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sábado, agosto 22, 2020

As recordações mais profundas não têm epitáfios


Quando nessa glacial noite de Inverno o Pequod enterrou as amuras vingativas nas frias e maliciosas vagas, fui descobrir Bulkington ao leme. Considerei com simpatia, admiração e temor o homem, que em pleno Inverno e apenas desembarcado de uma perigosa viagem de quatro anos, se alistava incansavelmente para outra tempestuosa aventura, como se a terra lhe queimasse os pés. As coisas mais maravilhosas são quase sempre aquelas de que não se faz menção: as recordações mais profundas não têm epitáfios.

Herman Melville, Moby Dick


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Referência

Herman Melville, Moby Dick (1º vol.), Relógio D’Água, p.139.

terça-feira, agosto 18, 2020

Território


Os homens têm olhado para o deserto como uma terra estéril, terreno livre para quem o quiser atravessar; mas, efectivamente, cada colina, cada vale do deserto tinham alguém que era o seu dono reconhecido e que seria capaz de defender imediatamente o direito da sua família, do seu clã a esse deserto, contra as transgressões. Até mesmo os poços e as árvores tinham os seus donos, que permitiam às pessoas que usassem as segundas como madeira e bebessem livremente dos primeiros, tanto quanto necessitassem, mas que imediatamente reprimiriam quem tentasse tomar conta da sua propriedade e explorá-la a ela ou aos seus produtos com outros, para benefício particular.  

T.E.Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria
Publicações Europa-América, 1989, pp. 85-86

Refugio-me no deserto, neste momento particular, mas nem o deserto, descubro, é um espaço de liberdade. A liberdade colide sempre com a propriedade. O território é um espaço apropriado pelo ser, humano ou não humano. O território, na verdade, faz parte do ser. É a nossa circunstância, um prolongamento do corpo ou um espaço sem o qual o corpo definha. Eu sou eu e a minha circunstância (Ortega y Gasset). O território faz parte dessa circunstância que me define.

sexta-feira, outubro 13, 2017

Grandes aberturas: Afirma Pereira


Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. Um magnífico dia de Verão, cheio de sol e de vento, e Lisboa resplandecia. Ao que parece, Pereira estava na redacção, não sabia que fazer, o director estava de férias, e ele via-se com o problema de preparar a página cultural, pois o Lisboa passara a ter uma página cultural, e tinham-lha confiado. E ele, Pereira, reflectia sobre a morte. Naquele belo dia de Verão, com a brisa atlântica acariciando as copas das árvores e o Sol a brilhar, com uma cidade que cintilava sob a sua janela, e um azul, um azul incrível, afirma Pereira, de uma limpidez que quase feria os olhos, ele pôs-se a pensar na morte. Porquê? Isso, Pereira não sabe dizer. 

Antonio Tabucchi, Afirma Pereira, Publicações Dom Quixote, 2000


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Um livro que devia ser lido pelos ruis ramos deste mundo, em particular os historiadores, em suma, por aqueles que ousam omitir a palavra “fascismo” dos fascículos da nossa História. Realmente, admitamos, a coisa conspurca. Talvez por isso a queiram esconder, mas, o grande problema é que para além de conspurcar, cheira mal. Ele há nódoas que não se deixam apagar.

Aquela gente deixou descendência que caminha connosco. Daí não vem mal ao mundo. O passado ficou lá atrás e temos de saber viver uns com os outros e respeitarmo-nos. Fazemos parte do mesmo país e do mesmo povo e há um futuro a construir. Compreende-se que alguns desses descendentes gostassem de apagar uma parte da história ou de a reescrever de outra forma…É compreensível. Mas não é aceitável. 

sexta-feira, dezembro 30, 2016

Grandes aberturas: Criação


Sou cego, mas não sou surdo. E porque a minha desgraça não é completa ontem fui obrigado a ouvir, durante quase seis horas, um auto-intitulado historiador cuja descrição do que os Atenienses gostam de chamar «as Guerras Persas» era um disparate de tal ordem que, se fosse menos velho e tivesse mais privilégios, ter-me-ia levantado do lugar, no Odeon, e escandalizado Atenas inteira com a resposta que lhe daria.

A verdade é que eu sei qual foi a origem das guerras gregas. Ele não. Como poderia sabê-la? Como poderia um Grego saber uma coisa dessas? Passei a maior parte da minha vida na corte da Pérsia e ainda hoje, com setenta e cinco anos, sirvo o Grande Rei, como servi o seu pai, o meu querido amigo Xerxes, e, antes de Xerxes, o pai de Xerxes, um herói conhecido inclusivamente pelos Gregos como Dario, o Grande.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989

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Assim começa a Criação, de Gore Vidal. Com a irritação de Ciro Spitama, filho de uma grega e de um persa, destacado na sua velhice pelo Grande Rei para ser embaixador da Pérsia em Atenas, onde passará os seus últimos dias. Ciro irrita-se com a descrição que ouve contar de Heródoto acerca dos feitos dos Gregos contra os Persas, numa conferência dada pelo historiador no Odeon. Trata-se de disparates e inverdades, a seu ver. Desta forma é dado o tom ao personagem que, ao longo de toda a história narrada ao seu sobrinho, Demócrito, não se coíbe de desmistificar e minimizar os feitos e as obras dos Gregos em relação aos feitos e às obras dos Persas.

Ciro tem razão, se pensarmos bem. Afinal que relatos persas nos chegaram desses encontros e confrontos? Porventura existiu algum Ésquilo ou algum Heródoto persa que enaltecesse as façanhas dos próprios Persas ou nos transmitisse o seu ponto de vista acerca dos factos? Os Persas não tinham as tradições escritas dos Gregos e as suas façanhas eram valorizadas doutra forma, que não a escrita. Por outro lado os historiadores, os poetas e os dramaturgos gregos, inauguraram uma velha tradição que ainda hoje, infelizmente, persiste nas narrativas dos historiadores actuais: a visão parcial dos factos; o enaltecimento dos feitos realizados pelos seus próprios povos. Desse chauvinismo manso não parecem os historiadores conseguir escapar. Aqui aplica-se um velho provérbio: é o olhar do dono que engorda a galinha. Por muito imparciais que tentem ser, os historiadores acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por trair essa intenção de imparcialidade, nalguma frase ou ideia que deixam inadvertidamente transparecer no seu “imparcial” texto.


Ciro Spitama é uma personagem brilhante e marcante no seu sarcasmo em relação aos feitos dos Gregos. Ele questiona e escarnece de uma civilização que por nós é unanimemente aclamada e da qual nos orgulhamos, pois é a raiz da nossa própria civilização. Nesta obra de Gore Vidal a civilização Grega é colocada no seu devido lugar, não só em relação à Persa, mas também em relação à Chinesa e à Hindu.

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P.S. É uma grande obra, esta Criação de Gore Vidal. Perdoa-se-lhe a alocução latina “non sequitur” (pág. 332) no pensamento do persa do séc. V a.C. entre outros, poucos, anacronismos. Não chegam para a beliscar. 

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Os sábios e os políticos deste Mundo

Confúcio era um dos poucos sábios que fazem realmente perguntas para saber o que não sabem. Regra geral, os sábios deste Mundo preferem prender o ouvinte com perguntas cuidadosamente preparadas tendo em vista obter respostas que reflictam as opiniões imutáveis do sábio.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 477

Felizmente – ou infelizmente – o homem público acaba sempre por se confundir com o povo que dirige. Quando o general Péricles pensa em Atenas, está a pensar em si próprio. Quando ajuda a primeira, ajuda o segundo.


Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 602

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Conrad

Joseph Conrad (1857-1924)

O mar veio ao nosso encontro, o mar imenso, sem caminhos e sem voz.

Joseph Conrad

Conrad navegou, decisivamente, nos mares do sul. Naqueles mares e latitudes das calmarias desesperantes. Dos doldrums da alma. Naqueles mares onde vagueiam perdidas as tempestades tropicais e os tufões, como criaturas que os varrem em busca de navios igualmente perdidos. Foi um dos raros escritores marinheiros. Um desbravador de horizontes, de povos, de homens e de mentes. Um homem de espírito aberto e olhar perscrutador, como todos os marinheiros que já navegaram sob diversos céus e testemunharam as várias intensidades da luz, em todas as latitudes. Com certeza vivenciou muito daquilo que nos conta. E para o distante Sul consegue transportar-nos. Para lá dos limites da sombra, para lá do equador. Mesmo que estejamos numa sala abrigada ou na solidão de um quarto fechado.

Conrad é um pintor de paisagens e de almas – do pânico à quietude, dos tétricos suores frios às sezões das terras quentes. Mas os seus quadros exigem um certo afastamento físico para que se tenha toda a percepção da cena pintada, como certos quadros impressionistas.

Na tripulação de uma escuna ancorada frente a uma baía, numa ilha tropical, alguém tange uma guitarra que soa no ar parado, quente e húmido dos trópicos. Alguém tange uma guitarra, atente-se, não a toca, tange-a (um escritor medíocre não possui este domínio da palavra nem do verbo. Um escritor medíocre diria, “toca guitarra”). E Karain, o rajá psicótico, surge no tombadilho ladeado pela sua escolta de guerreiros malaios e pelo velho portador do amuleto, afugentador de espíritos, que o acompanha sempre, para onde quer que vá, cabisbaixo e de olhos postos no chão.

Inesperadamente, o céu turva-se. Então cai uma chuva plúmbea, copiosa, quente e tropical.

A detonação isolada de um trovão ribombou no vazio com uma violência que parecia capaz de abalar o círculo das colinas e um dilúvio quente desprendeu-se dos céus. O vento amainou. Dentro da cabina fechada, suávamos; as nossas faces escorriam; lá fora, a baía espumava como se fervesse; a chuva caía na perpendicular, pesada como chumbo; varria o tombadilho, vazava do massame, golfava, soluçava, esparrinhava, murmurava na noite cega. O candeeiro ardia com dificuldade. Hollis, de tronco nu, jazia escondido sobre o albóio de acesso ao paiol inferior, de olhos fechados e imóvel como um cadáver despojado; à sua cabeça, Jackson tangia a guitarra e arfava uma endecha de amores sem esperança e olhos como estrelas.

Joseph Conrad, “Karain: uma recordação” in Histórias Inquietas, Assírio & Alvim, 2010, pág. 28


sábado, abril 05, 2014

Um certo tipo de país

Estamos em presença de um povo manifestamente incapaz de se governar a si próprio. E sabes o que acontece aos povos que não se conseguem governar a si próprios? Nem mais. Vêm povos de fora governá-los.

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, Biblioteca Sábado, 2008, pág. 37.

Ao lê-lo, não sei porquê, veio-me à ideia um certo tipo de país. Aquilo a que alguns chamam um protectorado.

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Alvorada na Mancha


Entretanto já começavam a gorjear nas árvores mil espécies de coloridos passarinhos, que nos seus diversos e alegres cantos pareciam dar as boas-vindas e saudar a fresca aurora, que pelas portas e balcões do Oriente ia descobrindo a formosura do seu rosto, sacudindo dos seus cabelos um número infinito de pérolas líquidas, cujo suave licor, banhando as ervas, dava a impressão de serem elas que ressumavam e soltavam um branco e miúdo aljôfar; os salgueiros destilavam maná saboroso, riam-se as fontes, murmuravam os arroios, alegravam-se as selvas e enriqueciam-se os prados com a sua vinda.

Cervantes, Dom Quixote, Vol. II. Livraria Civilização Editora, 1999. Pág. 82-83.

Monasterio de Sal by Paco De Lucía on Grooveshark

terça-feira, julho 07, 2009

A Nossa Força...


«Não eram colonizadores; desconfio que o seu governo se limitava a extorquir e nada mais. Eram conquistadores, e para isso bastava a força bruta - nada que seja motivo de vanglória, quando a temos, porque a nossa força não passa de um acaso decorrente da fraqueza dos outros. Apoderavam-se do que podiam só pelo prazer de se apoderarem. Tratava-se apenas de roubo com violência, assassínio agravado em grande escala e homens que se entregavam a isso às cegas, como aliás é próprio daqueles que enfrentam as trevas. A conquista da terra, que significa, sobretudo, tirá-la àqueles que têm uma cor da pele diferente ou o nariz ligeiramente mais achatado que o nosso, não é coisa bonita de se ver, se repararmos bem.»

Joseph Conrad, O Coração das Trevas

quarta-feira, agosto 27, 2008

Alexis de Tocqueville e a industrialização da cultura

Alexis de Tocqueville calcorreou as estradas da América no século XIX, e fez uma análise acutilante da jovem democracia americana em contraposição às aristocracias europeias. A sua análise foi tão precisa que ainda hoje é valida. Na sua viagem, Toqueville assistiu à democratização de uma sociedade e à industrialização (massificação) da cultura. A massificação da cultura foi paralela à emergência das sociedades industriais. Sem menosprezar as qualidades da democracia, Tocqueville constatou que, no geral, se verificava um empobrecimento da cultura nas sociedades industriais e democráticas relativamente à das sociedades aristocráticas.

Desde então a cultura americana difundiu-se pelo mundo, tornou-se global. Ao nível cultural os resultados desta difusão são evidentes: um aumento exponencial da produção cultural e uma perda de qualidade que se aprofunda com o caminhar dos tempos. Se atentarmos ao caso da literatura em Portugal, por exemplo, basta uma simples comparação entre as actuais obras e as que eram escritas no aristocrático século XIX e nos séculos precedentes para verificar essa degradação. O mesmo se pode verificar em muitos outros países, alvos da massificação cultural trazida pela industrialização e pela mercantilização da cultura.

Abaixo transcreve-se a análise comparativa de Tocqueville entre a literatura dos tempos democráticos (e industriais) e a dos tempos aristocráticos. A profusão literária dos nossos dias reflecte o fenómeno descrito por Tocqueville.

«A democracia não somente faz estender o gosto pelas letras às classes industriais; ela introduz o espírito industrial no seio da literatura.


Nas aristocracias, os leitores são difíceis e pouco numerosos; nas democracias, é menos difícil agradar-lhes, e o seu número é prodigioso. Daqui decorre que, nos povos aristocráticos, não se deve esperar a celebridade literária sem o concurso de esforços enormes, e que tais esforços, que podem conferir muita glória, não trarão, no entanto muito dinheiro; ao passo que, nas nações democráticas, um escritor pode gabar-se de obter sem dificuldade um renome medíocre e uma grande fortuna. Para isso, não é necessário que o admirem bastando tão-somente que o aprovem.

A turba sempre crescente dos leitores e a sua necessidade contínua de novidades asseguram a venda de livros que de modo nenhum estimam.


Nos tempos de democracia, o público age frequentemente com os autores como de ordinário os reis com os seus cortesãos. De que mais precisam as almas banais que nascem nas cortes, ou que são dignas de aí viver?

As literaturas democráticas abundam sempre desses autores que não vêem nas letras mais que uma indústria, e, por um punhado de grandes escritores que aí se vislumbram, podem contar-se aos milhares os vendedores de ideias.»


Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, Capítulo III

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