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terça-feira, agosto 18, 2020

Território


Os homens têm olhado para o deserto como uma terra estéril, terreno livre para quem o quiser atravessar; mas, efectivamente, cada colina, cada vale do deserto tinham alguém que era o seu dono reconhecido e que seria capaz de defender imediatamente o direito da sua família, do seu clã a esse deserto, contra as transgressões. Até mesmo os poços e as árvores tinham os seus donos, que permitiam às pessoas que usassem as segundas como madeira e bebessem livremente dos primeiros, tanto quanto necessitassem, mas que imediatamente reprimiriam quem tentasse tomar conta da sua propriedade e explorá-la a ela ou aos seus produtos com outros, para benefício particular.  

T.E.Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria
Publicações Europa-América, 1989, pp. 85-86

Refugio-me no deserto, neste momento particular, mas nem o deserto, descubro, é um espaço de liberdade. A liberdade colide sempre com a propriedade. O território é um espaço apropriado pelo ser, humano ou não humano. O território, na verdade, faz parte do ser. É a nossa circunstância, um prolongamento do corpo ou um espaço sem o qual o corpo definha. Eu sou eu e a minha circunstância (Ortega y Gasset). O território faz parte dessa circunstância que me define.

sexta-feira, outubro 13, 2017

Grandes aberturas: Afirma Pereira


Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. Um magnífico dia de Verão, cheio de sol e de vento, e Lisboa resplandecia. Ao que parece, Pereira estava na redacção, não sabia que fazer, o director estava de férias, e ele via-se com o problema de preparar a página cultural, pois o Lisboa passara a ter uma página cultural, e tinham-lha confiado. E ele, Pereira, reflectia sobre a morte. Naquele belo dia de Verão, com a brisa atlântica acariciando as copas das árvores e o Sol a brilhar, com uma cidade que cintilava sob a sua janela, e um azul, um azul incrível, afirma Pereira, de uma limpidez que quase feria os olhos, ele pôs-se a pensar na morte. Porquê? Isso, Pereira não sabe dizer. 

Antonio Tabucchi, Afirma Pereira, Publicações Dom Quixote, 2000


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Um livro que devia ser lido pelos ruis ramos deste mundo, em particular os historiadores, em suma, por aqueles que ousam omitir a palavra “fascismo” dos fascículos da nossa História. Realmente, admitamos, a coisa conspurca. Talvez por isso a queiram esconder, mas, o grande problema é que para além de conspurcar, cheira mal. Ele há nódoas que não se deixam apagar.

Aquela gente deixou descendência que caminha connosco. Daí não vem mal ao mundo. O passado ficou lá atrás e temos de saber viver uns com os outros e respeitarmo-nos. Fazemos parte do mesmo país e do mesmo povo e há um futuro a construir. Compreende-se que alguns desses descendentes gostassem de apagar uma parte da história ou de a reescrever de outra forma…É compreensível. Mas não é aceitável. 

domingo, dezembro 04, 2016

Respeito

Recuso odiar o meu semelhante, discriminá-lo, suspeitá-lo, ameaçá-lo. Importa-me pouco em que divindade acredita, e nada me interessam os seus hábitos e rituais. Mas dele espero reciprocidade no respeito que lhe tenho e na dignidade que lhe reconheço.

Rentes de Carvalho, A Ira de Deus sobre a Europa, Quetzal, 2016, pág. 241.

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Nada de confusões1.

O respeito vale mais, muito mais, do que a simples tolerância.

O assunto já aqui foi abordado.

Um excelente livro - A Ira de Deus sobre a Europa - e uma excelente análise, a de Rentes, sobre a mudança num país sito no coração da Europa, e sobre o futuro deste continente e quiçá do mundo.

Ainda voltaremos a falar dele.

E, diga-se de passagem, uma excelente capa.

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(1) - A Ira de Rentes, está longe de ser uma imprecação contra o "politicamente correcto" ou contra o multiculturalismo. 

terça-feira, agosto 12, 2014

Memórias e danças

O Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy, é uma obra-prima do género western. E a tradução, de Paulo Faria, se não enriquece a obra, está à altura dela. (*)

Ficam duas citações do juiz Holden e as respectivas reflexões sobre as mesmas.

Sonho ou realidade?

As memórias dos homens são incertas e o que aconteceu no passado pouco difere do passado que não aconteceu.

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 273

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Por vezes as recordações misturam-se com os sonhos e, em certas circunstâncias, quando recordamos o passado, ficamos na dúvida se aquilo que sentimos como tendo sido um acontecimento vivido não se trata afinal de um sonho tido sobre esse mesmo acontecimento.

Dança ritual da guerra

Uma coisa te digo. À medida que a guerra vai sendo aviltada e a sua nobreza posta em causa, os homens honrados que reconhecem a santidade do sangue vêem-se excluídos da dança, que é um direito dos guerreiros, e deste modo a dança converte-se numa falsa dança e os dançarinos em falsos dançarinos. E todavia, haverá sempre um dançarino que fará jus a esse título, e consegues adivinhar quem será?

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 273

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É caso para dizer, que quem dança por último dança melhor.

Desconfiamos que as danças primevas começaram por ser danças rituais. A dança é uma forma de expressão universal e desenvolveu-se em todas as civilizações e culturas do planeta, civilizações e culturas que evoluíram até certo momento, em total desconhecimento da existência das demais. A universalidade da dança não parece por isso ter resultado de uma difusão por contágio, mas o seu aparecimento parece relacionado com um determinado estádio da evolução humana. Não se conhecem sociedades não humanas que dancem, muito menos ritualmente, embora alguns pássaros pareçam dançar em rituais de acasalamento.

Ainda hoje se dança nos casamentos, na nossa sociedade. Em certas culturas, a passagem à idade adulta é marcada por danças rituais e celebratórias. E existem ainda as belicosas danças da vitória. Danças guerreiras.

E até os demónios mais belicosos dançam uma estranha dança, como Hitler, em 1940, ao saber da queda de Paris. Mas por último não foi ele quem dançou.

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(*) - George Steiner diz que certas traduções chegam até a ser enriquecedoras. É o caso, a nosso ver.

terça-feira, agosto 05, 2014

No mundo disfuncional onde nos é dado viver

Ele [o mundo disfuncional onde nos é dado viver] é caracterizado por um processo, iniciado de modo mais sistemático no dealbar os anos de 1980, e que se traduz numa enorme expansão do capital financeiro (suplantando em muito a produção de bens e serviços da chamada «economia real»). Por outro lado, regista-se um enorme aumento da concentração de riqueza, a nível global, facilitado pela quase irresponsabilização da circulação de capitais, com a correspondente perda de peso da componente de rendimentos do trabalho nas economias nacionais. A globalização permitiu a criação de uma elite mundial, transnacional, capaz de influenciar ou mesmo determinar as agendas políticas nacionais e internacionais. 

(…)

O «sistema bancário sombra» (que efectua operações bancárias sem ser submetido à disciplina do bancos oficiais) movimentou 67 biliões de dólares norte-americanos em 2011 (111% do PIB mundial).

Viriato Soromenho-Marques, Portugal na Queda da Europa, Temas & Debates/Círculo de Leitores, pág. 109

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O crescimento exponencial da componente dos rendimentos do capital financeiro no rendimento global planetário ditou uma desvalorização relativa dos rendimentos do trabalho.

Paradoxalmente, no “mundo disfuncional onde nos é dado viver”, a acumulação de riqueza é, cada vez mais, independente do trabalho, daí que se assista hoje, mais do que nunca, à destruição inescrupulosa de estruturas económicas nacionais e à precarização do trabalho, com as inevitáveis consequências na vida do trabalhador, que, ironicamente, já empobrece a trabalhar. O trabalhador, no “mundo disfuncional onde nos é dado viver”, é cada vez mais prescindível. Neste mundo, o especulador vence em toda a linha. O capitalismo financeiro é mais sedutor do que o capitalismo industrial e industrioso. O dinheiro enquanto mercadoria é já a principal variável da equação. Dinheiro gera dinheiro, riqueza gera riqueza. O trabalho é deixado para trás, enquanto prossegue o processo de concentração do rendimento e da riqueza.

segunda-feira, agosto 04, 2014

Ainda no Meridiano

Cormac McCarthy
A violência gratuita e explícita, afinal, não está apenas reservada aos filmes mais brutais e hediondos de Hollywood. Surpreendentemente vim encontrá-la num livro - o Meridiano de Sangue - escrito por Cormac McCarthy, onde ainda me encontro, esperando concluir a leitura em breve. Pensava eu que não seria possível plasmar tal violência numa obra literária. Ou que a literatura estaria sempre aquém do cinema quando se trata de impressionar pela exposição brutal da violência. É impressionante. É certo que na Ilíada, a obra fundadora da literatura europeia, a violência já nos era mostrada de forma explícita, mas estava longe de ser gratuita. Tratava-se de uma violência enquadrada e, de certo modo, justificada. Já os personagens de McCarthy no Meridiano, matam por matar, esfolam por esfolar e deambulam em atribulado e aleatório percurso, ora a aterrorizar os aldeões e os índios do norte do México, ora perdidos pelo deserto de Sonora, mas ainda assim, sempre ávidos por escalpes. Um bando de patifes onde se integra um enigmático personagem, sábio e cientista, mas que também é um implacável assassino: o juiz Holden.

Hoje li estas palavras proferidas por esse estranho personagem:

O universo não é uma coisa limitada e a ordem que o rege não tem peias que, tolhendo-lhe os desígnios, a forcem a repetir noutro lugar qualquer o que já existe num dado lugar. Mesmo neste mundo, existem mais coisas que escapam ao nosso conhecimento do que aquelas que conhecemos e a ordem que os nossos olhos vêem na criação é a ordem que nós lá pusemos, qual fio num labirinto, para não nos perdermos.

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 204

Ora, curiosamente, já tinha lido qualquer coisa parecida, do filósofo Karl Popper:

Seria desejável que por vezes nos lembrássemos que é precisamente no pouco que sabemos que somos diferentes, já que somos todos iguais na nossa ilimitada ignorância.

Karl Popper, Em Busca de um Mundo Melhor, Editorial Fragmentos, 1989, pág. 59

Um pouco mais adiante, pela boca do mesmo personagem, surgem-me Nietzsche e o niilismo. Diz o juiz Holden, na página 208:

As leis da moral são uma invenção da humanidade para privar dos seus direitos os mais poderosos em favor dos fracos. As leis da história subvertem as leis da moral a cada passo. A validade de uma perspectiva moral nunca pode ser confirmada ou infirmada por um qualquer exame definitivo.

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 208

sexta-feira, julho 04, 2014

O povo

«Olhando para trás, ao longo de oitocentos anos há aqui e ali um estadista íntegro, outro que é sábio e avisado, um jurista capaz e justo. Houve políticos de valor, homens de vistas largas e generosas. Alguns vice-reis voltaram da Índia mais pobres do que para lá tinham ido. Raras excepções. Mas nenhuns dos seus actos justificam a profusão de estátuas, nem as comemorações, nem os discursos bombásticos de ontem, de hoje ou amanhã. Nos oitocentos anos, mais que as virtudes isoladas ou as benfeitorias de um ou outro governante, avultam os crimes contra o povo

J. Rentes de Carvalho, Portugal, a Flor e a Foice, Quetzal, 2014, pág. 35. (o destaque é nosso)

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«O povo (conjunto organizado de cidadãos), que não se confunde com a multidão (conjunto caótico de indivíduos), é a instituição genética de toda a ordem política. É nele que se concentram as forças demiúrgicas da construção, reconstrução e reforma dos regimes políticos.» 

Viriato Soromenho-Marques, Portugal na Queda da Europa, Temas e Debates, 2014, pág. 283. (o destaque é nosso)


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Dois excelentes livros, o de Rentes, em leitura, e o de Viriato, já lido. Rentes, dispara em todas as direcções, excepto na direcção do povo (pelo menos até à página 54, onde vou). Não me divertia tanto desde a leitura do livro de Martin Page, A Primeira Aldeia Global

Viriato, clarifica no trecho seleccionado, a distinção entre povo e multidão. Dois conceitos muitas vezes confundidos.

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Aqui, ama-se o povo - o português em particular - mas evita-se a multidão.

sábado, maio 03, 2014

No meridiano

«Se Deus fizesse tenções de corrigir a degenerescência da humanidade não o teria feito já? Os lobos eliminam as suas crias mais fracas, homem. Que outra criatura seria capaz disso? E a raça humana não é ainda mais rapace? As leis naturais mandam germinar, dar flor e fenecer, mas nos afazeres dos homens não há declínio e o meio-dia da sua expressão assinala o começo da noite. A alma humana fica exaurida no ponto culminante das suas façanhas. O seu meridiano é a um tempo o início das trevas e o declinar do seu dia. O ser humano gosta de jogos? Pois que jogue a valer. Isto que vocês aqui vêem, estas ruínas que as tribos de selvagens tanto admiram, não vos parece que vai repetir-se? Vai, sim. Vezes sem conta. Com outros povos, com outros filhos.»


Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 126.
(os destaques são nossos)

Efeito Ozymândias.

sábado, abril 05, 2014

Um certo tipo de país

Estamos em presença de um povo manifestamente incapaz de se governar a si próprio. E sabes o que acontece aos povos que não se conseguem governar a si próprios? Nem mais. Vêm povos de fora governá-los.

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 37.

Ao lê-lo, não sei porquê, veio-me à ideia um certo tipo de país. Aquilo a que alguns chamam um protectorado.

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Estou a gostar de ler...


E de o cruzar com este aqui:


Dois pequenos grandes livros que nos ajudam a compreender a crise da Europa dos nossos dias. Tony Judt escreveu em 1996. O ensaio de Ulrich Beck é mais actual (2012). Entre os dois livros existem áreas de intersecção que apontam no mesmo sentido: o domínio da Europa pela Alemanha.

E a Europa que se prepare:

"A Europa e a sua juventude estão unidas na raiva por causa de uma política que salva bancos com quantidades de dinheiro inimagináveis, mas desperdiça o futuro da geração jovem."

Ulrich Beck (2012), A Europa Alemã, Edições 70. pp. 20 

"A crise, diz Gramsci, é o momento em que a velha ordem mundial morre e em que é necessário lutar por um mundo novo, contra resistências e contradições."

Ulrich Beck (2012), A Europa Alemã, Edições 70. pp. 26

A leitura continua.

Os velhos partidos prosseguem alheios à mudança que se adivinha e ao meio em rápida mutação que os envolve. Ainda jogam no tabuleiro da velha ordem. Continuam a actuar como se a sociedade que os enquadra tivesse os mesmos problemas, interesses e contradições de há dois ou mais anos atrás. Talvez quando acordarem, seja tarde demais*. 

Os velhos partidos já não dão resposta às aspirações da juventude, vítima das políticas que a conduziram até aqui. E "aqui" é o desemprego. A democracia representativa carece de democracia, está ferida, e não se dá conta. Os partidos do "arco da desgovernação" estão a cavar a sua própria sepultura e a da democracia também.

Entretanto, os políticos governantes, tudo fazem para que se "regresse aos mercados", não querendo reparar que dessa forma prosseguem a mesma lógica que nos lançou na dependência dos especuladores. E cada vez que "vão ao mercado", asseguram aos jovens um futuro ainda mais sombrio, de austeridade e dependência, um futuro sem futuro, um futuro colonizado, porque serão eles os convocados a pagar a dívida e os juros contraídos pela actual geração governante.

É por isso que é cada vez mais "necessário lutar por um mundo novo, contra resistências e contradições".
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(*) Como encarar, por exemplo, o ensimesmamento do PS, os seus conflitozinhos internos, enquanto o país se afunda na crise? Parecem actuar com a inconsciência daqueles que discutem a cor do bote salva-vidas a lançar ao mar, enquanto o navio se vai afundando.

Mas alguém pode esperar alguma coisa desta gente? Afinal não estão eles também entre os que nos conduziram até aqui? A esperança, se é que ainda há esperança, reside noutro lado. Tem de residir noutro lado.

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