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domingo, junho 09, 2024

O terrorismo de Estado e o outro

 Peter Sloterdijk

Reflexões de Um Apolítico que Deixou de o Ser

Frankfurter Allgemeine Zeitung, 19 de Junho de 2013

In Reflexos Primitivos, Relógio D’Água, 2021, p.67

 

 

“Irrefletidos são, sobretudo, aqueles contemporâneos, aparentemente bem-intencionados, que se obstinam em ignorar que noventa e nove por cento de todos os ataques terroristas no século XX se podem incluir no terrorismo de Estado. Em geral, foram Estados e regimes em posse do Estado que, sob os pretextos mais variados, maltrataram as suas populações por meio da política do medo, na maior parte dos casos para as proteger de pretensos agressores e outros elementos daninhos no interior.”

 

Peter Sloterdijk

 

Reflexão

 

Neste excerto, Sloterdijk coloca ao mesmo nível moral o terrorismo praticado pelos “Estados e regimes em posse do Estado” e o terrorismo praticado por movimentos terroristas. É tão terrorista o Estado terrorista como o terrorista do movimento, contudo, pelos meios de que dispõe, o Estado terrorista é mais eficaz, generalizado e letal. 

 

O Estado pode também fazer um uso instrumental do terrorismo – da política do medo - para dessa forma conseguir mobilizar os seus cidadãos para as causas dos mais elevados interesses que o movem, para além dos interesses de cada um, ou até contra os interesses individuais.

 

Onde termina a guerra e começa o terrorismo? Não será a guerra, em si, já uma forma de terrorismo?

 

Não tenhamos dúvidas. Partindo desta acepção de Sloterdijk, tanto é terrorista o movimento do Hamas como é terrorista o Estado israelita. Contudo o terrorismo de Estado de Israel é mais eficaz, generalizado e letal, e ainda que surja como uma resposta a um ataque terrorista, não deixa de ser também terrorismo. A resposta do Estado israelita foi (e está a ser) desproporcionada. Não olhou à condição dos seres humanos do território que que visava, fossem eles civis ou militares, crianças ou velhos, culpados ou inocentes, tal como fez o Hamas, quando atacou Israel a 7 de Outubro de 2023. Para ambos não existem inocentes. Reina o ódio assassino entre as populações de ambos os Estados. O terrorismo grassa.

terça-feira, setembro 29, 2020

Paidéia, um lamento

 Paidéia ou educação era, até agora, o esforço de tirar a criança brincalhona, sensível, hedonista e curiosa da forma de ser do pequeno grupo, conduzindo-a ao clima universal das cidades e dos impérios com as suas perspectivas ampliadas, as suas lutas difíceis e o seu árduo trabalho forçado contra si mesmo. A tradição chamava adulto ao homem que tinha aprendido a procurar as suas satisfações em esferas sem felicidade. «A pessoa não tratada severamente não se educa.» Quando nasceram filosofias ou interpretações do mundo de tipo cultural avançado, foram também sempre escolas de tornar adulto no sentido de uma mudança da alma para maior.

 

Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo, Relógio D’Agua, 2008, pág. 217

 

***

A educação já não é a paidéia. Como resultado triunfou o hedonismo. O homem adulto infantilizou-se, cada vez menos preparado para enfrentar a vida, o sofrimento e a morte, ao contrário dos bons velhos estóicos. A alma dos homens do Ocidente apequenou-se.

quinta-feira, agosto 06, 2020

Uma birra de filósofo


Bernard-Henri Lévi, Este Vírus que nos Enlouquece, Guerra e Paz, 2020.

óóóó

As ideias são mais teimosas do que os factos (pág. 29) e no entanto, afirma Bernard-Henri Lévy, as ideias também morrem, porque vivem da mesma maneira que os seres humanos. (pág. 23) 

Discordamos. A morte é um facto e as ideias sobrevivem-lhe.

E mais adiante afirma:

A velha lua marxista da crise do final do capitalismo misturou-se com a colapsologia. (pág. 42)

ΩΩΩ

As ideias não vivem da mesma maneira que os seres humanos, ao contrário do que diz Bernard-Henri Lévy. Atravessam gerações, vivem para além dos seres humanos que as difundiram. É por isso que a velha ideia marxista, essa lua, nas próprias palavras do filósofo francês, é velha e persiste. Sobreviveu a Marx, assim como o cristianismo sobreviveu a Cristo. As ideias só morrerão com a morte do último homem. Não estamos aí.

Afirma também Bernard-Henri Lévy que os vírus, no fundo, são muito mais a arma de um crime da natureza contra o homem do que um sinal de violência dos homens contra a natureza… (pág. 40). Ora se o filósofo não é favorável à personificação do vírus – o vírus não pensa, nem tem uma intenção - como se depreende da leitura das páginas 38 e 39, já concede que a natureza comete um crime contra o homem. A natureza não comete crimes, dizemos nós, da mesma forma que o vírus também não. O homem é que os comete, se quisermos persistir no dualismo homem/natureza.

Na verdade, o homem é parte da natureza. Exactamente aquela parte que comete crimes, se quisermos. O dualismo homem/natureza é uma simplificação que nos ajuda a ler a realidade, mas não é a realidade.

Concordamos mais com Boaventura de Sousa Santos (2020) quando afirma: “Não se trata de vingança da Natureza. Trata-se de pura auto-defesa.” O homem é o agressor.

Concordamos também com Peter Sloterdijk, que escreveu, na década de 80 do século passado, o seguinte:


A natureza, não humana, defende-se.

Há uma birra de Bernard-Henri Lévy contra a situação em que nos encontramos, como se o homem fosse uma vítima injusta da ira da natureza. Tem todo o direito de pensar assim.

O seu livro é muito interessante, mas que há ali uma birra há.
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Referências

Bernard-Henri Lévi, Este Vírus que nos Enlouquece, Guerra e Paz, 2020.
Boaventura de Sousa Santos, A Cruel Pedagogia do Vírus, Edições Almedina, 2020.
Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011.

domingo, julho 26, 2020

Inclinações e prosternações: uma forma de jihad

Islâmicos prosternados junto a Hagya Sophia

















A exacerbação final [do militantismo sagrado islâmico] encontra a sua expressão mais concreta na prece obrigatória (salāt), praticada cinco vezes ao dia, cada uma compreendendo dezassete inclinações e duas prosternações – por isso, cada muçulmano praticante efectua diariamente oitenta e cinco inclinações e dez prosternações diante de Alá, ou seja, 29 090 inclinações e 3540 prosternações por ano lunar, com as recitações que as acompanham. (…) A palavra árabe masdjid, «mesquita» designa, por conseguinte, o «local de prosternação». Seria dar provas de leviandade de espírito subestimar o efeito formador do ritual praticado muitas vezes. O próprio profeta diz: Ad-dînu um’amala, a religião é o comportamento. Por esse motivo, os eruditos do islão chegam ao ponto de afirmar, com certa razão, que a prece ritual é uma forma de jihad.

Peter Sloterdijk (2009), A Loucura de Deus, Relógio D’Água, pág. 66.
(destaque a negrito nosso)

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A religião é o ópio do povo. Os ditadores gostam de ministrá-lo em doses maciças.

sexta-feira, setembro 14, 2018

Censura: a política contra a reflexão


A história da censura resume-se nesta fórmula. É a história da política contra a reflexão. No momento em que alguns seres humanos amadurecem o suficiente para conhecerem a verdade sobre si próprios e sobre a sua condição social, os detentores de poder desde sempre tentaram partir os espelhos que revelavam aos seres humanos quem eram e o que lhes acontecia.
Peter Sloterdijk (1983)


Peter Sloterdijk , Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 116.

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Quem detém informação detém poder. Esse poder é tanto mais efectivo quanto maior for o monopólio da informação. Neste sentido partilhar informação significa partilhar poder. Para manter a sua posição iluminada uma minoria acaba por sujeitar a maioria à escuridão. 

sábado, junho 17, 2017

Um súbito despertar em sobressalto


O último teste para esta projecção da Terra-mãe na totalidade mundana começou com a crise ecológica da Terra, que é, simultaneamente, a primeira crise da humanidade. Esta crise actual da mundaneidade vai mais fundo do que as que surgiram sob a pressão das religiões de redenção e da antiga apocalíptica. Porque para a humanidade actual torna-se, pela primeira vez, verdadeiramente visível na sua totalidade a sua casa comum real no momento da sua destruição. Na tentativa dos povos de mudarem para ela, descobrem-na como algo que já está inexoravelmente em vias de devastação. Esta crise da mundaneidade põe à partida em questão o poder-ser-casa da Terra e o poder habitar da humanidade.

Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo, Relógio D’Água. 2008. Pág. 218.

***

Suprema ironia. No preciso momento em que, pela primeira vez, vislumbramos o planeta que nos acolhe, na sua totalidade, tomamos consciência da devastação que o consome e que nos poderá vir a consumir. É como se acordássemos subitamente, sobressaltados, numa casa em chamas. É preciso fazer algo para nos salvarmos e salvarmos o lar “que já está inexoravelmente em vias de devastação”.

Suprema ironia. Quando dormíamos, o nosso sono era reparador e profundo, alheio a todos os perigos. Foi preciso acordar para nos apercebermos da nossa fragilidade e dos efeitos secundários dos actos que cometíamos enquanto sonâmbulos. Agora toda a Terra é a nossa circunstância, sem a qual não há Eu que resista. Vivemos também uma crise de mundaneidade (e não só ecológica), pois só quando o Homem vislumbra a Terra na sua totalidade se apercebe da própria Humanidade que o planeta encerra. Não é apenas a Terra que é vislumbrada na sua totalidade, mas também a Ecúmena.

Poderíamos colocar aqui algumas objecções ao parágrafo do Sloterdijk: quão inexorável é esse processo de devastação? “Inexorável” é uma palavra forte, em rota de colisão com a nossa civilização que teima em resistir e em confrontar tudo quanto é desafio, em particular os desafios que ameaçam a sua própria existência. Será assim tão inexorável a devastação ao ponto de ser irreversível? Logo agora que tomámos consciência da devastação, é tarde demais para agir? Neste momento em que acordámos, vamos já assumir que o planeta “está inexoravelmente em vias de devastação”? Ou estaremos negação, não querendo assumir a inexorabilidade de um apocalipse?

Só um deus pode salvar-nos, disse um filósofo do pessimismo. Pessimismo ou realismo?

A última frase do parágrafo é muito questionável num dos seus termos: não é “o poder-ser-casa” da Terra que está em questão. A Terra já deu provas do seu “poder-ser-casa”. O que está em causa é o poder habitar da Humanidade. O que está em causa é o habitante e não a casa. A casa, para dizer a verdade, já teve outros habitantes, noutras circunstâncias.


terça-feira, julho 26, 2016

Esses senhores sérios


É na rambóia estudantil, nas liberdades e manigâncias estudantis que pensarão mais tarde esses senhores sérios ao afirmarem que também já foram jovens.

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D'Água, 2011, pág. 165

quarta-feira, julho 13, 2016

O abismo da história, uma vez mais

A velha Europa, em vez de saltar em frente, por cima do abismo da história, deixa-se resvalar uma vez mais para esse abismo, presa a um destino que ninguém deseja.

sábado, março 19, 2016

Do Corão

Disse Peter Sloterdijk:

O leitor desprevenido do Corão não pode deixar de ficar impressionado ao constatar que um livro sagrado, sem temer contradizer-se, é capaz de, praticamente em todas as páginas, ameaçar com o fogo eterno os inimigos do Profeta e da fé.

Peter Sloterdijk, Colera e Tempo, Relógio D’Água, pág. 259.

***

Um livro incendiário portanto. Pelo menos suscitará a acção de paranóicos incendiários - aqueles que vêem “inimigos do Profeta e da fé” por todo o lado.

Ah, mas que digo eu? Outro escroque islamofóbico, já pensarão alguns. Era só o que me faltava.

Aqui ainda mora a liberdade! Com todo o respeito, acrescente-se, e cuidadosamente, para não ferir susceptibilidades. Bardamerda e salamaleques.

ABAIXO O ISLAMOFASCISMO!

sábado, setembro 20, 2014

A Revolução Industrial e a guerra contra a Terra

Desde a revolução industrial nascida das minas de ferro britânicas, a metalização da sociedade adquiriu ainda uma nova dimensão. Simultaneamente, a exploração do interior da terra dá um salto. Nascem então minas gigantescas que descem até às profundidades mais negras das entranhas da terra. Os mineiros tornam-se o exército-fantasma da civilização industrial – exploradores explorados; os operários da siderurgia tornam-se a tropa de elite do ataque capitalista contra a crosta «avara» da terra. Finalmente, a economia moderna capitaliza todas as riquezas naturais do subsolo e, por milhões de penetrações, de perfurações e de extracções, faz avançar a guerra mineralógica contra a crosta da terra para queimar as riquezas extraídas ou para as transformar em utensílios e em sistemas de armamento. Quotidianamente, as civilizações industriais condenam à morte milhões e milhões de seres vivos e milhões de toneladas de substâncias. Nelas se consuma a relação mantida com a terra pelos senhores saqueadores das civilizações ocidentais.

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 444.

 ***

A difusão planetária da industrialização generalizou a guerra contra a Terra. Já não é apenas uma questão entre as civilizações ocidentais e a Terra. Os saqueadores estão por todo o lado e o saque realiza-se já em todos os espaços civilizacionais, incluindo os das civilizações não ocidentais, emuladoras do Ocidente. Com a Revolução Industrial, o saque, que já antes se iniciara, agudizou-se, tornou-se virulento e pandémico. 

sexta-feira, setembro 05, 2014

E aí, onde aparece, começa a noite escura

No «projéctil capaz de pensar», chegámos ao ponto extremo da moderna dissimulação do sujeito, pois o que se chama sujeito na época moderna é na verdade esse eu da autoconservação que se está a retirar passo a passo da vida até ao auge paranóico.
(…)
A próxima grande guerra já só verá como combatentes pessoas esquizofrénicas e máquinas. Homunculi, representantes do Estado, gerentes-lémures desdobrados das forças destrutivas, premirão, quando «for preciso», os botões decisivos, e robots heróicos assim como máquinas infernais «capazes de pensar» saltarão uns sobre os outros – o experimentum mundum estará terminado: o ser humano era um falhanço. O Iluminismo só pode extrair a seguinte conclusão: não se pode iluminar, esclarecer [al. aufklären] o ser humano, pois este era já em si a falsa premissa do Iluminismo. O ser humano não basta. Encerra em si o princípio obscurecente da dissimulação, e aí onde aparece o seu eu não pode luzir o que foi prometido por todos os Iluminismos: a luz da Razão.

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, pp. 446-447.

***

Estamos perante outra versão do dito heideggeriano segundo o qual só um deus poderá salvar-nos. Para Sloterdijk, nem a Ciência nem a Razão podem salvar-nos. Para ele o Homem é uma experiência falhada: “o ser humano era um falhanço”. O ser humano é a “falsa premissa do Iluminismo”. “O ser humano não basta”, diz ele, nem se basta a si mesmo, para se salvar: só um deus, caso exista, o poderá salvar.

Até lá a loucura prossegue, enredada no mais profundo desespero.

A coisa-para-ti.

Aquilo que destinámos ao inimigo – a sua aniquilação numa grande superfície por consumpção, contaminação, atomização -, temos de começar por o fazer sofrer à própria arma. No fundo, mais não é do que a nossa mensagem para o nosso adversário, transmite as nossas intenções a seu respeito. Por esta razão, as armas são os representantes do inimigo no nosso próprio arsenal. Quem forja uma arma dá a perceber ao seu inimigo que será tão impiedoso a seu respeito como a respeito da moca, do bloco de ferro, do obus e da ogiva. A arma é já o adversário maltratado; ela é a coisa-para-ti. Quem se arma está sempre já em guerra. De facto, esta opera continuamente segundo alternâncias de quente e de frio e chamamos abusivamente paz à fase fria. Na óptica do ciclo polémico, a paz significa tempo do armamento, quer dizer, transferência das hostilidades para os metais; a guerra é, por conseguinte, a utilização e consumo dos produtos de armamento; a actualização das armas contra o adversário. 

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 445.
(escrito em 1983, destaques nossos)

*** 

A paz é mais do que um estado em que se ganha fôlego e músculo para a guerra seguinte. A paz é já a fase fria da guerra incessante. De acordo com esta acepção vivemos sempre num estado de guerra. Guerra contra a Natureza, guerra contra os outros, guerra contra nós próprios.

domingo, março 23, 2014

A luta titânica entre os impulsos domesticadores e os bestializadores

«Na própria cultura contemporânea trava-se uma luta titânica entre os impulsos domesticadores e os bestializadores, e seus respectivos meios de comunicação. Seria surpreendente a obtenção de sucessos mais significativos no campo da domesticação, diante de um processo de civilização em que uma onda desinibidora sem precedentes avança de forma aparentemente irrefreável (*).»

Peter Sloterdijk, Regras para o Parque Humano, São Paulo, Estação Liberdade, 2000. pág. 46
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(*) Refiro-me aqui à onda de violência que presentemente irrompe nas escolas em todo o mundo ocidental, em especial nos Estados Unidos, onde os professores começam a instalar sistemas de segurança contra estudantes. Assim como na Antiguidade o livro perdeu a luta contra os teatros, hoje a escola poderá ser vencida na batalha contra as forças indirectas de formação, a televisão, os filmes de violência e outros mídias desinibidoras, se não aparecer uma nova estrutura de cultivo capaz de amortecer essas forças violentas.

***

Miley Cyrus, a fumar "charros" em público ou Justin Bieber apanhado bêbado a conduzir (e não era uma carroça). Dois ídolos globais da juventude estudantil. São domesticadores ou bestializadores?

O escândalo vende. E quanto mais escandaloso melhor. A fórmula é velha e conhecida dos empresários capitalistas da "indústria" da música popular, dita comercial, do espectáculo, do entretenimento, da literatura e doutras artes. Mas adiante, que de uma coisa não há dúvida: aqueles cantores, entre outros, são fenómenos que integram essa "onda desinibidora sem precedentes" que "avança de forma aparentemente irrefreável". São "forças indirectas de formação" contra as quais a escola, entre outras instituições conservadoras, se batem, sem sucesso.

quinta-feira, maio 02, 2013

A Era do Mercado ou da Exploração



«O verdadeiro problema não é que o dinheiro possa levar as mulheres “de honra” e homens “de palavra” a fraquejar, como se diz. O escândalo começa, sim, quando, para funcionar, o dinheiro enquanto capital pressupõe sistematicamente a fraqueza de homens e mulheres que têm de se colocar no mercado. Eis o fundamento funcional-imoralista da economia industrial de mercado. Esta inclui sempre no seu cálculo o estado de necessidade dos mais fracos. Funda a circulação contínua do lucro na existência de grandes grupos que não têm praticamente outra opção senão “comer ou morrer”. A ordem económica capitalista assenta na possibilidade de espremer os que vivem constantemente em situações de excepção actuais ou virtuais, isto é, de espremer os seres humanos que terão fome amanhã se não trabalharem hoje, e que amanhã não terão trabalho, se não aquiescerem hoje ao que impudentemente se exige deles.»

Peter Sloterdijk (1983), Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 401

domingo, abril 14, 2013

O apontar do dedo de Platão

Rafael, A Escola de Atenas (detalhe), 1509, Vaticano

Rafael, na sua Escola de Atenas, representou o divino Platão que, com o Timeu numa mão, caminha solene pelo meio do pórtico, como um desses ideais apontadores de dedo; o pensador levanta significativamente a mão livre até acima e aponta o dedo a tudo o que «aí em cima» é o caso. A sua referência aponta ao mundo urânico das ideias, do qual o «nosso» mundo representa uma projecção ofuscada mais abaixo. O apontar de dedo de Platão dirige-se, praticamente, de forma crítica, de baixo para cima, daqui para ali – como o gesto de um homem que, indubitavelmente, esteve «aí» uma e outra vez, mas que agora é, de novo, um dos nossos de cá de baixo, na penumbra da região dos mortais – supõe-se que para oficiar a missão de auxiliador de transição.

Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo, Relógio D'Água, Lisboa, 2008, p. 136-137

sábado, dezembro 08, 2012

Paredes


O velho Torga, grande Torga. Encontrámo-lo com surpresa na nota de rodapé de uma obra de um dos mais lidos filósofos teutónicos actuais [1], que não o compreende, nem pode, porque a sua mundivisão está a milhas da mundivisão portuguesa que também é a de Torga. Critica o teutónico uma frase do Torga, dissecando-a como quem disseca um sapo: “O universal é o local sem paredes.” Diz o alemão que é uma afirmação da mais falsa que há, porque define o mundo como uma soma de províncias (?). Então o local são províncias?! E chega a essa conclusão porque o Torga fala em paredes? E diz ainda que “é ingénua a afirmação, porque pressupõe uma simetria onde não a pode haver e abate paredes onde não as há”. Pois nós dizemos que as há, ou havia, porque os portugueses, e não só os portugueses, mas todos os povos navegadores e descobridores, mais não fizeram do que, ao longo da sua história, derrubar paredes; e que muitas paredes existem ainda para serem derrubadas. Paredes de medo assentes no desconhecimento e no desconhecido. Paredes de ignorância. Há até pessoas que se emparedam, se cercam de paredes, vivas na vida, mortas na vida, e se fecham ao mundo, por medo. Ou não saberá Peter Sloterdijk que não há paredes mais fortes do que as paredes do medo e que o medo assenta no desconhecido? São gigantescas muralhas, essas paredes! Esse medo que nos tolhe os movimentos e a ousadia de ir mais além. É preciso coragem! Foi preciso colocar a navegação à frente da vida - “navegar é preciso, viver não é preciso”, canta a velha canção. Caso contrário, se não tivéssemos ousado navegar contra essas paredes (esses monstrengos), ainda estaríamos fechados nesta Europa, vivendo no desconhecimento da existência de outros povos e de outros mundos. Afinal, passaram pouco mais do que 500 anos.

O universo está cheio de paredes mas o universal é o local sem paredes. Qual é a dúvida?

Mas todos nós por aqui sabemos que o Torga é muito mais do que uma nota de rodapé.



[1] Peter Sloterdijk, Palácio de Cristal, Relógio D’Água. 2005. Pág. 270-271.

segunda-feira, dezembro 03, 2012

O peido mais funesto da história universal


Em homenagem ao Sr. Benjamin Netanyahu, que autorizou a construção de três mil casas na parte Leste da Cidade Santa e Cisjordânia, logo após a obtenção do reconhecimento da Palestina como Estado observador não-membro da ONU, com o apoio de 138 Estados, entre os quais Portugal. Como é óbvio, a pacificação da região não se alcança com decisões que implicam a construção de mais colonatos. Pelo contrário, tais decisões acirram mais ainda os ânimos da guerra e os ódios.

O que nos faz pensar que a esta gente – sionistas conservadores do Likud e alguns fanáticos que julgam pertencer ao povo eleito de Deus - tem de ser recordada a sua posição, posição essa que, nem é mais elevada nem é mais baixa do que a posição dos outros povos. Por outras palavras, e para sermos mais exactos, não acreditamos em povos eleitos e abençoados por Deus, ou qualquer deus que seja. Qualquer povo que seja. É claro que muito admiramos Albert Einstein, George Steiner, Stefan Zweig, Hannan Arendt, Eric Hobsbawn, Tony Judt e muitos outros judeus, mas tal admiração não implica que abandonemos essa ideia de que é tão importante, como ser humano, por exemplo, tanto um bosquímano como um judeu, aos supostos “olhos do Senhor”. Aliás, provavelmente a maioria judeus, também não embarca nessa história.

Ainda assim, invocamos aqui uma passagem de um texto de Peter Sloterdijk, que nos remete para outros tempos, quando o orgulhoso e cínico domínio romano na região mostrava aos supostos eleitos de Deus a sua posição naquela época.

Diz o filósofo Peter Sloterdijk:

«O peido, entendido como sinal, mostra que o baixo-ventre está em plena acção e isso pode ter consequências fatais nas situações em que toda e qualquer alusão às esferas desse género é absolutamente indesejada. Ernst Jünger notava no seu Diário Parisiense sobre a leitura de uma passagem da Guerra dos Judeus do historiador Flavius Josephus:

«Voltei a ir dar à passagem que descreve o início da agitação em Jerusalém sob o governo de Cumano. Enquanto os Judeus se reuniam para a festa do pão ázimo, os Romanos colocaram por sobre o pórtico do templo uma coorte a fim de manter a multidão sob observação. Um dos soldados levantou o manto e, voltando com uma reverência irónica o posterior para os Judeus, «emitiu um som indecente correspondente à sua posição». Foi motivo de um conflito que custou a vida a dez mil homens, de modo que podemos falar do peido mais funesto da história universal.» (Strahlungen, II, pp. 188-189)

O cinismo do soldado romano, que se peidou de forma politicamente provocatória e «blasfematória» no Templo, tem um paralelo no comentário de Jünger que faz a transição para o domínio do cinismo teórico.»

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 203.

quarta-feira, novembro 14, 2012

“Proletarier aller Länder, vereinigt euch!”


VIVA A GREVE GERAL MULTINACIONAL!

É POR AQUI O CAMINHO.



Aquilo que, desde o início, tornou verdadeiramente espectral o comunismo ascendente e lhe conferiu a força de atrair a si os reflexos paranóicos dos seus adversários, foi a sua capacidade, cedo reconhecida, de ameaçar de destruição o status quo vigente." 

(…)

“Ironicamente, o banco mundial da ira comunista alcançou o seu mais significativo êxito sob a forma de um efeito secundário não intencional. Ao acumular um poderosíssimo potencial político e ideológico, ajudou os seus adversários de outrora, os sociais-democratas ocidentais, a alcançar o ponto mais alto da sua eficácia histórica. Facilitou aos partidos socialistas moderados da Europa a tarefa de obrigar os dirigentes liberais e conservadores a fazer uma quantidade nunca vista de concessões na distribuição da riqueza e na organização das redes sociais. Foi uma situação como esta que tornou plausível a passagem para o controlo do Estado de largas fatias das indústrias nacionais, nomeadamente em França e na Grã-Bretanha.

Peter Sloterdijk (2007), “Os novos frutos da ira: pós-comunismo, neoliberalismo e islamismo” in O Estado do Mundo, 2ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pág. 195-196.

***

A articulação sindical multinacional é um elemento chave para que os sindicatos e os trabalhadores voltem a adquirir a força que perderam na recomposição de poderes verificada desde a decadência dos regimes comunistas do Leste da Europa. Com a queda da “cortina de ferro” deixou de existir uma alternativa materializada do outro lado. A sua existência, por si só, tornava o patronato e os governos liberais e conservadores do lado de cá, mais dóceis, mais propensos à negociação e à cedência, receosos de eventuais reviravoltas políticas.

Sindicatos isolados nacionalmente, no actual contexto de globalização, já não funcionam com eficácia e perdem gradualmente força, como se tem vindo a verificar. É que a actual economia já não se cinge às fronteiras nacionais, ou seja, a economia mundial já não corresponde ao somatório das economias nacionais. Vivemos já na era da economia global. Nunca como hoje fez tanto sentido o chavão marxista: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!” Caso tal união falhe, então será o fim das relações laborais tal como as conhecemos. Aguardar-nos-á uma espécie de neofeudalismo, onde a maioria passará a ser a classe servil, ou, no pior cenário, caminharemos para o mundo dos “jogos da fome” – um mundo cada vez mais polarizado entre uma minoria usurpadora e uma maioria escrava que a alimenta e entretém.

domingo, junho 17, 2012

O salto em frente da Europa, por cima do abismo da história


«A inteligência europeia está agora perante o desafio de transformar a sua máquina de fabricar destino. Não se trata agora de uma nova reclamação do Império por um sujeito político pan-europeu com sede em Bruxelas; não competirá aos Europeus, nem hoje, nem amanhã, brincar aos Romanos pela enésima vez. Nenhum contemporâneo inteligente pode seriamente interessar-se por um «Leviatã supranacional» com o nome de União Europeia. (…)

Não se trata já de enformar as potências neoeuropeias por reivindicações dos modelos da velha Europa (como implicava outrora a simbólica carolíngia enganadora de Estrasburgo e de Aix-la-Chapelle), mas de substituir o próprio princípio do Império pela união dos Estados, num acto de criação da forma política que se inserirá na história do mundo. Na qualidade de federação multinacional, a Europa tem de afinar um primeiro modelo conseguido por essa entidade intermédia que falta entre os Estados-nação e as organizações do complexo United Nations. Tal é o tema incontornável de uma filosofia política europeia do futuro. Dela se pode dizer desde já que só pode realizar-se pelo modo de uma filosofia-de-processo do pós –imperialismo

Peter Sloterdijk (2008), Se a Europa Acordar. Relógio D’Água. Pág. 48-49

«O poder que se exerce a partir de Bruxelas sobre a grande Europa encontra-se agora perante uma escolha. Ou quer passar para um imperialismo mais ou menos aberto, nomeadamente sob influência de cenários sugestivos que profetizam uma guerra económica entre os Estados Unidos, o Japão e a Europa, bem como uma guerra mundial por infiltração do Sul contra o Norte. Ou compreende que a sua oportunidade reside na translação do Império para um não-império, uma nova união de entidades políticas. Se se decidir por um novo Império, perde o resto da sua alma e provoca o seu próprio desaparecimento por depravação das três gerações futuras. Apenas com a aliança da ambição e do cinismo, nenhuma cultura moderna percorrerá nem que sejam cem anos suplementares

Peter Sloterdijk (2008), Se a Europa Acordar. Relógio D’Água. Pág. 60

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Passaram alguns anos desde 1994, data em que foi escrito o texto acima, e a Europa parece querer recuar agora para um cenário impossível. A constituição de uma federação multinacional parece não se encontrar na mesa das opções políticas. A falta de arrojo e de liderança política, a mediocridade e a inépcia política dos líderes europeus, com destaque para a chanceler Angela Merkel, parecem estar a lançar a Europa para a desagregação, para a Velha Europa dos Estados-nação rivais. Mas esse tempo já não existe mais. Estamos a querer voltar a um lugar que não existe. Ao procurarmos refúgio nessa ideia e nesse tempo, nem ao passado regressamos. Provocaremos o nosso próprio desaparecimento, como diz o filósofo. Por que aguardam os líderes para darem esse salto para a federação multinacional? Aguardarão a voz reivindicativa dos povos? Terão de ser os povos a exigi-lo?

Por agora, a Europa ainda dorme.

sábado, maio 12, 2012

A desagregação do cristianismo


«Enquanto o povo judeu foi vencido e disperso e entrou na amarga segunda metade da sua história – em que o seu modelo poderia ter sido mais Ahasver do que David -, o cristianismo prosseguiu a resistência judaica contra o império romano a outro nível. O cristianismo começou por se tornar uma grande escola de resistência, da coragem e da fé encarnada; se o cristianismo fosse na época aquilo que é hoje na Europa, não teria sobrevivido sequer cinquenta anos. Durante o império romano, os cristãos tornaram-se a tropa de elite de uma resistência interior. Ser cristão então significava não se deixar intimidar por nenhum poder no mundo, sobretudo pelos imperadores-deuses romanos arrogantes, brutais e amorais cujas manobras político-religiosas eram perfeitamente conspícuas

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água. 2011. Pág. 298

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Naquele tempo a morte assomava-se sempre no horizonte. Estava sempre presente e, muitas vezes, aproximava-se sorrateira. A vida terrena era breve. Cristo apareceu então, proclamando a vitória da vida sobre a morte. Essa crença funcionou entre os cristãos como uma espécie de argamassa muito forte que os mantinha unidos: a Fé. Contra a morte e contra o Império. Entravam no circo romano cantando, momentos antes de serem chacinados. Mas não soçobravam. Por isso o Império ruiu.

Hoje a morte está mais distante. Assoma-se na TV. A argamassa da Fé enfraqueceu e o cristianismo também.

A Fé do cristianismo está hoje tão enfraquecida na Europa, que se fosse confrontada com o poder dos imperadores, não sobreviveria sequer cinquenta anos, diz Sloterdijk. Na verdade, o cristianismo já pouca oposição revela face aos novos impérios sem rosto que dominam o nosso mundo.

Parece que ao alinhar tantas vezes com os impérios, foi o cristianismo que enfraqueceu.

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