cidade da indiferença, o que equivale dizer, à
sociedade da indiferença. Era, portanto, necessário, para Richard Rogers, reanimar
a cidadania nas ruas, nas cidades e nas sociedades, a cidadania em cuja
importância Richard Rogers acreditava piamente.
O padrão-anti social do
crescimento segmentado, causado por um desenvolvimento orientado apenas para o
lucro, mostrou-se inadequado às necessidades da cidade.
Richard Rogers, op.
cit., pág. 116.
Parece que não aprendemos nada.
Até sempre Richard Rogers.
«Mas nem será necessário o pior
cenário do aquecimento global para provocar devastações suficientemente graves
que sacudam a sensação habitual de que, à medida que o tempo avança a vida melhora
de uma forma inelutável. Essas devastações, muito provavelmente, vão chegar
depressa: novas linhas costeiras recuadas, com cidades afundadas à sua frente;
sociedades desestabilizadas a atirarem com milhões de refugiados para
sociedades vizinhas que já sentem o estrangulamento dos recursos a
esgotarem-se; as últimas várias centenas de anos, que muitos no Ocidente viram
como uma linha simples de progresso e prosperidade crescente, transformadas no
prelúdio de um sofrimento climático massivo.»
David Wallace-Wells, A Terra Inabitável,
Lua de Papel, 2019. p. 255
Bruno Patino, A
Civilização do Peixe-Vermelho, Gradiva, 2019, pág. 112.
Basta ver como até na academia, particularmente nas
ciências sociais e humanas, o conhecimento é ativismo e ignorância. Os estudos
culturais, de género, pós-colonialismos, literaturas disto e daquilo, estudos críticos
e mesmo algumas derivas mais loucas e disparatadas que tanto podem ser estudos homossexuais,
guionismo pós-pornografias, seminários de masturbação feminina como promoção da
diversidade, os mais de cem géneros, as monomanias libertistas, a afro-matemática,
as denúncias sobre geografia machista, seriam apenas hilariantes, se não fossem
levadas a sério.