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quarta-feira, maio 18, 2022

Tempos interessantes

 «Viveis tempos interessantes», disse Paul Valéry a uma plateia de universitários de Paris, no dia 13 de Julho de 1932. «Os tempos interessantes são sempre tempos enigmáticos que não prometem descanso, nem prosperidade, continuidade nem segurança», e acrescentou: «Nunca a humanidade juntou tanto poder e tanta desordem, tanta apreensão e tantas diversões, tanto conhecimento e tanta incerteza.»

Paul Valéry, citado por Martin Gilbert, História do Século XX, 2ª ed., Dom Quixote, 2011, pág. 206

***

Voltámos aos tempos interessantes, agora no século XXI. Talvez ainda mais interessantes, no sentido que Paul Valéry dá à palavra.

sexta-feira, maio 19, 2017

Como Portugal criou o primeiro império global

«Este uso do terror será grandioso para a obediência a Vossa Alteza sem necessidade de os conquistar»
Afonso de Albuquerque

Roger Crowley narra-nos a impressionante história da entrada dos portugueses no Índico no início do século XVI. Como Portugal criou o primeiro império global? Lido o livro, a resposta à questão é extremamente simples. Portugal criou o primeiro império global através do terror. Um terror que aplicou com persistência e tenacidade. Onde quer que surgissem no mar, as enfunadas velas brancas com a vermelha cruz de Cristo pintada, a população dos lugares costeiros debandava. Fomos terroristas, piratas e corsários e aplicámos todo o hardpower para dominar a costa do Malabar, da África Oriental, do Golfo Pérsico e mais além. Chegámos a penetrar no ardente Mar Vermelho e ousámos trepar e atacar as muralhas de Adém. Fomos longe demais. O espírito que nos movia no início do século XVI era ainda o da cruzada medieval. O objectivo era matar o Islão no berço, passar o mouro à espada, sem dó nem piedade ou esmagá-lo por todas formas possíveis e imaginárias. Queimámos, esquartejámos, empalámos, enforcámos, retalhámos, massacrámos, pilhámos…

Conta o narrador que após a tomada de Goa os rios que envolviam a ilha ficaram rubros do sangue dos muçulmanos apanhados na orgia saqueadora, e que nem os crocodilos “conseguiram lidar com a fartura”. “Foi uma limpeza” escreveu Afonso de Albuquerque a Dom Manuel I.

A história de Portugal no Índico não foi uma coisa bonita de se ver.

E no entanto, ficamos perplexos com tanta bravura e crueldade.

O livro já vai na 6ª edição.

quarta-feira, abril 09, 2014

Quando a cobiça naufragou

Naqueles dias reinava a cobiça aliada ao poder tecnológico dos europeus. E naquelas terras e águas os europeus eramos nós. Cheios de hubris e vã glória chegávamos e pilhávamos. Tesouros para El Rei D. Manuel I. Era tanta a cobiça que as barcas, quais arcas flutuantes, se afundavam sob o peso dos tesouros pilhados nas industriosas cidades orientais. Foi assim com a Flor do Mar, hoje supostamente descoberta por drones subaquáticos nos mares da Indonésia.

Foi n’A Primeira Aldeia Global, de Martin Page, que tive um vislumbre do valor e magnitude do tesouro que se transportava na Flor do Mar, da cobiça do Vice-Rei, e do naufrágio da carraca à saída do estreito de Malaca.

«Quando chegou a altura da principal força portuguesa regressar à Índia, Afonso de Albuquerque mandou carregar o navio-almirante, a Flor do Mar, com o seu magnífico espólio, e com produtos para o rei D. Manuel I. Os bens destinados ao monarca incluíam duas réplicas, em tamanho real, de elefantes-bebés, feitas de prata maciça e embutidas com jóias, quatro estátuas de leões de ouro, cheias de perfumes raros, e o trono de Malaca incrustado de jóias.

A frota largou através do estreito, com o navio de Afonso de Albuquerque tão carregado que mal se mantinham à tona de água. Quando chegou às águas costeiras de Sumatra, após menos de meio dia de viagem, foi abalado por uma pequena borrasca e afundou-se. Albuquerque e a sua tripulação fizeram-se às jangadas salva-vidas, de onde foram recolhidos e levados para bordo de outros navios. 

Em 1992, a leiloeira de arte Sotheby's, contratada para avaliar o tesouro afundado a preços actuais, calculou esse valor em 2,5 mil milhões de dólares. Não surpreende, assim, que tenha havido tanto interesse em localizar os destroços do navio através do rastreio de satélite, nem tão-pouco o feroz litígio internacional em relação à sua posse legítima, em que Portugal não participa, mas que decorre principalmente entre a moderna Malásia, da qual Malaca é uma capital de província, e a Indonésia, na qual se integra Samatra.»


Martin Page, A Primeira Aldeia Global, 6ª edição, Casa das Letras, 2010. Pág. 162. 

sábado, janeiro 11, 2014

Homens excelentes, homens felizes

Por estes dias da morte de Eusébio, lembrei-me desta velha história:

Cleóbis e Bíton
Museu Arqueológico de Delfos 
«Por estas razões, pois, e pelo desejo de ver terras, Sólon saiu do país e foi visitar Amásis ao Egipto e Creso a Sardes. À sua chegada, foi hospedado por Creso no seu palácio. Depois, no terceiro e no quarto dia, por ordem de Creso, os servidores passearam Sólon pelos tesouros e mostraram-lhe toda a riqueza e opulência aí existentes. Depois de ter observado e examinado tudo, quando considerou o momento oportuno, Creso perguntou-lhe: “Hóspede ateniense, até nós chegaram muitas vezes relatos a teu respeito, por causa da tua sabedoria e das tuas viagens como, por amor à sabedoria, tens percorrido toda a Terra, levado pela curiosidade. Vem-me agora o desejo de te perguntar se já vistes alguém que fosse o mais feliz dos homens.” Interrogou-o dessa forma, na esperança de ser ele o mais feliz de todos, mas Sólon, sem qualquer lisonja e com sinceridade, reponde: “ Sim, ó rei, Telo de Atenas”. Surpreendido com a resposta, Creso perguntou com interesse: “Porque julgas que Telo é o mais feliz?” E ele explicou: “Natural de uma cidade próspera, por um lado, teve filhos belos e bons e de todos eles viu nascerem filhos e todos permaneceram com vida; por outro, depois de gozar uma vida próspera, para o nosso meio, teve o mais brilhante termo da vida. Declarada a guerra pelos atenienses contra os seus vizinhos de Elêusis, ele acorreu em auxílio, provocou a fuga dos inimigos e morreu da forma mais gloriosa. Os Atenienses sepultaram-na com exéquias públicas no próprio local em que tombou e tributaram-lhe grandes honras”.


Como Sólon, ao falar das muitas prosperidades de Telo, incitara Creso, este perguntou quem, dentre os homens que ele vira, seria o segundo depois de Telo, imaginando obter de certeza pelo menos o segundo lugar. Mas Sólon respondeu: “Cleóbis e Bíton. Estes de facto, que eram de raça argiva, tinham suficientes meios de subsistência e eram, além disso, dotados de grande força física. Os dois foram igualmente atletas vencedores e deles conta-se ainda a seguinte história. Numa altura em que os Argivos celebravam a festa em honra de Hera, tornava-se absolutamente necessário que a sua mãe fosse levada num carro ao templo, mas os bois não chegaram a tempo do campo. Constrangidos pela falta de tempo, os jovens submeteram-se eles próprios ao jugo, puxaram o carro em que sua mãe se colocara e, numa distância de quarenta e cinco estádios, transportaram-na até ao santuário. Depois de fazerem isto, sob os olhares de toda a assembleia, sobreveio-lhes o melhor termo de vida, e neles mostrou a divindade ser melhor para o homem morrer do que viver. Os Argivos, rodeando os jovens, elogiavam a sua força e as Argivas a mãe que tais filhos teve. Ela, cheia de júbilo pela façanha e pelos elogios, de pé diante da estátua, pediu que a deusa concedesse aos seus filhos Cleóbis e Bíton, que tanto a haviam honrado, o melhor que um homem pode obter. Depois desta prece, uma vez realizados o sacrifício e o banquete, os jovens adormeceram no próprio templo e não se levantaram mais. Foi esse o fim que tiveram. Os Argivos ergueram-lhes estátuas que consagraram em Delfos como homens excelentes que eram.”

Heródoto, Histórias (Livro 1º), Lisboa, Edições 70, 1994, pág. 74 e 75.

Sólon, é claro, foi rapidamente despedido pelo indignado Creso, "sem dele receber qualquer palavra".

Telo de Atenas, Cleóbis e Bíton, eram homens excelentes para os gregos e tiveram o tratamento devido aos homens excelentes: após a morte, foram sepultados com exéquias públicas e ergueram-lhes estátuas consagradas em templos sagrados. 

domingo, dezembro 01, 2013

Do curtíssimo prazo

Ao gerirem os nossos destinos por curtíssimos horizontes temporais, os “governantes” abdicaram do sonho utópico, para eles sempre utópico, sem lugar neste mundo, de um dia as comunidades que “regem” se libertarem dos fardos quotidianos que as oprimem – essa era a busca pela verdadeira liberdade e civilização! Movem-se agora por curtos ciclos eleitorais e curtíssimos ciclos financeiros – as cotações nos mercados internacionais, os ratings, e, entre outras, as taxas de juro da dívida pública a 10 anos, mais precisamente, e agora em inglês técnico, “The Portuguese Government Bonds 10YR Note”, que pode ser vista aqui (e que no momento se encontram em tendência decrescente, em torno dos 6%, daí a temporária euforia de alguns), oscilando diariamente, ora para cima, ora para baixo, como uma espada de Dâmocles sobre as nossas cabeças, e é só isto que lhes interessa, porque ironicamente, no longo prazo, estaremos todos mortos. Para cúmulo, é para eles agora o curtíssimo prazo que importa, e por isso não admira que alguns destes iluminados tenham querido difundir a ideia de que a história não importa e pouco influi na progressão das sociedades pós-modernas e nos nossos destinos. Assim, uma nação com mais de 800 anos de história é vendida a retalho no mercado internacional por meia pataca. Os traidores estão entre nós, sempre estiveram, que gente a defenestrar sempre houve.

Meus caros, eles já não nos representam. Qual democracia representativa, qual quê? Eles representam os credores internacionais e outros interesses que não os nossos. Nós só lhes interessamos na medida em que, estamos convocados para lhes pagar as dívidas e os juros usurários. O melhor, meus amigos, é votar com os pés, partir, e ir contribuir para outra freguesia (contribuir, na verdadeira acepção da palavra: como contribuinte!). E diga-se de passagem, muitos já o fizeram.

Tenho dito.

Epílogo

«Hoje, a classe política vive atascada nos problemas e nas soluções de curto prazo, segundo a temporalidade própria dos ciclos eleitorais, nos países centrais, ou dos golpes e contra-golpes, nos países periféricos. Por outro lado, uma parte significativa da população nos países centrais vive dominada pela temporalidade cada vez mais curta e obsolescente do consumo, enquanto uma grande maioria da população dos países periféricos vive dominada pelo prazo imediato e pela urgência da sobrevivência diária.»

Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, 9ª ed., Almedina, 2013, Pág. 277


Hoje existe ainda outra temporalidade que Boaventura de Sousa Santos não aborda, talvez porque no momento em que realizou a sua análise essa tendência ainda não se tinha materializado claramente aos seus olhos prescientes - é a temporalidade do curtíssimo prazo que agora determina as decisões dos governos: o tempo dos mercados financeiros, o tempo dos credores. 

sábado, outubro 05, 2013

O acelerador de partículas da história

A guerra é uma espécie de acelerador de partículas na transformação da história.

João Gouveia Monteiro

No programa da Antena 2, Quinta Essência, de João Almeida, o historiador João Gouveia Monteiro, com grande vivacidade e detalhe, conseguiu fazer com que este ouvinte presenciasse, em directo, a Batalha de Gaugamela, que opôs o exército de Alexandre Magno da Macedónia ao de Dário III da Pérsia, em 331 a. C.


O excelente programa pode ser ouvido AQUI.

Entretanto aguarda-se já a próxima grande batalha.

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Um livro adquirir:


João Gouveia Monteiro, Grandes Conflitos na História da Europa, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.

sábado, julho 06, 2013

Sobre o processo histórico e a História

"O que torna assustador o processo histórico é o facto de passar despercebido aos que o estão viver."

Clara Ferreira Alves, “O Ovo da Serpente”, Revista, Expresso, 06 de Julho de 2013




Há quem se aperceba que está a viver um momento histórico quando o vive, mas um momento não é um processo (Clara Ferreira Alves di-lo na sua crónica). Um processo histórico integra momentos históricos. Os egípcios da Praça Tahrir ou os astronautas da Apolo 11, por exemplo, sabem e sabiam que estavam a viver momentos históricos, ou, como se diz, estavam a “fazer história”. Mas os festivos egípcios da Praça Tahrir talvez não se apercebam do quão o seu país está próximo de uma guerra civil ou da subida do preço do petróleo nos mercados internacionais e das suas implicações, devido, em grande parte, às suas manifestações.

***

Depois de ler muitas obras de historiadores concluo que a história contada é sempre distorcida pela visão do historiador. Trata-se de um problema genético da História. Heródoto, o pai da História, escreveu as suas Histórias para glorificar os feitos dos gregos. Desde então não há historiador que não puxe a brasa à sua sardinha. 

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Talvez o maior saque da história, a seguir ao resgate de Atahualpa


David Landes na sua magnífica obra, A Riqueza e a Pobreza das Nações, narra o destino do Madre de Deus, um navio português do tempo em que a Ibéria era hiperpotência:


«Os Romanos tinham um aforismo, Pecunia non olet – “O dinheiro não cheira”. As pessoas podem não gostar do modo como ele é arranjado ou da pessoa que o conseguiu, mas gostam do dinheiro e irão aceitá-lo.
Num outro sentido, porém, o dinheiro cheira fortemente e o seu odor atrairá gente de toda a parte.

Em 1592, a Inglaterra estava em guerra contra a Espanha e Portugal, que, como já vimos, fora unido à coroa espanhola pelo jogo do casamento e da herança. Cerca de quatro anos antes, os Ingleses tinham repelido uma invasão espanhola e puseram a pique as embarcações inimigas (a pretensa Armada Invencível). Agora, uma esquadra inglesa estava a postos ao largo dos Açores para interceptar e capturar navios espanhóis provenientes do Novo Mundo, talvez carregados com tesouros do México e do Peru, quando lhe surgiu uma carraca portuguesa. Era a Madre de Deus, de regresso da Índia e que rumava para Lisboa.
Era maior do que qualquer navio em que os Ingleses já tivessem posto os olhos: 165 pés de comprimento, 57 pés de boca, 1600 toneladas, três vezes o tamanho da maior embarcação existente na Inglaterra; sete cobertas, 32 canhões e outras armas, superstrutura em talha dourada; e porões repletos de tesouros.
Ali estava a matéria-prima dos seus sonhos - arcas abarrotadas de jóias e pérolas, moedas de ouro e de prata, âmbar mais velho do que a Inglaterra, peças do mais fino tecido, tapetes dignos de um palácio, 425 toneladas de pimenta, 45 de cravo-da-índia, 35 de canela, 3 de macis, 3 de noz-moscada, 2,5 de benjoim (resina balsâmica, altamente aromática, usada como base para perfumes e preparados farmacêuticos), 25 de cochinilha (corante feito dos corpos secos das fêmeas de um insecto encontrado em climas semitropicais), 15 de ébano. Mesmo antes que o comandante da esquadra inglesa pudesse tomar a presa a seu cargo, a sua alvoroçada tripulação já tinha atulhado os bolsos com tudo o que era possível.
Quando o navio apresado entrou no porto de Dartmouth, destacou-se muito para além dos outros navios e dos telhados das pequenas casas ao longo do cais. Comerciantes, correctores, vigaristas, batedores de carteiras e ladrões surgiram de muitos quilómetros em redor, vindos até de Londres e de mais longe, atraídos como abelhas para o mel - para visitar o barco (os pescadores locais trafegaram incessantemente, e por alto preço, entre o barco e a margem) e procurar marinheiros bêbados nas tabernas e espeluncas, com a intenção de comprar, roubar, furtar e saquear a presa. Pela lei Inglesa, uma grande parcela dos bens apreendidos era devida à rainha e, quando Elizabeth soube o que estava a acontecer, mandou Sir Walter Raleigh até lá para resgatar o seu dinheiro e punir os saqueadores. «Tenciono deixá-los tão nus como estavam ao nascer», prometeu o valente Sir Walter, «pois Sua Majestade foi roubada e das mais raras e valiosas coisas».
Quando Sir Walter ficou senhor da situação, um carregamento avaliado em meio milhão de libras - quase metade de todo o dinheiro do erário - tinha sido reduzido a 140 000 libras. Mesmo assim, foram necessários dez cargueiros para transportar o tesouro, contornando a costa e subindo o Tamisa até Londres. Depois do resgate de Atahualpa, este foi talvez o maior saque da história. Esse naco de fortuna, essa prelibação das riquezas do Oriente, galvanizaram o interesse inglês por essas terras distantes e colocaram o país (e o mundo) num novo rumo.
Os Ingleses aprenderam outra lição com o Madre de Deus. Quando, alguns anos depois, um rico navio apresado foi conduzido ao Tamisa para ser descarregado, os homens que executaram a tarefa receberam como roupa de trabalho “gibões de tela sem bolsos”».

David Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações, Por que são algumas tão ricas e outras tão pobres, 6ª ed. Gradiva, 2002, pp. 165-167

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Curiosamente o subtítulo da obra “Por que são algumas [nações] tão ricas e outras tão pobres” acaba por ser muito bem elucidado no trecho acima. Tudo se baseia na guerra, no comércio, no roubo, no furto e no saque. E assim se fez a glória dos impérios.

O saque prossegue entretanto, assumindo novas formas, mantendo porém a sua velha essência.

E assim se constroem as riquezas e as pobrezas do mundo.

Mas no que nos toca, tem a palavra Fernando Pessoa n’Os Colombos:

Os Colombos


Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

Fernando Pessoa, Mensagem

sábado, dezembro 15, 2012

As fronteiras oscilantes da pobreza

         © AMCD

«Há, e sempre houve uma Europa rica e uma pobre, mas a fronteira que as divide tem mudado ao longo dos séculos. Ainda não há muito tempo, o litoral mediterrânico e o seu interior urbano, de Marselha até Istambul, contavam-se entre as regiões mais prósperas da Europa. Em contraste, as terras escandinavas foram pobres durante uma grande parte da sua história. Com algumas excepções notáveis, hoje é o contrário.»

Tony Judt, Uma Grande Ilusão? Um ensaio sobre a Europa. Edições 70. 2011. P. 62

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Sempre estivemos no limite oscilante entre a pobreza e a riqueza. Mas, quase sempre, do lado da pobreza. Seja à escala europeia, aquela a que Tony Judt se refere, seja à escala mundial, a que Adriano Moreira se refere, na sua obra, Da Utopia à Fronteira da Pobreza. Já fomos os cafres da Europa, quando da Europa não éramos. Na verdade, estávamos no mundo ocupados, fora da Europa, e nos oceanos. Nela desembarcámos em 1986, após uma descolonização apressada (*). Por isso, muitas vezes dizemos que entrámos na Europa. E ao nela desembarcarmos, embarcámos numa utopia da qual vamos agora acordando. Afinal foi tudo um sonho.

Nós, os primeiros dos ocidentais a assomar às exóticas costas de África e aos distantes mares de Timor, retornámos acossados. Rapidamente voltámos à nossa prévia condição de cafres da Europa, mas agora pior, porque nela estamos, tendo perdido já essa liberdade de ser cafres livres onde bem quisermos. Mas nessa viagem, como em todas as viagens, também aprendemos algo. Talvez possamos ainda ensinar alguma coisa aos habitantes desta península da Ásia, que é a Europa, em particular, aos que por cá ficaram, ensimesmados, frios e calados como teutões.



(*) Afinal sempre estivemos numa espécie de jangada de pedra.

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O que aconteceu naquele dia em Cajamarca

John Everett, Pizarro Seizing The Inca of Peru, 1846

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Excerto da obra de Jared Diamond (1997), Armas Genes e Aço:

O que aconteceu naquele dia em Cajamarca é bem conhecido, visto ter sido registado por escrito por muitos participantes espanhóis. Para termos uma ideia daqueles acontecimentos, vamos ressuscitá-los combinando excertos de relatos de seis companheiros de Pizarro, incluindo os seus irmãos Hernando e Pedro, testemunhos oculares:

quarta-feira, dezembro 29, 2010

O último tratado de Tony Judt (1948-2010)

Como cidadãos de uma sociedade livre, temos o dever de olhar o mundo criticamente.

Toni Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, Edições 70, 2010, p. 219

Um pequeno livro. Um portento!

Obrigado Tony Judt.

Que descanse em paz.

segunda-feira, dezembro 27, 2010

Com que então não há alternativa*?!

«A dinâmica inelutável da competição e integração económica global tornou-se a ilusão da nossa era. Como Margaret Thatcher uma vez explicou: Não Há Alternativa(p. 182).

«Mas tal como as instituições intermédias da sociedade – partidos políticos, sindicatos e leis – dificultavam os poderes de reis e tiranos, também o próprio Estado democrático pode agora ser a principal ‘instituição intermédia’: situada entre os cidadãos impotentes e inseguros e companhias ou agências internacionais insensíveis e inimputáveis. E o Estado – ou pelo menos o Estado democrático – conserva uma legitimidade única aos olhos dos seus cidadãos. Só ele responde perante estes, e estes perante ele.» (p. 184)

Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, Edições 70, 2010

Em democracia há sempre alternativa! E os governos têm duas: ou se colocam ao lado “dos cidadãos impotentes e inseguros” ou passam a servir as “companhias e agências internacionais insensíveis e inimputáveis”, ou por outras palavras, passam a servir os “mercados financeiros ” não democráticos. Se escolherem este segundo caminho, como parece que está a acontecer, então os cidadãos serão obrigados, mais tarde ou mais cedo, a encostar os governos à parede.

É claro que são duas alternativas polares, e os governos podem ainda escolher uma intermédia, mas toda a alternativa que se afaste da defesa dos direitos dos cidadãos e aponte para o desmantelamento do Estado-providência, é uma alternativa que se afasta da democracia.

domingo, dezembro 26, 2010

O progresso

«Foi uma proeza notável do Iluminismo unir categorias morais clássicas a uma visão secularizada do aperfeiçoamento humano: numa sociedade bem ordenada, os homens não se limitariam a viver bem, mas lutariam por viver melhor do que no passado. A ideia de progresso entrou no vocabulário ético e dominou-o durante grande parte dos dois séculos seguintes. Ainda hoje nos chegam ecos desse optimismo inocente, quando os Americanos falam entusiasticamente de 'reinventar-se'. Mas à excepção das ciências naturais, será que o progresso ainda é um relato credível do mundo que habitamos?»

Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, Edições 70, 2010, pág. 173-174.

Se o progresso é a bomba atómica, então estamos falados quanto ao progresso.

E não me falem mais em progresso! Seus babuínos!

terça-feira, setembro 01, 2009

A Guerra

Cruzador alemão, Schleswig-Holstein

A Segunda Guerra Mundial não começou em 1941, nem em 1940, nem sequer a 3 de Setembro de 1939. Começou às 4:45 da madrugada de 1 de Setembro de 1939. Foi nesse preciso momento que o cruzador alemão Schleswig-Holstein, numa visita amigável, atacou no porto de Danzig (Gdansk) e abriu fogo à queima-roupa sobre o forte polaco de Westerplatte. Simultaneamente, ao nascer do dia, a Wehrmacht alemã atravessou a fronteira da Polónia em vinte locais diferentes – a oeste, a norte e a sul. Foi um acto de guerra não declarado: mas, sem dúvida, um acto de guerra.

Norman Davies (2006). A Europa em Guerra, 1939 – 1945. Edições 70.

A partir de então o mundo mudou, como nunca antes tinha mudado. Jamais voltaria a ser o mesmo. Fazem hoje 70 anos. Nos próximos seis anos suceder-se-ão cerimónias de lembrança, coincidindo com os principais acontecimentos dessa guerra de má memória. Felizmente neste país limitámo-nos a ouvir ao longe o troar dos canhões. Felizmente para nós, tratou-se de uma guerra longínqua, ainda que no nosso continente e no nosso oceano.

quarta-feira, abril 29, 2009

Vasco da Gama e a arte de “bem tratar” as gentes do Índico


Nestes tempos de retorno da pirataria ao Índico, mais precisamente nas águas somalis, e face ao humanismo demonstrado por holandeses (que libertaram os piratas e os enviaram numa embarcação para terra) e pelos actuais portugueses (cuja lei nacional os impede de deter piratas naquelas águas) lembrei-me de Vasco da Gama. Cantado e idolatrado pelos nossos maiores poetas – Camões e Pessoa – Vasco da Gama não passa de um vilão aos olhos de historiadores e filósofos contemporâneos.

Talvez não tenha sido por acaso que os japoneses quando avistaram as velas dos nossos barcos pela primeira vez (fomos os primeiros europeus a demandar as suas costas), nos chamaram “bárbaros do Sul”.

Eis o que dizem historiadores e filósofos contemporâneos do comportamento do nosso Vasco a quem, segundo os poetas, os deuses abriram as portas do céu:

«Quando da sua primeira viagem à Índia, em 1497, Vasco da Gama, sem motivo especial, mandou incendiar e afundar, depois de o ter pilhado, um navio mercante árabe, a bordo do qual se encontravam duzentos peregrinos que se dirigiam para Meca, incluindo mulheres e crianças – prelúdio a uma “história do mundo” dos crimes externos

Peter Sloterdijk, Palácio de Cristal, Relógio D’Água, pág. 122.

«Em 30 de Outubro [de 1502], Vasco da Gama, agora ao largo de Calecute, ordenou ao samorim que se rendesse e exigiu a expulsão da cidade de todos os muçulmanos. Quando o samorim contemporizou e mandou enviados para negociar a paz, Vasco da Gama replicou sem ambiguidade. Capturou no porto, ao acaso, um certo número de negociantes e pescadores, enforcou-os imediatamente, depois esquartejou os corpos, atirou mãos, pés e cabeças para uma embarcação que mandou para terra com uma mensagem em arábico na qual sugeriu ao samorim que utilizasse aqueles bocados de corpos de gente para fazer um caril.»

Daniel Boorstin, Os Descobridores, Gradiva, pp. 170-171

segunda-feira, agosto 25, 2008

A maioria silenciosa e as minorias ruidosas

Contramanifestação da Direita a 31 de Maio de 1968.
A maioria silenciosa manifestou-se e a “revolução” terminou.
São as maiorias silenciosas que sustentam as minorias ruidosas. Não existem extremistas, radicais, revolucionários bem sucedidos, sem um núcleo pacífico que tacitamente os apoie. Paz não significa, necessariamente, neutralidade. Sem o apoio da maioria silenciosa, as minorias ruidosas perdem sustentação e as suas causas não vingam. Por essa razão, qualquer guerra contra o terrorismo estará condenada à partida se visar apenas as franjas e deixar incólume o grande cerne que as alimenta continuamente. O nazismo só foi derrotado quando a sociedade que o suportava foi violentamente desbaratada. A sociedade alemã que emergiu da IIª Guerra Mundial foi uma nova sociedade, embora feita com alguma massa da velha. Muitos dos funcionários que serviram a máquina burocrática nazi, passaram a laborar na nova sociedade, nascida das cinzas da antiga.

Contudo, aos revolucionários opor-se-ão sempre conservadores. Não há acção sem reacção e vice-versa.

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