domingo, outubro 27, 2019

Uma paródia britânica: a crise das democracias


No Reino Unido verifica-se um estranho caso de incompatibilidade entre duas formas de democracia: a directa e a representativa. O que foi decidido em 2016 através da democracia directa, pelo voto popular, está a ser contrariado, de alguma forma, desde então, pela democracia representativa, que utiliza todo o tipo de expedientes e pretextos para entravar o que foi decidido em referendo. Somos levados a crer que a vontade do povo e a vontade dos seus representantes, que têm assento no Parlamento, não é a mesma. Se assim é, parece que a solução lógica residiria na escolha de outros representantes. Mas desde 2016 já muita água passou sob as pontes e por isso nada nos garante agora que a vontade do povo seja a mesma. Daqui decorre que uma eleição para o Parlamento Britânico pode não solucionar coisa nenhuma. A paródia britânica prossegue.

quinta-feira, outubro 24, 2019

O apelo da tribo neoliberal

Mario Vargas Llosa, O Apelo da Tribo, Quetzal, 2019

Apreciação:  óóóó

Mário Vargas Llosa não resistiu ao apelo da tribo neoliberal, ou seja, ao apelo da tribo dos que idolatram o mercado desregulado, o mais desregulado possível, embora diga defender o mercado regulado. Se há algo de errado no liberalismo é esse fundamentalismo de mercado que pretende alargar a lógica do seu funcionamento a todas as esferas da vida e mercantilizar tudo, da saúde à educação, da segurança à arte e quase tudo o resto. Para a tribo dos fundamentalistas do mercado, por exemplo, um casamento não é um casamento, é um contrato; a educação de um filho, não é simplesmente educação, é um investimento; o desemprego não é um infortúnio, é uma oportunidade para se ser empreendedor, uma situação de transição entre dois empregos, e assim sucessivamente. Se o mercado foi uma descoberta associada ao desenvolvimento das trocas comerciais, a tentativa de alargamento desse mecanismo a todas as esferas da vida é, no mínimo, um erro.

Mário Vargas Llosa até reconhece o “excessivo economicismo em que se confinou um certo liberalismo”(p. 65), mas depois lamenta que Ortega y Gasset, que foi um liberal na cultura e na filosofia e “tão curioso e aberto a todas as disciplinas” (p. 77) tenha sentido “uma desconfiança parecida com o desdém” em relação ao “mercado livre” e à “liberdade económica”. Chega por isso a acusar Ortega Y Gasset de ser um “liberal parcial” que padece de uma “limitação geracional” (p.77). Mais adiante chega a criticar Ortega y Gasset, considerando-o “um liberal limitado pelo seu desconhecimento da economia”, facto que “o levou por vezes, quando propunha soluções para problemas como o centralismo, o caciquismo ou a pobreza, a postular o intervencionismo estatal e um dirigismo voluntarista” (p.87) e que “os erros de Ortega” eram os erros de um “ingénuo” (p.91), pasme-se. Sente-se que Vargas Llosa queria que Ortega y Gasset fosse da sua tribo, e seria, apenas com o problema de não ser um neoliberal, ou seja, de não estender o seu liberalismo também à esfera económica.

Ora Ortega y Gasset era um filósofo que estava muito à frente do seu tempo, e que está ainda muito à frente de Mário Vargas Llosa, não cometendo o mesmo erro que este comete ao abraçar o desumano mecanismo de mercado, esse “frio” e “implacável” mercado que, nas próprias palavras de Vargas Llosa, “premeia o êxito e castiga o fracasso de maneira implacável” (p. 48), como se assim fosse ou fosse sempre assim – este é um mandamento dos fundamentalistas do mercado – e como se Llosa não soubesse o que essa palavra, “implacável”, esconde.

O livro está a ser, contudo, muito interessante. A leitura prossegue a bom ritmo. Na tribo de Vargas Llosa, cabem liberais respeitáveis e admiráveis, como Adam Smith, Ortega y Gasset entre outros, mas lá está também Friedrich von Hayek, um bispo do fundamentalismo de mercado (1).

(1)    Segundo Llosa, “Hayek refere-se aos países subdesenvolvidos e diz que, felizmente para eles, os países ocidentais puderam prosperar e avançar graças ao seu sistema, de modo a terem agora um modelo a seguir e também poderem receber uma ajuda dos países do Primeiro Mundo na sua luta pelo progresso.” (pág.129) Ora, ou Hayek é ingénuo, ou isto é de um cinismo atroz.

Embora no livro não existam capítulos biográficos de Margaret Tatcher, Ronald Reagan, Von Mises ou Milton Friedman, estes cultores e defensores do neoliberalismo não deixam de ser alvo de admiração e referência por Vargas Llosa que coloca todos no mesmo saco, homens de cultura liberal e neoliberais económicos e políticos.

***
Uma nota final

Aqui prefere-se o liberal Keynes ao neoliberal Hayek.

Aqui admiramos a cultura liberal e os seus defensores, intelectuais como Jacques Barzum, Allan Bloom, Harold Bloom, Ortega e Gasset, George Steiner, Roger Scruton, entre muitos outros intelectuais que podem ser considerados da ala Direita.

Mas não deixamos de escutar os intelectuais da ala Esquerda, marxistas inclusive, como David Harvey, Immanuel Wallerstein, Manuell Castels e outros, como Zygmunt Bauman ou Tony Judt, por exemplo, já falecidos.

Como dizia Ortega e Gasset “Ser de esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil; ambas, com efeito, são formas de hemiplegia moral.”

Em todas as alas há argumentos, vozes e pensamentos que devem ser ouvidos e pesados, ou seja, dignos de consideração.

domingo, outubro 20, 2019

Horror às máquinas (aspiradores matutinos de sábado)

Secadores e aspiradores,
Horrores!

Onde o silêncio repousa
também quero estar,
Mas longe, muito longe
dos cemitérios.

Talvez entre os sobreiros da manhã,
Onde a brisa não sopra ou sopra ligeira,
Afagando a ondulação das searas,
Ainda longe da ceifa e das vis ceifadeiras mecânicas.

Anseio por uma manhã sonhada
Longe de todas as máquinas.

terça-feira, outubro 15, 2019

Os outros cafres da Europa

https://www.nytimes.com/interactive/2019/10/12/opinion/columbus-day-italian-american-racism.html
Italianos recém-chegados aos EUA, Ellis Island, cerca de 1905
Fotografado por Lewis Hine, via Bettmann Archive/Getty Images

Parece que os italianos não foram sempre “brancos” nos EUA.

Excelente artigo no The New York Times sobre o racismo na América:

Brent Staples, “How Italians Became ‘White’”, The New York Times, 2019

(https://www.nytimes.com/interactive/2019/10/12/opinion/columbus-day-italian-american-racism.html), consultado em 13/10/2019

segunda-feira, outubro 14, 2019

Livro lido: A Origem de (Quase) Tudo


Apreciação: ****

O Universo está cheio de mistérios para os quais a Ciência ainda não tem uma explicação satisfatória. Da matéria escura à energia escura, do aparecimento do Universo ao surgimento da Vida, da vinda do Homo sapiens às primeiras cidades, os mistérios e maravilhas aqui abordados são muitos. 

Leitura fácil e aprazível. Divulgação científica da boa.

domingo, outubro 13, 2019

End of summer


Praia do Rei                                                                             © AMCD

Resultados eleitorais – uma nota

Fonte: MAI, 2019, consultado a 13/10/2019


Que alívio para a CDU. Já não precisa de ser bengala do PS, agora que a Direita não espreita na esquina mais próxima. Livrou-se desse papel-empecilho, dessa pedra no sapato que a impedia de caminhar livremente. Pode agora trilhar o seu caminho e regressar ao seu estado natural de coligação crítica dos disfuncionamentos da sociedade capitalista. Tal voz é necessária para que a sociedade corrija ou esteja atenta a certos resultados que vai gerando, em particular, quando se acentua o alargamento da desigualdade à sombra da liberdade, sempre mais livre para uns do que para outros. Liberdade para escolher, dizem os neoliberais, como se essa liberdade de escolha fosse igual para todos e como se tal desigualdade fosse sempre justa. Não é.


domingo, outubro 06, 2019

Hoje vou votar


Nalgumas escolas públicas ainda se ensina em contentores, em pré-fabricados, em espaços que mais parecem estaleiros de obras paradas e em edifícios vetustos. As nossas crianças, os jovens, os professores e todos os que lá trabalham e estudam, merecem uma escola melhor.

Nas Forças Armadas, o que Tancos revelou, acima de tudo, foi o estado degradado em que se encontram as infra-estruturas, os quartéis, as armas e as fardas, fruto de um desinvestimento gritante, muito para além da incompetência de um ministro e das chefias militares. Em Tancos até o reles ladrão reparou na ocasião. Acontece que, ao contrário das outras ordens profissionais, os militares, por natureza da sua profissão, não se podem manifestar politicamente. Até os camionistas têm mais poder reivindicativo do que eles.

O desinvestimento é visível também na degradação do edificado e das condições de trabalho, em tudo o que são serviços públicos: dos hospitais aos tribunais, das esquadras aos quartéis de bombeiros, dos serviços sociais às repartições e aos transportes, das lojas do cidadão com as suas infindas filas e esperas desesperantes (e exasperantes) aos lares de terceira idade.

Infelizmente a tónica reivindicativa dos sindicatos tem residido quase exclusivamente nas questões salariais e carreiras, descurando a urgente necessidade de melhoria das condições de trabalho e de rejuvenescimento das classes profissionais. Hoje a degradação e o envelhecimento estão à vista de todos.

Este estado de coisas acaba por favorecer os que defendem a causa privada e um serviço público “tendencialmente pago” (tendencialmente gratuito é tendencialmente pago, se atendermos à forma com foi introduzido o termo “tendencialmente”) em detrimento da causa pública.

Nos últimos quatro anos, a dívida pública continuou a aumentar em termos absolutos, sendo os futuros imperativos de pagamento e as possíveis imposições draconianas de credores uma espada de Dâmocles sobre as gerações mais jovens. A dívida pública crescente é a porta aberta através da qual a austeridade entrará. E como será quando chegar a recessão? Será que os optimistas que nos governaram pensaram nisso?

Isto está mal. Hoje vou votar. É o mínimo.

sábado, outubro 05, 2019

Freitas do Amaral (1941-2019)



Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Mário Soares e Sá Carneiro orientaram os portugueses nos primeiros tempos da democracia, após o 25 de Abril. Não nos desonraram, antes pelo contrário. Não devem ser esquecidos.

Freitas do Amaral, que agora parte, foi mais do que um político desses primeiros tempos, foi um cidadão empenhado e um político activo, tendo até governado neste século - foi ministro. Foi um amigo da cultura e do saber, um intelectual prolífico. Pensou pela sua própria cabeça, não se acomodando a pensamentos de grupo rebanho. Um exemplo.

Que descanse em paz.

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