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quinta-feira, agosto 06, 2020

Uma birra de filósofo


Bernard-Henri Lévi, Este Vírus que nos Enlouquece, Guerra e Paz, 2020.

óóóó

As ideias são mais teimosas do que os factos (pág. 29) e no entanto, afirma Bernard-Henri Lévy, as ideias também morrem, porque vivem da mesma maneira que os seres humanos. (pág. 23) 

Discordamos. A morte é um facto e as ideias sobrevivem-lhe.

E mais adiante afirma:

A velha lua marxista da crise do final do capitalismo misturou-se com a colapsologia. (pág. 42)

ΩΩΩ

As ideias não vivem da mesma maneira que os seres humanos, ao contrário do que diz Bernard-Henri Lévy. Atravessam gerações, vivem para além dos seres humanos que as difundiram. É por isso que a velha ideia marxista, essa lua, nas próprias palavras do filósofo francês, é velha e persiste. Sobreviveu a Marx, assim como o cristianismo sobreviveu a Cristo. As ideias só morrerão com a morte do último homem. Não estamos aí.

Afirma também Bernard-Henri Lévy que os vírus, no fundo, são muito mais a arma de um crime da natureza contra o homem do que um sinal de violência dos homens contra a natureza… (pág. 40). Ora se o filósofo não é favorável à personificação do vírus – o vírus não pensa, nem tem uma intenção - como se depreende da leitura das páginas 38 e 39, já concede que a natureza comete um crime contra o homem. A natureza não comete crimes, dizemos nós, da mesma forma que o vírus também não. O homem é que os comete, se quisermos persistir no dualismo homem/natureza.

Na verdade, o homem é parte da natureza. Exactamente aquela parte que comete crimes, se quisermos. O dualismo homem/natureza é uma simplificação que nos ajuda a ler a realidade, mas não é a realidade.

Concordamos mais com Boaventura de Sousa Santos (2020) quando afirma: “Não se trata de vingança da Natureza. Trata-se de pura auto-defesa.” O homem é o agressor.

Concordamos também com Peter Sloterdijk, que escreveu, na década de 80 do século passado, o seguinte:


A natureza, não humana, defende-se.

Há uma birra de Bernard-Henri Lévy contra a situação em que nos encontramos, como se o homem fosse uma vítima injusta da ira da natureza. Tem todo o direito de pensar assim.

O seu livro é muito interessante, mas que há ali uma birra há.
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Referências

Bernard-Henri Lévi, Este Vírus que nos Enlouquece, Guerra e Paz, 2020.
Boaventura de Sousa Santos, A Cruel Pedagogia do Vírus, Edições Almedina, 2020.
Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011.

quarta-feira, julho 15, 2020

Era uma vez na Europa


Boaventura de Sousa Santos (2020), A Cruel Pedagogia do Vírus, Edições Almedina.

óóóóó

Uma pandemia desta dimensão provoca justificadamente comoção mundial. Apesar de se justificar a dramatização, é bom ter sempre presente as sombras que a visibilidade vai criando. Por exemplo, os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria), há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os internados não podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível.

Boaventura de Sousa Santos (2020), A Cruel Pedagogia do Vírus

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Antes de mais diga-se que o livrinho de Boaventura de Sousa Santos é excelente, porque convida à reflexão. Mas não concordamos com tudo.

O facto de cairmos de paraquedas em solo europeu não nos torna automaticamente europeus. Estar na Europa não implica necessariamente ser da Europa ou ser europeu. Para contrariarmos Boaventura de Sousa Santos, quando refere que “Isto também é Europa – a Europa invisível.” diremos que não é Europa, é antes na Europa. Na fronteira sul da Europa, no caso. A constatação deste facto deverá aliviar as nossas consciências? Talvez não. A Europa encontra-se perante um desafio e Boaventura de Sousa Santos desafia-nos.

Digamos que entre os recém-chegados à nossa casa há os que fogem do pesadelo da guerra (os refugiados) e há os que perseguem com ambição um sonho europeu (os imigrantes económicos, muitos deles ilegais). E para tornar as coisas ainda mais complexas há ainda os que fogem dum pesadelo bélico e acalentam, ao mesmo tempo, o sonho europeu. Ora defende-se aqui que devem ser acolhidos todos os que fogem ao pesadelo da guerra, independentemente de acalentarem ou não o sonho europeu. Defende-se aqui, também, que a dívida moral dos europeus para com os outros povos do mundo, pelas malfeitorias que os europeus realizaram no passado, entre as quais se contam a exploração colonial e a escravatura, não é eterna, ao contrário do que muitos parecem defender, para justificarem a defesa de políticas migratórias de porta escancarada.

Não, não é Europa, é na Europa. E sim, é invisível, mas na Europa invisível, porque ninguém para lá vira o rosto*.
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(*) Temos vergonha em dizer que de lá toda a gente desvia o rosto porque nos vem à memória o gesto que os civis alemães esboçavam quando eram obrigados, pelas tropas aliadas no final da IIª Guerra Mundial, a caminhar entre as pilhas de cadáveres dos campos de concentração: desviavam o rosto.

domingo, dezembro 01, 2013

Do curtíssimo prazo

Ao gerirem os nossos destinos por curtíssimos horizontes temporais, os “governantes” abdicaram do sonho utópico, para eles sempre utópico, sem lugar neste mundo, de um dia as comunidades que “regem” se libertarem dos fardos quotidianos que as oprimem – essa era a busca pela verdadeira liberdade e civilização! Movem-se agora por curtos ciclos eleitorais e curtíssimos ciclos financeiros – as cotações nos mercados internacionais, os ratings, e, entre outras, as taxas de juro da dívida pública a 10 anos, mais precisamente, e agora em inglês técnico, “The Portuguese Government Bonds 10YR Note”, que pode ser vista aqui (e que no momento se encontram em tendência decrescente, em torno dos 6%, daí a temporária euforia de alguns), oscilando diariamente, ora para cima, ora para baixo, como uma espada de Dâmocles sobre as nossas cabeças, e é só isto que lhes interessa, porque ironicamente, no longo prazo, estaremos todos mortos. Para cúmulo, é para eles agora o curtíssimo prazo que importa, e por isso não admira que alguns destes iluminados tenham querido difundir a ideia de que a história não importa e pouco influi na progressão das sociedades pós-modernas e nos nossos destinos. Assim, uma nação com mais de 800 anos de história é vendida a retalho no mercado internacional por meia pataca. Os traidores estão entre nós, sempre estiveram, que gente a defenestrar sempre houve.

Meus caros, eles já não nos representam. Qual democracia representativa, qual quê? Eles representam os credores internacionais e outros interesses que não os nossos. Nós só lhes interessamos na medida em que, estamos convocados para lhes pagar as dívidas e os juros usurários. O melhor, meus amigos, é votar com os pés, partir, e ir contribuir para outra freguesia (contribuir, na verdadeira acepção da palavra: como contribuinte!). E diga-se de passagem, muitos já o fizeram.

Tenho dito.

Epílogo

«Hoje, a classe política vive atascada nos problemas e nas soluções de curto prazo, segundo a temporalidade própria dos ciclos eleitorais, nos países centrais, ou dos golpes e contra-golpes, nos países periféricos. Por outro lado, uma parte significativa da população nos países centrais vive dominada pela temporalidade cada vez mais curta e obsolescente do consumo, enquanto uma grande maioria da população dos países periféricos vive dominada pelo prazo imediato e pela urgência da sobrevivência diária.»

Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, 9ª ed., Almedina, 2013, Pág. 277


Hoje existe ainda outra temporalidade que Boaventura de Sousa Santos não aborda, talvez porque no momento em que realizou a sua análise essa tendência ainda não se tinha materializado claramente aos seus olhos prescientes - é a temporalidade do curtíssimo prazo que agora determina as decisões dos governos: o tempo dos mercados financeiros, o tempo dos credores. 

domingo, novembro 24, 2013

E agora, o mercado interno chinês: consumir é glorioso!

«O que parece ser novo neste domínio [da globalização da economia] é o aumento exponencial da exportação da cultura de massas produzida no centro para a periferia e com ela das “estruturas de preferências” pelos objectos de consumo ocidental. Está-se a criar assim uma ideologia global consumista que se propaga com relativa independência em relação às práticas concretas de consumo de que continuam arredadas as grandes massas populacionais da periferia. Estas estão duplamente vitimizadas por este dispositivo ideológico: pela privação do consumo efectivo e pelo aprisionamento do desejo de o ter. Pior do que reduzir o desejo ao consumo é reduzir o consumo ao desejo do consumo.
Esta dupla vitimização é também uma dupla armadilha. Por um lado, nem o desenvolvimento desigual do capitalismo, nem os limites do eco-sistema planetário permitem a generalização a toda a população mundial dos padrões de consumo que são típicos dos países centrais

Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, 9ª ed., Almedina, 2013, Pág. 269
(os sublinhados são nossos)

Dizia bem Boaventura de Sousa Santos, que “as grandes massas populacionais da periferia” estavam “arredadas” das práticas de consumo vigentes no centro, mas não da publicidade suscitadora de novos desejos e de insuspeitas "necessidades", individuais e colectivas. Pois bem, essa realidade, que já muda, irá alterar-se rápida e profundamente. A China ao decidir aprofundar mais a sua política económica no sentido de “mais mercado e menos Estado”, alargando-a ao seu mercado interno, abraça definitivamente a biopolítica. Mais mercado, mais consumo interno, mais população (a China vai relaxar a sua política demográfica antinatalista), mais consumidores, mais contribuintes - esses novos escravos a formar… Mas também, mais poluição, mais consumo de energia, mais consumo de recursos naturais, mais ameaça à biodiversidade, mais, mais, mais… Se enriquecer era glorioso, é agora o consumo que passa a sê-lo. E assim se vai imiscuindo o deus mercado, insidiosamente, em todas as esferas da vida (e da Vida).

O mercado é o fetiche da China, esse país mutante. Comunista e capitalista, neoliberal e consumista.

sábado, novembro 02, 2013

O futuro

Nunca esteve tanto nas nossas mãos, mas as nossas mãos nunca foram tão ignorantes sobre se afagam uma pomba ou uma bomba.


Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, 9ª ed. Afrontamento, 2013, p.54

segunda-feira, outubro 14, 2013

Ainda por cumprir e já noutro filme

«Assim, como atrás referi, as duas mais importantes promessas da modernidade ainda por cumprir são, por um lado, a resolução dos problemas da distribuição (ou seja, das desigualdades que deixam largos estratos da população aquém da possibilidade de uma vida decente ou sequer da sobrevivência); por outro lado, a democratização política do sistema político democrático (ou seja, a incorporação tanto quanto possível autónoma das classes populares no sistema político, o que implica a erradicação do clientelismo, do personalismo, da corrupção e, em geral, da apropriação privatística da actuação do Estado por parte de grupos sociais ou até por parte dos próprios funcionários do Estado).»

Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice, O Social e o Político na Pós-Modernidade, 8ª ed., Edições Afrontamento, 2002, (na página 88).

Desconheço se Sousa Santos já o teria escrito aquando da primeira edição, em 1994. Se o fez, passaram então dezanove anos. Neste ínterim o mundo mudou, para pior, e, em vez de nos aproximarmos progressivamente do cumprimento das promessas por cumprir da modernidade, afastámo-nos delas à velocidade da luz. Volvidos estes anos, em Portugal, semiperiferia (sempre semiperiferia!) cada vez mais periférica, a conversão das elites governantes e dos seus partidos à doutrina neoliberal pós-moderna, agravou os problemas da distribuição e afastou-nos da democratização política do sistema político democrático, ao ponto de se voltarem a ouvir por aí as famosas grandoladas (inclusive na Assembleia da República, a Casa da Democracia).

A modernidade ficou por cumprir neste país e a modernização é uma gargalhada.


A pós-modernidade abalroou as promessas incumpridas da modernidade como uma locomotiva abalroa um camião.

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