Uma vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma
lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente
nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar – irrefreavelmente.
Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro. Pág. 15.
O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demónios que se aninham
nas sociedades abertas da nossa época. Mas é a insegurança do presente e a
incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos
tolerável.
Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro. Pág. 32
O medo?! Conhecemo-lo bem e não é
de agora, ao contrário do que diz Bauman, que o associa às "sociedades abertas
da nossa época". Como se o medo não nos tivesse acompanhado desde sempre,
associado a essa incerteza do futuro e à imprevista aparição da morte. É um
demónio intemporal. Recuemos. Após a IIª Grande Guerra, as sociedades ocidentais
não estavam mais resguardadas do medo do que “as sociedades abertas da nossa época”.
Dos céus, a qualquer momento, poderia abater-se sobre elas, uma intensa chuva
de mísseis nucleares. Alguém teria carregado no botão, do outro lado, e restariam
alguns segundos para o adeus. A ilusória “segurança” dos trinta gloriosos anos
estava assombrada por uma ténue cortina de medo. Vivia-se então o equilíbrio do
terror nuclear, o que gerava um nervoso miudinho, quase imperceptível entre
os viventes conscientes.
Mas se recuarmos ainda mais, até
à Idade Média, encontraremos o medo em cada cidade, em cada castelo, em cada
aldeia, em cada caminho. Fomes, pestes, guerras, assomavam-se com frequência no
horizonte, quando não investiam implacavelmente sobre os mortais. Cada castelo,
cada muralha, cada catedral são monumentos ao medo. Nas catedrais procurava-se
o amparo divino do mundo celestial contra as ameaças do mundo terreno. Buscava-se
a salvação, acima de tudo, e os ricos compravam indulgências. Foi uma Era de
terror profundo e reduzida esperança média de vida.
Nos Descobrimentos, o medo
embarcava em cada navio – adamastores e pesadelos de escorbuto…O medo
despertava a imaginação dos homens e navegar para o tórrido sul poderia
significar rumar para o Inferno. Quantos dos que partiram à descoberta jamais
regressaram? Navegava-se para o desconhecido, e o desconhecido é a casa do medo.
Mas Bauman, um dos mais lúcidos
pensadores do mundo actual, não deixa de ter razão quando afirma que “a insegurança do presente e a incerteza do
futuro produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável”. Era
suposto vivermos já com maior segurança, mas a doutrina económica e política dominante
no planeta tem tornado a vida da larga maioria dos seres humanos cada vez mais
precária. Injustamente.
***
PS - Há uma canção de Zeca Afonso
em que o cantor trata o medo por amigo. Um amigo que nos alerta e nos faz escapar
mais depressa à aproximação dos que pela madrugada, ameaçadoramente, nos querem prender, torturar e matar.