O mar veio ao nosso encontro, o mar imenso, sem caminhos e sem voz.
Joseph Conrad
Conrad navegou, decisivamente,
nos mares do sul. Naqueles mares e latitudes das calmarias desesperantes. Dos doldrums da alma. Naqueles mares onde vagueiam
perdidas as tempestades tropicais e os tufões, como criaturas que os varrem em
busca de navios igualmente perdidos. Foi um dos raros escritores marinheiros. Um
desbravador de horizontes, de povos, de homens e de mentes. Um homem de espírito
aberto e olhar perscrutador, como todos os marinheiros que já navegaram sob
diversos céus e testemunharam as várias intensidades da luz, em todas as latitudes. Com certeza vivenciou muito daquilo que nos
conta. E para o distante Sul consegue transportar-nos. Para lá dos limites da
sombra, para lá do equador. Mesmo que estejamos numa sala abrigada ou na solidão de um
quarto fechado.
Conrad é um pintor de paisagens e
de almas – do pânico à quietude, dos tétricos suores frios às sezões das terras
quentes. Mas os seus quadros exigem um certo afastamento físico para que se
tenha toda a percepção da cena pintada, como certos quadros impressionistas.
Na tripulação de uma escuna ancorada
frente a uma baía, numa ilha tropical, alguém tange uma guitarra que soa no ar
parado, quente e húmido dos trópicos. Alguém tange uma guitarra, atente-se, não
a toca, tange-a (um escritor medíocre não possui este domínio da palavra nem do
verbo. Um escritor medíocre diria, “toca guitarra”). E Karain, o rajá psicótico,
surge no tombadilho ladeado pela sua escolta de guerreiros malaios e pelo velho
portador do amuleto, afugentador de espíritos, que o acompanha sempre, para
onde quer que vá, cabisbaixo e de olhos postos no chão.
Inesperadamente, o céu turva-se. Então cai uma chuva plúmbea,
copiosa, quente e tropical.
A detonação isolada de um trovão ribombou no vazio com uma violência
que parecia capaz de abalar o círculo das colinas e um dilúvio quente
desprendeu-se dos céus. O vento amainou. Dentro da cabina fechada, suávamos; as
nossas faces escorriam; lá fora, a baía espumava como se fervesse; a chuva caía
na perpendicular, pesada como chumbo; varria o tombadilho, vazava do massame, golfava,
soluçava, esparrinhava, murmurava na noite cega. O candeeiro ardia com
dificuldade. Hollis, de tronco nu, jazia escondido sobre o albóio de acesso ao
paiol inferior, de olhos fechados e imóvel como um cadáver despojado; à sua
cabeça, Jackson tangia a guitarra e arfava uma endecha de amores sem esperança
e olhos como estrelas.
Joseph Conrad, “Karain: uma
recordação” in Histórias Inquietas,
Assírio & Alvim, 2010, pág. 28
É sempre um gosto reencontrar Conrad.
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