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segunda-feira, outubro 23, 2023

A moral dos superiores

«A memória do Holocausto torna mais pesada a mão dos ocupantes israelitas dos territórios árabes: mantém-se viva a recordação da rentabilidade das deportações de massa, as rusgas, a tomada de reféns e os campos de concentração. À medida que a história avança, a injustiça tende a ver-se compensada por uma outra injustiça acompanhada pela inversão dos papéis. Só os vencedores, enquanto a sua vitória permanece incontestada, consideram (ou deformam) essa compensação como triunfo da justiça.  A superioridade moral é vezes de mais a moral dos superiores.»

Zygmunt Bauman (1995)

Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna, Relógio d’Água, 2007, p.188.

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Não se deve responder à barbárie com a barbárie. A lei de talião, no caso do conflito israelo-palestiniano, não se deve aplicar, caso contrário também se tornará bárbaro quem a aplica. O mais forte tem o dever moral de ponderar a resposta à agressão, quando essa resposta implicar a perda de vidas humanas inocentes (crianças, principalmente), ainda que tenha o direito de se defender contra a agressão, e ainda o direito e o dever de tudo fazer para libertar os reféns, com vida e saúde, se possível. Esta é a nossa posição, nesta fase do conflito israelo-palestiniano, que não se iniciou no dia 7 de Outubro, ainda que nesse dia os terroristas (sim, terroristas e não “combatentes”) tenham agredido barbaramente os israelitas. Se um dos inimigos não parar a espiral de violência, então a barbárie não terá fim.

domingo, maio 27, 2018

A primeira grande distopia para a era da modernidade líquida

A Possibilidade de Uma Ilha, de Houellebecq é a primeira grande distopia, até agora sem rival, destinada e feita sob medida para a era da modernidade líquida, desregulamentada, obcecada pelo consumo e individualizada.

Zygmunt Bauman


in Bauman, Zygmunt; Donskis, Leonidas, Cegueira Moral, Relógio D’Água, 2013, pág. 253.




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A palavra de Bauman levou-me a procurar o dito livro. Foi agora publicado pela Alfaguara. Entre os alfarrabistas da Feira do Livro, nenhum tinha a antiga edição da Dom Quixote que esperava adquirir por um preço módico. Rendido, trouxe a da Alfaguara.

De Houellebecq já lera, em tempo recorde, Submissão. Iniciada logo depois a leitura do Mapa e o Território, foi parada a meio. Houellebecq é um grosseiro provocador. O que pensar daquele que caracteriza uma mulher feia em idade de menopausa, jocosamente, como sendo uma “vagina inexplorada”? Bastou. Nos seus livros tropeçamos por aqui e por ali em má-criação, baixezas obscenas e pornografia grosseira, em muito mais do que apenas “vergonhas” à mostra. Tentativas de provocação a quem se deixa provocar, pois claro. Procurar escandalizar: uma trivial estratégia adoptada por escritores que se querem fazer notar, nobéis e tudo. E quando pega resulta. Ainda assim os romances de Houellebecq não deixam de tocar em coisas elevadas.

No futuro, quando as artes destes tempos, entre as quais a literatura, forem enquadradas num determinado movimento literário artístico bem definido como agora são, por exemplo, as obras do Romantismo ou do Realismo, uma das características que por certo as cunhará será essa perda de referência entre o que é elevado e o que é baixo, entre as grandezas e as baixezas. Hoje tudo é colocado no mesmo plano e no mesmo saco. As grandezas e as baixezas são despudoradamente reveladas ao mesmo nível. Mas foram as baixezas que ganharam relevância, tendo sido içadas à altura das grandezas. Uma obra como a de Houellebecq seria impensável nos tempos queirosianos, por exemplo. Na obra de Houellebecq não há “mantos diáfanos da fantasia”. Ali não há fantasia nem mantos.

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

É bem sabido que todas as vedações têm dois lados.

«É bem sabido que todas as vedações têm dois lados. Dividem um espaço uniforme em exterior e interior. Mas os que se encontram de um dos lados da vedação vêem o exterior onde os que estão do outro lado vêem o interior. Os residentes dos condomínios isolam-se por meio da sua vedação, do caos e da dureza que tornam a vida urbana desconcertante, desagradável e vagamente ameaçadora, e ficam reclusos num oásis de calma e segurança. Ao mesmo tempo, contudo, separam os outros dos lugares decentes e seguros, cujos valores estão dispostos a defender encarniçadamente, e abandonam-nos às mesmas ruas sórdidas e miseráveis de que fugiram sem olhar a despesas. A vedação separa o ghetto voluntário dos ricos e dos poderosos dos inumeráveis ghettos forçados em que os deserdados vivem. Para os que fazem parte do ghetto voluntário, os restantes ghettos são lugares onde nunca porão os pés. Para os habitantes dos ghettos involuntários, em contrapartida, o território a que estão confinados (ao verem-se excluídos de todos os outros lugares) é um espaço do qual se encontram proibidos de sair.»

Zygmunt Baumman, Confiança e Medo na Cidade, Relógio D’Água, 2006

sábado, janeiro 14, 2017

Segura e murada

Para Bauman o progresso das sociedades e das épocas oscila como um pêndulo, não sendo unidireccional (evitaria ele, dessa forma, a antiga visão cíclica das coisas? A Roda da Fortuna?). Os estímulos e as energias subjacentes que movem a sociedade e a forma como esta se organiza politicamente e progride, são por um lado o desejo de mais liberdade e por outro, o desejo de mais segurança (tal como um trade off entre liberdade e segurança). Por vezes viveríamos sob o domínio da liberdade, por outras viveríamos sob o domínio da ordem “coercivamente imposta”, mas almejada. Os efeitos dos excessos de liberdade empurrariam as sociedades em direcção à procura da ordem, e os excessos da ordem “coercivamente imposta” levariam à fuga das sociedades em busca da liberdade. E assim constrói Bauman a sua dinâmica evolutiva das sociedades modernas. Entre a liberdade e o totalitarismo.

Para dizer a verdade, e curiosamente, o autor não coloca como motor do progresso social estímulos positivos como o desejo de obter algo – o desejo de obter liberdade, ou o desejo de obter segurança. Apresenta antes como energia maior para a evolução social dois estímulos negativos: o ódio e o medo. É certo que o medo paralisa, mas o medo também pode fazer correr. E assim correm as sociedades: ao sentir do medo.

Com base neste "modelo", Bauman, acaba por dividir o progresso histórico ocidental das sociedades, nas seguintes épocas:

Do final do século XIX ao início dos anos 30 – “Longa marcha para a liberdade”: diz ele que nessa época, “no final do século XIX as bibliotecas estavam lotadas de estudos eruditos escritos pelos Fukuyama de então, representando a história como uma longa marcha rumo à liberdade” (Bauman & Bordoni: 2016: pág. 87). A Iª Grande Guerra teria resultado de um excesso de liberdade e o seu prelúdio foram os árduos anos que se lhe seguiram até à Grande Depressão.

Dos anos 30 a meados dos anos 70 – foram os anos do ódio e do medo da liberdade. As sociedades passaram a almejar a ordem, e foram de tocha na mão atrás dos ditadores e do totalitarismo. Após a IIª Guerra Mundial, é que advieram os trinta gloriosos anos (aproximadamente entre 1945 e 1975): “Não obstante, os sonhos de menos caos e mais ordem só sobreviveram ao seu prelúdio totalitário durante os «trinta gloriosos anos» de guerra declarada contra a miséria, o medo e a privação humana, sob as bandeiras do «Estado Social»”(Bauman & Bordoni: 2016: pág. 87-88), que não deixa de ser um Estado ordenador, portanto.

De meados dos anos 70 ao final da primeira década do século XXI – voltou agora a ser a procura de liberdade o motor do progresso social, parecendo a civilização ter esquecido os efeitos dos excessos da liberdade. Resultado: caiu na orgia consumista, na degradação ambiental e na crise do crédito, que tão bem conhecemos em 2008 e anos seguintes. E depois o pêndulo volta a balançar. E para onde penderá ele agora? Aqui Bauman é profético, atendendo a que o seu escrito data de 2014:

Estaremos a aproximar-nos, pela segunda vez na história recente, de uma condição madura para ser explorada por demagogos que sejam suficientemente ocos, iludidos e arrogantes para prometerem um atalho para a felicidade; e para traçarem um caminho de volta ao paraíso da segurança perdida, na condição de renunciarmos às liberdades que já são odiadas e muito mal recebidas pelos seus possuidores, e assim também à nossa autodeterminação e à afirmação dos nossos direitos?” (Bauman & Bordoni: 2016: pág. 89)

Zygmunt Bauman, 2014

Volto a repetir:

Demagogos que sejam suficientemente ocos, iludidos e arrogantes para prometerem um atalho para a felicidade; e para traçarem um caminho de volta ao paraíso da segurança perdida, na condição de renunciarmos às liberdades que já são odiadas e muito mal recebidas pelos seus possuidores?

Isto lembra alguma coisa.

Leio Trump, leio Farage, leio Le Pen, leio Putin, leio Erdogan. Leio outro mundo e outra Era que se avizinha, agora sob a sombra do ódio e do medo à liberdade. Leio uma nova entrega a uma outra ordem, que os ilusionistas nos prometem, segura e murada.

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Referência: Bauman, Zygmunt;  Bordoni, Carlo, Estado de Crise, Relógio D’Água, 2016.

O ódio e o medo de liberdade e o ódio e o medo da ordem coercivamente imposta

O ódio e o medo de liberdade e o ódio e o medo da ordem coercivamente imposta não são traços inatos da espécie humana nem “estão na natureza humana”. Só que aquilo que chamamos progresso não é um movimento linear “unidireccional”, mas pendular, que extrai a sua energia do desejo de liberdade (assim que começamos a sentir que a segurança é excessiva, insuportavelmente intrusiva e opressiva) ou do desejo de segurança (assim que começamos a sentir que a liberdade é um negócio excessiva e insuportavelmente arriscado, produzindo pouquíssimos vencedores e uma quantidade exacerbada de perdedores).  

Zygmunt Bauman

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Fonte: Bauman, Zygmunt;  Bordoni, Carlo , Estado de Crise, Relógio D’Água, 2016, pág. 87.

terça-feira, janeiro 10, 2017

Zygmunt Bauman «In Memoriam» (1925 - 2017)

















Outro Mestre que parte: Zygmunt Bauman.

Faleceu no dia 9 de Janeiro. Ontem.

Lamentamos profundamente a sua morte. Já nos tínhamos habituado à sua imagem de ancião, surpreendentemente lúcido. Possuía uma lucidez na análise social do mundo contemporâneo que fazia inveja a muitos jovens.

Era provavelmente o melhor sociólogo do mundo e partiu. Era um prolífico analista social: muitos são os seus escritos. A sua análise era (é) sempre certeira e muitas vezes surpreendente.

Que pena que a sua voz se tenha calado para sempre. Que pena que este homem tenha partido. Hoje, que soubemos da sua partida, fomos invadidos por uma profunda tristeza. Estávamos a ler, com muito prazer, um livro seu (mais um), um diálogo com Carlo Bordoni, como se pode ver pelo post abaixo. E que diálogo.

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Tenho os seus livros muito sublinhados. Ao lado de cada frase sublinhada uma interjeição: "É isto!"

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«A sociedade humana distingue-se de um rebanho de animais porque é possível nela haver quem seja sustentado por outrem; distingue-se porque tem a capacidade de conviver com inválidos, e de tal maneira que poderíamos dizer que a sociedade humana nasceu com a compaixão e a prestação de cuidados a outrem, qualidades que são exclusivamente humanas. O problema que hoje nos preocupa diz respeito a saber como poderemos transpor essa compaixão e essa solicitude à escala planetária. Estou consciente de que as gerações que nos precederam se confrontaram com a mesma tarefa, mas hoje o caminho que deveríamos seguir, agrade-nos ele ou não, terá de começar pela casa e pela cidade de cada um de nós, agora mesmo.

Não consigo pensar noutra coisa mais importante do que esta. É por ela que temos de começar.»

Zygmunt Bauman
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Fonte: Zygmunt Bauman, Confiança e Medo na Cidade, Relógio D'Água, 2005, pp.86-87. 

sábado, novembro 19, 2016

As elites já não moram aqui

Ontem, 18/11/2016, António Guerreiro escreveu no Público uma das suas interessantes opiniões, agora contra os que usam o discurso da crítica das “elites”, sem que precisem com rigor de que elites se tratam. “Que elites são essas tão vagamente nomeadas?”, questiona ele, e refere que “Não é possível saber [que elites são essas], nem há nada a saber, porque este discurso [o da crítica das elites] tem o objectivo de uma palavra de ordem, um refrão, que nada diz de substancial, mas chama a atenção sobre quem o profere.” Mais adiante esclarece-nos que “a palavra “elite” de origem francesa, incorpora a originária raiz do verbo latino eligere, escolher”.

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Quem são as elites de hoje afinal? Quem são os escolhidos, os eleitos dos nossos dias? Não serão os que se podem evadir, descomprometidamente, de um mundo que se tornou demasiado superlotado, demasiado malcheiroso, demasiado insuportável, enfim, um mundo com demasiados outros, comuns mortais? Afinal não era Jean-Paul Sartre que afirmava que o Inferno são os outros? Mas atenção: ainda que possam e desejem apartar-se dos outros, as elites, para o serem, não se podem apartar do poder. Caso contrário que elites seriam? Elites sem poder? Trata-se de uma contradição nos seus termos. É o poder que define as elites, acima de tudo. Mas hoje, também acima de tudo, esse poder é um poder politicamente descomprometido, é um poder desterritorializado, e a sociologia das elites sabe-o bem e melhor do que ninguém.

Zygmunt Bauman, aborda o assunto na sua obra, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000. Afirma ele o seguinte:

Os operadores de capital da nossa época [a elite global de hoje] têm uma notável semelhança com os proprietários de terras pré-modernos que viviam longe das suas propriedades. A sua ligação com as localidades das quais retiram o excedente de produção é, no entanto, ainda mais ténue do que os laços que uniam aqueles proprietários fundiários às suas terras distantes.

Mesmo quando fisicamente ausentes e não integrando nem social nem culturalmente a localidade, os antigos senhores de terras eram assim mesmo proprietários fundiários, daí ser necessária uma certa preocupação em preservar a capacidade da terra em produzir riqueza, caso contrário secaria a fonte da sua riqueza e poder. No caso desses senhores de terras dos tempos pré-modernos, o poder era acompanhado de obrigações, ainda que diluídas, e a exploração andava de mãos dadas com algum tipo de solidariedade — ainda que frágil e pouco confiável — para com a sorte dos explorados. Já não é mais esse o caso ou pelo menos não tem que ser — e as pressões globais combinadas dos todo-poderosos mercados financeiro, accionista e bancário cuidam para que assim não seja.

O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, e torna-se cada vez mais “irreal” quando visto a partir do significado que a realidade tem para as pessoas que não integram a elite global e têm pouca oportunidade de juntar-se a ela. Uma nova habilidade para evitar, elidir e escapar substituiu o envolvimento na vigilância, no treinamento e na administração como recurso primordial e essencial do poder. Tornou redundante todo e qualquer compromisso — por mais benigna ou cruel a forma que assumisse. Sobretudo, a capacidade de evitamento tornou disponível a outrora suprema forma panóptica de envolvimento através do esforço de vigilância, treinamento e disciplina. O financiamento do controle de tipo panóptico é hoje considerado um gasto desnecessário e injustificável, irracional mesmo, a ser descartado ou, melhor ainda, completamente eliminado. O sinóptico — um panóptico tipo faça-você-mesmo, que seduz muitos a embasbacarem-se com poucos, em vez de contratar uns poucos para vigiar muitos — mostrou-se um instrumento de controlo muito mais eficaz e económico. Os remanescentes do velho panóptico ainda actuantes não visam o treinamento corpóreo nem a conversão espiritual das massas, mas a manter no seu lugar aqueles sectores das massas que não devem seguir a elite no seu novo gosto pela mobilidade.

As classes cultas do nosso tempo, produtoras e detentoras de saber [outra elite que Guerreiro critica], também se parecem às congéneres pré-modernas à época em que estas se postavam em segurança atrás das impenetráveis muralhas do latim, isolando-se da gente simples. Com efeito, o ciberespaço da web mundial é sob muitos aspectos o equivalente actual do latim medieval. Ela torna os integrantes das classes cultas pessoas sem território e fora do alcance daqueles que lhes são próximos no espaço físico, ao mesmo tempo que lança o alicerce tecnológico de um outro universo, um universo virtual que aproxima os membros da classe culta. Na qualidade de homens e mulheres de saber eles habitam o ciberespaço, no qual as distâncias são medidas por padrões inteiramente diferentes dos que são usados no espaço geográfico comum; no ciberespaço criam-se pistas independentes das rotas seguidas pelos outros e a sinalização é disposta de maneira apenas, quando muito, superficial e casualmente relacionada à cartografia e topografia usuais.

Zygmunt Bauman, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000 (adaptada), os destaques e sublinhados são nossos.

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As elites já não moram aqui. Moram em todo o lado, ou seja, não moram em lado nenhum. A extrema mobilidade é uma das suas características. A capacidade de morar em qualquer lugar, onde lhes aprouver, sem qualquer outra ligação de maior a esse lugar, localidade ou região, para além de ocuparem esporadicamente um dos seus condomínios aí localizados, é outra das suas particularidades. O compromisso político com as sociedades que as viram nascer deixou de ser considerado pelas elites como uma obrigação, um dever ou uma necessidade de sobrevivência, ou ainda uma condição para a obtenção de poder. A possibilidade de evasão ou “evitamento” por parte das elites trata-se antes de uma libertação.

As novas elites dispensam representação e furtam-se à taxação.

quarta-feira, março 30, 2016

A cacofonia das gerações e a mudança

Sucede que hoje, sobre o mesmo palco terrestre e nacional, “convivendo e interagindo dentro de um espaço social comum” (Bauman), existem mais gerações do que nunca. Sucede ainda que há uma rápida sucessão e acréscimo de gerações no tempo. Rapidamente deixamos de nos identificar geracionalmente com os que diferem poucos anos de idade em relação a nós. Essas diferenças manifestam-se nas diversas escalas de atitudes e valores que cada geração parece determinar como sendo as mais importantes e pelas quais, de uma forma geral, se guiam. A identificação com uma determinada geração encontra-se cada vez mais confinada ou limitada a períodos mais curtos. Assim verifica-se que os períodos geracionais já não se circunscrevem, por exemplo, às décadas – a “geração de 60”, a “de 70”, a “de 80”, etc., como era comummente dizer-se. Isso é coisa do passado. Agora na mesma década e no mesmo espaço social convivem várias gerações. E parece ser essa a causa da percepção da acelerada mudança em que vivemos mergulhados. A crise, parece portanto ser hoje mais profunda do que nunca. Mas que crise? “Crise da ordem mundial”, “crise de valores”, “crise da cultura”, “crise das artes e inúmeras outras crises descobertas diariamente em áreas sempre novas da vida humana.” (Baumman, 2000)

“Geração X”, “geração rasca”, “geração nem nem”, são, por exemplo, designações para gerações que partilham o mesmo espaço social (quando não competem entre si, pelo domínio do espaço e do tempo). São gerações contemporâneas que se interseccionam, mas muito pouco, e os elementos que as integram têm cada vez menos fundamentos para se identificarem entre si.

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Excerto da obra, Em Busca da Política (1999), de Zygmunt Bauman, condutor desta reflexão:

«O que precisa ser explicado, em especial, é a intensidade incomumente alta da preocupação pública atual com a “crise da ordem mundial”, a “crise de valores”, a “crise da cultura”, a “crise das artes” e inúmeras outras crises descobertas diariamente em áreas sempre novas da vida humana.

Diz-se que, embora o mundo tenha estado sempre em mudança, nunca antes as mudanças foram tantas nem tão profundas e que o rápido aumento da quantidade e profundidade das mudanças torna muito mais difícil a permanente tarefa humana da auto-orientação.

Um pouco menos óbvia mas resposta também relativamente simples seria assinalar que nunca antes eventos e transformações fundamentais que marcam as gerações envelheceram e desapareceram tão rápido quanto hoje, sucedendo-se com enorme velocidade, e que consequentemente os períodos de tempo de gerações específicas são hoje mais curtos do que nunca — alguns anos e não algumas décadas. E portanto o número de gerações diferentes, cada uma preservando suas experiências e expectativas mas convivendo e interagindo dentro de um espaço social comum, aumentou enormemente. Esse fato explica em parte a impressionante polifonia (alguns diriam cacofonia) da cena pública e a consequente dificuldade de comunicação e de se chegar a um acordo apesar de todo o inegável progresso da tecnologia da tradução.»

Zygmunt Bauman, Em Busca da Política, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2000

(os negritos são nossos) 

quarta-feira, janeiro 27, 2016

Quando a normalidade democrática é uma anormalidade.

A arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade dos cidadãos; mas é também a arte da autolimitação: a de libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os limites estão fora dos limites.

(…)

Os poderes mais poderosos fluem ou flutuam e as decisões mais decisivas são tomadas num espaço distante da ágora ou mesmo fora do espaço público politicamente institucionalizado; para as instituições políticas do dia elas estão realmente fora dos limites e fora de controle.

Zygmunt Bauman, Em busca da Política, Zahar Editores, 2000, (na Introdução)

Lamenta-se Pacheco, no Abrupto, da perda da independência, da perda da soberania, da perda da democracia (não se lamenta, curiosamente, da perda da política). Parece ter tido um rebate, apercebendo-se, só agora, da nova realidade em que vivemos mergulhados e para a qual já alguns cientistas sociais, como Zygmunt Bauman, já nos tinham alertado. Os tempos são efectivamente novos. Os tempos são pós-democráticos e o poder já não mora aqui. Os portugueses, na sua generalidade, não se aperceberam ainda – continuam a votar no passado (ainda e sempre presos nos “labirintos da saudade”, quem sabe?). Foi assim nestas eleições presidenciais: o candidato vencedor tem raízes num Estado que de Novo, só o nome tem. É uma coisa de antanho, que nos tem acompanhado quase quotidianamente, na rádio e na TV.

Ontem Guterres acabou, sem querer, por emitir um paradoxo, ao desejar que "o país, agora que todos os actos eleitorais estão concluídos, entre em plena normalidade democrática." Mas, perguntamos nós, há algo mais normal numa democracia do que a ocorrência de eleições? Pelo contrário, actualmente o acto eleitoral parece ser o único momento de normalidade democrática nesta nova realidade pós-democrática e pós-política em que vivemos. Com efeito, a única situação em que a democracia se manifesta com toda a sua normalidade é durante os actos eleitorais. Depois das eleições, a dita “normalidade democrática” desaparece, pois como refere Bauman, os poderes decisórios encontram-se num “espaço distante da ágora ou mesmo fora do espaço público politicamente institucionalizado”, muito para além, portanto, do alcance dos eleitores e dos seus legítimos representantes.

Em suma, vivemos uma fachada democrática. O tempo da “normalidade democrática” a que Guterres se refere, é um faz de conta.

quarta-feira, agosto 06, 2014

Crimes de guerra e colheitas futuras

Os crimes de guerra podem ser definidos como violações das convenções de Genebra e de Haia relativamente às práticas proibidas em situação de guerra. As referidas convenções cobrem um vasto leque de categorias, incluindo os maus tratos infligidos a prisioneiros de guerra, refugiados e não combatentes, o uso da força excessiva e de armas proibidas (tais como gás venenoso); a violação de hospitais e equipas médicas, a tomada de reféns, o bombardeamento de alvos civis; episódios recorrentes de saque, violação, espancamento e assassínio praticados por militares indisciplinados.

Norman Davies, A Europa em Guerra, 1939-1945, Edições 70, 2008, pág. 83.
(realces nossos)

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Quando um pirralho dá uma canelada num adulto este tem o dever moral de não lhe responder da mesma forma, ou de forma pior, dando-lhe um murro ou um pontapé, por exemplo. O adulto tem a razão e a força que o pirralho não tem e o uso da força numa situação destas, pela sua parte, redunda no uso de força excessiva e na perda da razão.

O governo de Israel porta-se como o adulto irresponsável e o Hamas como o pirralho malcriado. Ambos têm cometido crimes de guerra e os seus líderes deviam ser severamente punidos pela justiça internacional.

Neste conflito não há bons de um lado e maus do outro. Ambos os lados são maus e cada bomba ou rocket lançado por cada uma das partes, cada tiro disparado, é uma semente de ódio e violência que no futuro irá despontar. Tristes colheitas se adivinham.

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Sobre este assunto, é interessante a entrevista de Zygmunt Bauman, divulgada pelo Diário do Centro do Mundo. Aqui.

terça-feira, julho 17, 2012

Era uma vez o Estado social







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Há pouco mais de um ano Pedro Passos Coelho (PPC) revelava que a sua política social estaria completamente submetida à política económica. Das suas palavras depreendia-se que ele acreditava que o crescimento económico precedia o Estado social - o crescimento económico seria aúnica forma verdadeira e duradoura de defender o nosso Estado social”. O que nos leva a concluir que, de acordo com a sua concepção, sem crescimento económico não pode existir justiça social. Ou, por outras palavras, o Estado social e a justiça social só se cumprem nos momentos de prosperidade. E assim chegámos à circunstância catastrófica em que hoje nos encontramos: uma situação de recessão, com crescimento do desemprego para níveis nunca antes observados e expansão da pobreza, acompanhados pela retracção da protecção social. Ora é exactamente quando o infortúnio se multiplica que a protecção social é mais necessária, contudo está a acontecer exactamente o oposto: os indivíduos estão em queda, ou o risco de queda é maior, porém a rede está a ser retirada.

Ontem PPC tornou a focar a questão da injustiça inerente à desigual distribuição do rendimento, contudo, não se atreveu a falar da necessária protecção social. Como o poderia fazer se acredita que tal só é possível com crescimento económico e este não ocorre?

Mas se PPC enfatiza o papel do Estado na redistribuição da riqueza, ignora a questão da protecção social, a mais cara ao Estado social e que está no seu cerne, de acordo com Bauman (2007: 65):

Ao contrário da opinião já amplamente aceite, é a protecção (o seguro colectivo contra o infortúnio individual), e não a redistribuição de riqueza, que está no cerne do "Estado social" a que o desenvolvimento do Estado moderno inflexivelmente conduziu. Para pessoas privadas de capital económico, cultural ou social (todos os activos, de fato, excepto a capacidade de trabalho, que cada um não poderia empregar por si mesmo), "a protecção pode ser colectiva ou nenhuma”.

Passado mais de um ano de governação, Portugal não cresce, o Estado social está a ser desmantelado e a desigualdade na distribuição do rendimento tende a aumentar. A política social do Governo falhou em toda a linha porque a fez depender do crescimento económico e este, nem vê-lo.

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Referência

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.

sexta-feira, julho 13, 2012

Uma geração perdida, caso não lute



«Mas é bom lembrar também que grande parte da presente geração de jovens jamais experimentou grandes privações, como uma depressão económica prolongada, desprovida de perspectivas e com desemprego em massa. Eles nasceram e cresceram num mundo em que podiam se abrigar sob guarda-chuvas socialmente produzidos e administrados, à prova de ventos e tempestades, que pareciam estar ali desde sempre para protegê-los do mau tempo, da chuva fria e dos ventos gelados. Um mundo em que cada manhã prometia um dia mais ensolarado que o anterior e mais rico de aventuras agradáveis.
Enquanto escrevo estas linhas, as nuvens se acumulam sobre esse mundo. A feliz, confiante e promissora condição que os jovens acabaram por considerar como o estado "natural" do mundo pode estar desmoronando. Uma depressão económica (que, como dão a entender alguns observadores, ameaça se revelar tão ou mais profunda que as crises que a geração dos pais sofreu na juventude) talvez esteja à espreita na primeira esquina

Zygmunt Bauman (2010); Capitalismo Parasitário e Outros Temas Contemporâneos, Zahar Editores. Rio de Janeiro. Pág. 71-72.

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Neste momento já se abate a tempestade e o guarda-chuva já lá vai, levado pelo vento neoliberal. Pobre juventude. Venceram os poucos que astutamente procuraram abrigo nas juventudes partidárias e trataram de assegurar, por portas e travessas, um lugar no mundo do tráfico de influências.

quarta-feira, julho 11, 2012

Não é uma utopia. Longe disso.


A quantidade de seres humanos tornada excessiva pelo triunfo do capitalismo global cresce inexoravelmente e agora está perto de ultrapassar a capacidade administrativa do planeta.
Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos.

terça-feira, julho 10, 2012

Afinal, quando nasce a utopia?



Zygmunt Bauman, como é referido na contracapa de uma das suas obras, é “talvez o mais eloquente anatomista da modernidade e da pós-modernidade a escrever em inglês”. A sua análise das sociedades ocidentais modernas e pós-modernas num contexto de globalização é certeira e estamos em consonância com o que escreve no Tempos Líquidos  (2007). Nessa obra o sociólogo refere que as utopias são filhas da modernidade e cita o escritor Anatole France para depois o contraditar. Anatole France dizia que:

Sem as utopias de outras épocas, os homens ainda viveriam em cavernas, miseráveis e nus. Foram os utopistas que traçaram as linhas da primeira cidade... Sonhos generosos geram realidades benéficas. A utopia é o princípio de todo progresso, e o ensaio de um futuro melhor.

É um raciocínio que concorda, por exemplo, com o de Fernando Pessoa - “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”. Para a obra nascer é preciso que o homem sonhe. E para quem não creia em Deus, então que conceda apenas que o Homem sonha e a obra nasce. É que o sonho precede a obra, pois “o sonho comanda a vida” (António Gedeão, Pedra Filosofal). E que se saiba o Homem sonha desde que é Homem. E, diga-se de passagem, alguns animais que não o Homem também sonham, mas isso é outra história.
Mas regressando a Bauman, diz ele:

E, no entanto, ao contrário da opinião proclamada por Anatole France e com base no senso comum de seus contemporâneos, as utopias nasceram junto com a modernidade e só na atmosfera moderna puderam respirar.
Em primeiro lugar, uma utopia é uma imagem de outro universo, diferente daquele que conhecemos ou de que estamos a par. Além disso, ela prevê um universo originado inteiramente da sabedoria e devoção humanas. Mas a idéia de que os seres humanos podem substituir o mundo que é por outro diferente, feito inteiramente à sua vontade, era quase totalmente ausente do pensamento humano antes do advento dos tempos modernos. (Bauman, 2007: 102-103). [Os itálicos são nossos].

A utopia enquanto imaginação de uma sociedade ideal criada inteiramente pelo Homem "era quase totalmente ausente do pensamento humano antes do advento dos tempos modernos"? É uma afirmação questionável. Na Antiguidade, não formula Platão uma utopia na sua República? E a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, não é utópica? A própria Utopia de Thomas More foi publicada em 1516.

E se alargarmos o conceito não a sociedades mas a lugares idealizados pelo Homem, então temos de considerar, o Paraíso, a Terra Prometida e a Ilha dos Amores, como exemplos pré-modernos de lugares supostamente ideais que não têm lugar neste mundo. 

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Referência:

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro. 

Sobre utopias:

Lewis Mumford (2007), História das Utopias. Antígona. Lisboa

sábado, julho 07, 2012

As forças globais que os Estados não controlam


A desintegração da solidariedade significou o fim da maneira sólido-moderna de administrar o medo. Era chegada a vez de as protecções modernas, artificiais e administrativas serem afrouxadas, desmontadas ou removidas. A Europa, primeira região do planeta a passar pela rectificação moderna e a percorrer todo o espectro das suas sequelas, está agora atravessando, de modo muito semelhante aos Estados Unidos, uma “desregulamentação-com-individualização do tipo 2” – embora desta vez não o faça por escolha própria, mas sucumbindo à pressão de forças globais que não controla mais nem espera refrear.”

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.  Pág. 73

E que forças globais são essas? Bem, o Ouriço responde de certa maneira neste post.

sábado, junho 30, 2012

O medo


Uma vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar – irrefreavelmente.

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.  Pág. 15.

O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demónios que se aninham nas sociedades abertas da nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável.

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.  Pág. 32


O medo?! Conhecemo-lo bem e não é de agora, ao contrário do que diz Bauman, que o associa às "sociedades abertas da nossa época". Como se o medo não nos tivesse acompanhado desde sempre, associado a essa incerteza do futuro e à imprevista aparição da morte. É um demónio intemporal. Recuemos. Após a IIª Grande Guerra, as sociedades ocidentais não estavam mais resguardadas do medo do que “as sociedades abertas da nossa época”. Dos céus, a qualquer momento, poderia abater-se sobre elas, uma intensa chuva de mísseis nucleares. Alguém teria carregado no botão, do outro lado, e restariam alguns segundos para o adeus. A ilusória “segurança” dos trinta gloriosos anos estava assombrada por uma ténue cortina de medo. Vivia-se então o equilíbrio do terror nuclear, o que gerava um nervoso miudinho, quase imperceptível entre os viventes conscientes.

Mas se recuarmos ainda mais, até à Idade Média, encontraremos o medo em cada cidade, em cada castelo, em cada aldeia, em cada caminho. Fomes, pestes, guerras, assomavam-se com frequência no horizonte, quando não investiam implacavelmente sobre os mortais. Cada castelo, cada muralha, cada catedral são monumentos ao medo. Nas catedrais procurava-se o amparo divino do mundo celestial contra as ameaças do mundo terreno. Buscava-se a salvação, acima de tudo, e os ricos compravam indulgências. Foi uma Era de terror profundo e reduzida esperança média de vida.

Nos Descobrimentos, o medo embarcava em cada navio – adamastores e pesadelos de escorbuto…O medo despertava a imaginação dos homens e navegar para o tórrido sul poderia significar rumar para o Inferno. Quantos dos que partiram à descoberta jamais regressaram? Navegava-se para o desconhecido, e o desconhecido é a casa do medo.

Mas Bauman, um dos mais lúcidos pensadores do mundo actual, não deixa de ter razão quando afirma que “a insegurança do presente e a incerteza do futuro produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável”. Era suposto vivermos já com maior segurança, mas a doutrina económica e política dominante no planeta tem tornado a vida da larga maioria dos seres humanos cada vez mais precária. Injustamente.

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PS - Há uma canção de Zeca Afonso em que o cantor trata o medo por amigo. Um amigo que nos alerta e nos faz escapar mais depressa à aproximação dos que pela madrugada, ameaçadoramente, nos querem  prender, torturar e matar.

domingo, janeiro 22, 2012

Da dificuldade em conter a expansão do neoliberalismo (isso que alguns teimam em não saber o que é)


 O actual modo de funcionamento da economia mundial (e hoje existe efectivamente uma economia mundial) juntamente com as elites extraterritoriais que a fazem funcionar favorecem organismos estatais que não podem de facto impor as condições de gestão da economia e, menos ainda, a impor restrições ao modo como aqueles que dirigem a economia entendem fazê-lo: a economia é hoje decididamente transnacional. Virtualmente em todos os Estados, pequenos ou grandes, a maior parte dos meios económicos mais importantes para a vida quotidiana da população são «estrangeiros» - ou, dado que foram removidas todas as barreiras aos movimentos do capital, podem tornar-se estrangeiros de um dia para o outro, caso os governantes locais suponham ingenuamente poder intervir.”

Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, Ensaio sobre a Moral Pós-Moderna, relógio D’Água. 2007. Pág. 253-254.

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Bauman escrevia em 1995, há 17 anos portanto, sobre a impotência dos Estados, ou dos “organismos estatais”, na determinação dos rumos da economia, que passou definitivamente a funcionar num quadro que transcende as nações (transnacional). O “modo de funcionamento da economia” a que se refere Bauman em 1995, não podia ser mais actual. Vivemos já a hora em que “a maior parte dos meios económicos mais importantes para a vida quotidiana da população” se tornam estrangeiros, e, poderíamos acrescentar, chineses. Comunistas capitalistas chineses! Os grandes vencedores da Era neoliberal. Trata-se de uma grande ironia. Eles não comem tudo; eles compram tudo! Esta semana foi a vez da Thames Water, a “maior empresa de água e saneamento do Reino Unido” (Público, 21 de Janeiro de 2012, pág. 15) que “abastece 8,8 milhões de consumidores com água e presta serviços de esgotos a cerca de 14 milhões de britânicos, em Londres e regiões próximas”, ter sido comprada em 8,7% pelo fundo de investimento China Investment Corporation. Já antes a Three Gorges tinha comprado 21,3% da EDP. Água, energia, saneamento básico… – “os meios económicos” mais importantes para a vida quotidiana da população”.

A China posiciona-se estrategicamente no campo geopolítico e geoeconómico da globalização. E não sejamos ingénuos: não o faz por altruísmo ou para “ajudar” o pobre Ocidente que até há pouco era rico e colonizador e que agora implora por mais dinheiro. Fá-lo porque procura ganhar uma posição hegemónica na economia e na política mundial. No futuro poderá impor os seus interesses ao mundo: o que fará o Ocidente (ou o mundo) quando a China ameaçar utilizar o embargo financeiro (essa nova arma), caso os seus interesses sejam contrariados, por exemplo, na questão de Taiwan, essa ilha que se segue, após Macau e Hong Kong?

sexta-feira, setembro 03, 2010

O medo de ficar para trás

«Quando a competição substitui a solidariedade, as pessoas vêem-se abandonadas aos seus próprios recursos, dolorosamente escassos e manifestamente insuficientes. A deterioração e a decomposição dos laços colectivos convertem-nas, sem o seu consentimento, em indivíduos de jure, mas um destino opressivo e ingovernável conspira no sentido de lhes negar o ingresso na categoria de indivíduos de facto. Se nas condições de modernidade sólida, a desgraça mais temida era a impossibilidade para o indivíduo de se adequar à norma geral, hoje em dia, com o advento da modernidade líquida, o fantasma mais aterrador é o representado pelo medo de ficar para trás.»

Zygmunt Bauman (2006 [2005]), Confiança e Medo na Cidade, Relógio D’Água, pág. 17-18.

domingo, julho 25, 2010

O auge da modernidade, contado por quem a viveu

Viena, 1902

«Os sacerdotes da ciência substituíram os sacerdotes da divindade, e a sociedade conduzida pelo progresso deveria agora cumprir o que a sociedade guiada por uma ordem pré-fixada não conseguira alcançar.»

Zygmunt Bauman (1995). A Vida Fragmentada, Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna. Relógio de Água, 2007. Pág. 31.

«Convencionalmente, nas ciências sociais, uma série de termos como secularismo, democracia, o estado-nação, cidadania, industrialização, urbanização, vêm à ideia para qualificar o que se entende por modernidade. Pode ainda acrescentar-se a esta lista de ideias a superioridade epistemológica da ciência, a autonomia da razão e da lei, a existência da esfera pública, os direitos humanos, uma série de liberdades fundamentais, a posse de propriedade individual e o individualismo.»

Couze Venn and Mike Featherstone, “Modernity”, Theory Culture Society, 2006; 23; page 459

Acresce ainda uma fé inusitada no progresso científico e tecnológico. Tal progresso contudo, não foi acompanhado por um progresso moral, facto que constituiu o calcanhar de Aquiles da modernidade. O colapso da modernidade decorreu assim entre 1914, data do início da Iª Guerra Mundial e 1945, data do fim da IIª Guerra Mundial, entre matanças industriais e uma depressão económica profunda, acontecimentos muito longe do espírito de quem vivia nas capitais dos impérios, no final do século XIX ou no início do século XX.

O auge desta época moderna, que já não é a nossa, foi muito bem descrita por Stefan Zweig que a viveu na sua juventude, em Viena:

«No seu idealismo liberal, o século XIX estava sinceramente convencido de se encontrar no caminho certo e infalível que levava ao “melhor de todos os mundos”. Era com desdém que se olhava para as épocas passadas, com as suas guerras, fomes e revoltas, como para um tempo em que a humanidade ainda era menor e insuficientemente esclarecida. Agora, porém, era apenas uma questão de décadas até terem sido definitivamente ultrapassados os últimos vestígios do mal e da violência, e a crença no “progresso” ininterrupto, imparável, tinha para essa época a força de uma verdadeira religião; já se acreditava mais nesse “progresso” do que na Bíblia, e o seu Evangelho parecia irrefutavelmente comprovado pelos novos milagres da ciência e da técnica. Efectivamente, para o final desse pacífico século, a prosperidade geral tornara-se cada vez mais visível, cada vez mais rápida, cada vez mais diversificada.»

Stefan Zweig, O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, Assírio & Alvim, 2005, pág. 15

quinta-feira, julho 22, 2010

A lição de Aristides de Sousa Mendes

Ao ler Bauman lembrei-me de Aristides de Sousa Mendes.

Diz Bauman:

«Sermos responsáveis não significa seguirmos as regras, pode com frequência exigir que desrespeitemos as regras ou tomemos vias de acção não garantidas por regras.»

Zygmunt Bauman (1995). A Vida Fragmentada, Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna. Relógio de Água, 2007. Pág. 291-292.

Felizmente Aristides não seguiu as regras.

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