Mostrar mensagens com a etiqueta Coronavírus. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Coronavírus. Mostrar todas as mensagens

sábado, maio 02, 2020

Homem-vírus



Não é novidade: o comportamento demográfico da população mundial, considerando o seu crescimento natural ao longo dos tempos, com particular destaque após a Revolução Industrial, é idêntico ao comportamento difusivo de um vírus.

De há uns tempos para cá o ser humano assumiu um comportamento infeccioso em relação ao planeta que habita. A continuar assim sabemos o que acontece. Sabemos o que acontece aos corpos que os vírus infectam.

No entanto não se trata aqui de considerar o ser humano um vírus. Este comportamento evolutivo exponencial e viral do Homo sapiens tem origem bem marcada. Não foi sempre assim.

Deveremos regressar à Era Pré-Industrial? Talvez não seja necessário, mas teremos de mudar de vida, caso queiramos ter um planeta com condições para nos suportar. 

Mas não tenhamos dúvidas: nesta refrega entre Homem e Planeta, a prosseguir, é o Homem que terá os dias contados. A Terra, tal como a Vida, encontrará sempre o seu caminho, com o ser humano ou sem ele.

Vejam só: alguns animais selvagens, mal os homens se retiraram para os seus lares-bunkers, invadiram as ruas vazias das cidades. E nem perderam muito tempo.

Que atrevimento!

Enfim, "o tempo e a maré não esperam por homem nenhum" e os animais selvagens também não.

sexta-feira, abril 10, 2020

Passeio higiénico em retirada


Os passeios higiénicos, esporádicos, converteram-se em rápidas retiradas de meia-hora em direcção ao bunker caseiro. Passeios tristes, passeios vazios pelas ruas quase desertas.

Hoje vi avós à janela no rés-do chão a conversarem com a pequena neta acompanhada pelos pais. O casal e a filha estavam encostados ao automóvel de porta aberta frente à janela. Conviviam assim. Próximos, mas cautelosamente distanciados, a dois metros da janela. Não queriam aproximar-se mais. Havia risos que ecoavam na rua vazia vindos dali. A alegria dos avós, dos pais e da neta. Mais adiante, noutra rua, deparei-me com uma cena idêntica.

Maldito vírus que impõe distâncias entre os entes mais queridos. Maldito vírus que nos tolhe a liberdade.

Vi também papoilas cujas pétalas eram de um vermelho muito vivo. Cresciam junto à base de um sinal de trânsito, no meio do estreito passeio que acompanha a via rápida. Cruzei-me também com um sem-abrigo, um jovem muito envelhecido, encurvado e cabisbaixo. Pressentia-se o sofrimento.

Não me cruzei com mais ninguém.

Regressei a casa.

domingo, abril 05, 2020

Era de paradoxos: um vírus que é um gigante


Todos os dias na TVI, após o Jornal das 8, são agora declamados, contra um fundo negro onde correm as palavras,  os versos do “Monstrengo” da Mensagem de Fernando Pessoa, pela voz do saudoso João Villaret:

        O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo;
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»


9-9-1918
in Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
  - 62.


Um vírus que é um gigante.

Era de paradoxos.

sábado, março 28, 2020

Um estado de sei lá

Parece que estamos a viver dentro de uma história de George Orwell. Tudo isto é demasiado horroroso. Enclausurados em casa com o terror lá fora, e, pior, com o terror cá dentro. O terror a tomar conta de tudo. O medo de virmos a perder os nossos entes mais queridos, mais frágeis e mais velhos. O medo a querer tomar conta de nós como o Grande Irmão a querer zelar por nós. Esse medo parasita, viral.

Vivemos um estado de emergência. Um estado de sei lá.

Um pesadelo orwelliano.

domingo, março 22, 2020

Passeio higiénico

Passeia-te a ti mesmo.

***

Não tendo animais de companhia para passear, passeei-me a mim mesmo hoje, nos termos regulamentares, claro está. O Decreto n.º 2-A/2020, que regulamenta a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, no seu Artigo 5º, alínea i) permite-o, desde que se trate de "deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre".

Realizado o rápido passeio pelas ruas quase desertas em que me cruzei com raros transeuntes em igualdade de circunstâncias, seguiu-se, mais uma vez, tal como no domingo passado, "uma rápida retirada em direcção ao recato do lar-bunker onde se consumiu o resto do dia". Isto já começa a ser o novo normal domingueiro, um estúpido novo normal, diga-se de passagem: rápidas retiradas para o lar-bunker. O problema é que ninguém nos garante que o tal micro-organismo* "«agregado de biomoléculas» patogénico e incapacitado para viver autonomamente fora das células que parasita" (Kutschera, 2008) não o tenha já invadido, insidioso e invasivo que ele é, e aguarde apenas o momento oportuno para nos invadir a nós

____________________________

(*) Com efeito, um vírus não é considerado um organismo e representa uma forma intermédia situada entre o mundo inanimado das moléculas e as células metabolicamente activas. (Kutschera, 2008). Não vamos portanto elevá-lo a micro-organismo, porque organismo é que ele não é (pelo menos autónomo).


Referência

Kutschera, Urlich (2008), Biologia Evolutiva, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013

quinta-feira, março 19, 2020

Evolução do nº de infectados pelo coronavirus, EUA, Europa e China


Fonte: Bloomberg (adaptado)

https://www.bloomberg.com/graphics/2020-wuhan-novel-coronavirus-outbreak/, (consultado a 19/03/2020)

Pela leitura desatenta dos gráficos até parece que os EUA estão numa situação tão grave como a Europa ou a China, mas não é verdade. A Bloomberg devia ter rodeado o gráfico dos E.U.A, com uma lupa, pois o número de infectados nesse país corresponde a apenas 10,3% dos infectados na China e a 9,1% dos infectados na Europa.

domingo, março 15, 2020

Peripatético sob ameaça



Hoje, pela manhã, entre a Praia da Rainha e a Praia do Rei, poucos eram os que se passeavam à beira-mar. Todos devidamente apartados (excepto alguns que iam aos pares), uns correndo, outros caminhando, passando bem à ilharga uns dos outros, não fosse o coronavírus andar por ali.

Depois, a rápida retirada em direcção ao recato do lar-bunker onde se consumiu o resto do domingo.

***

Desta vez o Titanic embateu num vírus, e entre o ir e o não ir ao fundo, lá se vai tentando fingir a normalidade.

***

Tenho-me lembrado nestes dias das palavras de George Steiner que disse que tinha uma certa imagem mental da verdade emboscada ao virar da esquina, à espera de que o homem se aproxime – e a preparar-se para lhe dar uma cacetada na cabeça*; e também de Urlich Beck e da sua Sociedade do Risco, a nossa sociedade do risco.

Estes tempos de excepção colocam-nos naqueles dias de aproximação de apocalipses, os dias do fim, em que é rompida a normalidade da rotina quotidiana. Mas é apenas isso no caso presente: a mera sensação de iminência de um fim.

O vírus não afundará o Titanic. Ficaremos somente um pouco mais conscientes do quão frágil é o navio em que navegamos face a essa verdade que a Natureza nos oferece: a de que estamos sós num universo hostil que só está à espera nalguma esquina que o homem se aproxime para lhe dar uma marretada na cabeça.

É que não era suposto estarmos aqui e contudo estamos.

___________________________
(*) George Steiner, Nostalgia do Absoluto, Relógio D’Água, 2003. Pág. 80 e 81.


Etiquetas