quinta-feira, maio 26, 2011

Para onde pende o prato da balança

A leitura prossegue a bom ritmo.

David Harvey analisa, como ninguém, a realidade com duas lentes bastante potentes: a lente da geografia e a lente marxista. Tratam-se de dois instrumentos de análise que, combinados e bem utilizados, conferem ao cientista social uma capacidade acrescida de leitura e compreensão do mundo, da contemporaneidade, da globalização do capitalismo, das suas causas e dos seus efeitos.

O seu ataque ao capitalismo não é cego. Ele reconhece nessa forma de organização económica e social virtudes e defeitos. Contudo, a leitura da sua obra revela claramente para onde pende o prato da balança.

***

«A saga do capitalismo está repleta de paradoxos, ainda que a maior parte das formas de teoria social (sobretudo a teoria económica) renuncie inteiramente a tê-los em conta. Do lado negativo, temos as crises económicas periódicas e muitas vezes localizadas que pontuaram a evolução do capitalismo, incluindo as guerras mundiais intercapitalistas e interimperialistas, os problemas da degradação ambiental, a perda de habitats de biodiversidade, o aumento em flecha da pobreza entre populações em crescimento, o neocolonialismo, as graves crises de saúde pública, as múltiplas alienações e exclusões sociais, e as tensões provocadas pela insegurança, a violência e os desejos insatisfeitos. Do lado positivo, há algumas pessoas que vivem num mundo onde os níveis de vida e de bem-estar material nunca foram tão elevados, onde as viagens e comunicações passaram por uma revolução e onde as barreiras espaciais físicas (mas não sociais) às interacções humanas se reduziram muito, onde os progressos médicos e biomédicos proporcionam a muitos uma vida mais longa, onde se construíram cidades imensas, em desenvolvimento e, em muitos aspectos, espectaculares, onde o conhecimento prolifera, onde a esperança está sempre a brotar e onde tudo parece possível (desde a autoclonagem até às viagens espaciais)

David Harvey, O Enigma do Capital, Bizâncio. 2011, pág. 136

domingo, maio 22, 2011

La Puerta del Sol


Que rios desaguam na Porta do Sol?

E porque param ante a Porta do Sol?

Que aguardam ante a Porta do Sol?

Ousarão abri-la?

Ousarão mudar o mundo?

Que haverá para lá da Porta do Sol?

Que sinos para lá dela dobrarão?

Serão os sinos da revolução?

***

Pois que seja.

Que se encham mil praças e mil gargantas, para que tremam os poderosos, lá no alto das suas ebúrneas torres.

Ou será necessário fazê-las tombar com a força do mar?




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Que coisa curiosa, este caldo ideológico.

Um CDS social democrata.
Um PSD liberal, mui neoliberal.
Um PS, social democrata na palavra, liberal na acção.
Um BE socialista.
Uma CDU marxista-leninista e ambientalista.

O PS é o mais esquizofrénico dos partidos: o rótulo não condiz com a palavra, nem esta com a acção. O PSD também anda próximo neste desfasamento.

Assim vai o país, submerso na esquizofrenia política enquanto a realidade o ultrapassa. Bate-o aos pontos.

domingo, maio 15, 2011

Grandes aberturas: O Homem da Multidão


René Magritte, Le fils de l'homme, 1964


«Diz-se, e justificadamente, de certo livro alemão, que «es lässt sich nicht lesen» - não se deixa ler. Há determinados segredos que não se deixam desvendar. Existem homens que morrem de noite na cama, apertando entre as suas as mãos de espectrais confessores, olhando-os lastimavelmente nos olhos, que morrem com o desespero no coração e convulsões na garganta em virtude do horror de mistérios que não se prestam a ser revelados. De vez em quando - ai de nós! - a consciência do homem carrega um tão pesado fardo de horror que só no túmulo consegue libertar-se dele. E assim fica por divulgar toda a essência do crime.

(...)
Com a testa comprimida de encontro ao vidro, entretinha-me deste modo a contemplar a multidão, quando subitamente se me deparou uma fisionomia (a de um velho decrépito, dos seus sessenta e cinco ou setenta anos de idade) que imediatamente me atraiu e monopolizou a atenção, dada a absoluta idiossincrasia da sua expressão. Nunca havia visto coisa que se parecesse, mesmo que remotamente, com tal expressão. Lembro-me perfeitamente de que a minha primeira ideia, ao aperceber-me dela, foi que Retzch, se a visse, a preferiria de longe às suas próprias encarnações pictóricas do Demónio. Enquanto me esforçava, durante o breve momento da minha pesquisa inicial, por analisar de algum modo o significado que ela transmitia, surgiram-me confusa e paradoxalmente no espírito as noções de grande capacidade mental, de precaução, de mesquinhez, de avareza, de frieza, de maldade, de sede de sangue, de triunfo, de contentamento, de extremo terror, de intenso - de profundo desespero. Senti-me estranhamente excitado, surpreso, fascinado. «Que estranha história», disse para comigo, «está inscrita naquele peito!» Sobreveio-me um desejo ardente de não perder o homem de vista - de ficar a saber mais sobre a sua pessoa. Envergando precipitadamente o sobretudo e pegando no chapéu e na bengala, dirigi-me para a rua e abri caminho por entre a multidão no sentido que o tinha visto tomar, pois ele já desaparecera. Com alguma dificuldade, consegui finalmente descobri-lo, aproximei-me e segui-o de perto, mas cautelosamente, de modo a não lhe despertar a atenção.»

Edgar Allan Poe, "O Homem da Multidão", Histórias Extraordinárias, Publicações Europa-América

***

Este conto de Poe, digo para comigo, podia ter sido em Lisboa de novecentos, num final de dia, no Rossio - hora de ponta. Tudo podia ter começado na Pastelaria Suíça. Dali é possível observar através da janela o bulício da rua, os transeuntes apressados e a circulação de fim de tarde.
E eis que de repente um transeunte prende a nossa atenção (nossa, a de leitores, e tudo por culpa de Poe). As suas feições são imperscrutáveis. Querem dizer tudo e não querem dizer nada. Erguemo-nos curiosos e seguimos o homem. Queremos saber mais acerca de tão estranha criatura. Que estranho. O ritmo da sua caminhada é inconstante, ora se anima e caminha com vigor, ora esmorece e parece desesperar. Tudo depende do caudal de multidão que o envolve. E o homem circula no caudal. No final descobrimos que este homem vive no fluxo e em função dele. Procura-o sempre onde ele é mais intenso. À noite dirige-se apressadamente para as ruas dos bairros boémios (podia ser o Bairro Alto ou o Cais do Sodré), para as docas, onde alguns ainda deambulam, e assim continua até ao raiar do dia e para além dele, sempre, sempre, sem parar...

sábado, maio 14, 2011

sexta-feira, maio 13, 2011

Curiosidade infantil

A curiosidade é sempre infantil. Não há outra.

Esse é o segredo que todo o professor ser deveria saber: para bem ensinar é preciso despertar a curiosidade infantil em quem quer que seja, ou, por outras palavras, acordar a criança que existe em cada um de nós.

terça-feira, maio 10, 2011

Antes da palavra, o gesto

Antes da palavra nos atingir, já fomos fulminados pelo gesto.

Os horizontes de James Knight-Smith

Breath - 2008

«Permanecia muitas vezes na costa e quando observava o oceano sob todas as condições atmosféricas, invadia-me uma sensação de grande calma. Nunca me perguntei porquê. Sei apenas que a água é incrivelmente relaxante para mim.

Sempre quis capturar este sentimento na arte e lutei com esta ideia durante muito tempo, primeiro em desenhos, depois em fotografias. Foi por puro acaso que um dia, no ano passado, capturei finalmente o que queria. Desde então, trabalhei no aperfeiçoamento daquele estilo.

As minhas fotografias são simples composições, na maior parte céu e água, com um horizonte central. São fotos de cenas vulgares apresentadas de um modo diferente. Não se trata apenas de visão, mas sim de usar todas as minhas sensações, tentado trazê-las para as fotografias.

Estamos hoje todos muito ocupados, correndo às volta, procurando a próxima coisa a fazer, em vez de gozarmos o momento presente. Espero, ao apresentar ao observador formas mais abstractas, que consiga proporcionar-lhe um espaço de tranquilidade para seu usufruto.»

James Knight-Smith, “A series of moments”, Visura, Issue 11, 2010

***

As fotografias de James Knight-Smith transmitem-me uma grande sensação de calma e paz, de tal forma, que não as larguei mais assim que as vi e, de tempos a tempos, lá vou à Visura contemplá-las. Melhor do que esta contemplação só a observação directa dos horizontes marinhos. Horizontes sim, e não horizonte, pois aquela linha ao fundo, entre o oceano e o céu, nunca é a mesma e é muito mais do que uma linha.


Tranquility - 2009



domingo, maio 08, 2011

Essa gente que nunca se engana

Duvidar sempre, sempre, daquele que nunca duvida, mas, sobretudo, nunca, nunca o tomar como guia.

sábado, maio 07, 2011

Feira do Livro

Visitei ontem a Feira do Livro de Lisboa, lá pelas 23:00 e, maravilha das maravilhas, chovia, ventava e trovejava. Podia aproximar-me das bancas sem obstáculos e deter-me na egoísta contemplação de lombadas e lombadas, todas bem alinhadas nas caixas das pechinchas. Não havia “happy-hour”, mas foi uma felicidade. Nunca tinha visitado a Feira do Livro no meio de uma pequena intempérie. Eis as pechinchas adquiridas a preço de banana:


Livre Mente

Fernando Savater

Preço na Feira: € 3,0

Diferença Internet-Feira: €11,3

Relógio D`Água

Preço na Internet: € 14,30

*

Vida de Sólon

Plutarco

Relógio D`Água

Preço na Internet: € 9

Preço na Feira: € 5,0

Diferença Internet-Feira: €11,3

*

Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por Volta de 1900

Walter Benjamim

Preço na Internet: € 12,05

Preço na Feira: € 5,0

Diferença Internet-Feira: €7,05

*

Vida e Sociedade - Nos Primórdios da Democracia

Verbo

Preço na Internet: € 36,33

Preço na Feira: € 5,0

Diferença Internet-Feira: €31,33

*

Vida e Sociedade – No Renascimento

Verbo

Preço na Internet: € 36,33

Preço na Feira: € 5,0

Diferença Internet-Feira: €31,33

*

Se tivessem sido adquiridos através da Internet, teriam custado € 108,01. Na Feira foram € 23,0. Uma diferença de € 85,01!

Esta é uma razão pela qual gosto de visitar a Feira do Livro.

Chovem pesadas palavras.

Abramos os guarda-chuvas.

A comunicação do Presidente

Algumas frases que ficaram do Presidente Cavaco Silva na sua comunicação ao País:

"Trabalhar melhor!"
"Poupar mais!"
"Não podemos gastar acima das nossas possibilidades!"

***

No mesmo momento em que furtam a cada trabalhador português uma percentagem do seu vencimento através de uma taxa de remuneração extraordinária (na verdade, um roubo extraordinário), dizem-lhe, com uma palmadinha nas costas: "Vá lá Zé, tens de trabalhar melhor." E se pagassem melhor? E se as horas extraordinárias deixassem de ser taxadas? Não iríamos, dessa forma, trabalhar melhor? Não se motiva ninguém para o trabalho, roubando-lhe parte do salário.

"Poupar mais!" Quem? Os endividados? Os desempregados? Os pensionistas? Os depauperados? Os roubados? Por amor de Deus Sr. Presidente!

"Não podemos gastar acima das nossas possibilidades!" Quem? Deve estar a referir-se aos endividados e ao Estado, também ele endividado. Ou será que se refere à maior parte dos portugueses ou aos idosos, que mal têm dinheiro para os medicamentos ou para se deslocar pelos seus próprios meios ao hospital mais próximo, que por vezes está a milhas?

***

Quem se endividou indevidamente, por má gestão do rendimento familiar, ou da coisa pública, ou da governação, ou do que quer que seja, que pague a dívida que contraiu. Neste momento, não é isso que está a acontecer. Neste momento, está a pagar o justo pelo pecador, ou melhor, está a pagar o que poupou pelo devedor, o que se sacrificou pelo que não se importou.

Mas o pior de tudo isto, é que terão de ser as gerações futuras a pagar também pela actual corja que se endividou e governou como se não houvesse amanhã, como se o dinheiro nascesse numa cornucópia inesgotável. Foi um fartar vilanagem...Na verdade, governar assim até é fácil: "É preciso de dinheiro? Não faz mal. Vai-se ao Totta."

Enfim...é uma injustiça e é insuportável.

terça-feira, maio 03, 2011

Natureza


A Natureza é cultural. A Cultura é natural. Dissociar o Homem da Natureza é um artificialismo grosseiro que altera a forma de ler o mundo.
Afinal o que é a Natureza? E o que é o Homem? Não faz o Homem parte da Natureza? Que sentido faz então, dissociar estas duas categorias quando se estudam os fenómenos à superfície da Terra?

***

«A natureza tem sido modificada pela acção humana ao longo dos tempos. O ambiente é uma categoria que tem de incluir campos que foram desbravados, pântanos e zonas húmidas que foram dre­nados, rios que foram sujeitos a transformações e estuários que foram dragados, florestas que foram abatidas e replantadas, estra­das, canais, sistemas de irrigação, vias-férreas, portos e ancora­douros, pistas de aterragem e terminais, barragens, centrais gera­doras de energia e centrais distribuidoras de electricidade, redes de canalização e de esgotos, cabos e redes de comunicação, enormes cidades, subúrbios que alastram, fábricas, escolas, casas, hospitais, centros comerciais e destinos turísticos. Acresce que esses am­bientes são habitados por espécies inteiramente novas (cães, gatos, estirpes de gado e galinhas sem penas) concebidos por práticas reprodutivas selectivas (suplementadas hoje por práticas directas de engenharia genética que modificam culturas como o milho e os tomates) ou que sofreram mutações ou encontraram novos nichos ambientais (pensemos nos padrões de doenças, como a gripe das aves, que sofreram mutações e começaram por se instalar nos ambientes recém-construídos da criação em fábrica de galinhas sem penas). Pouco resta à superfície do planeta Terra que possa ser concebido como natureza pura e original, sem a mão do homem. Por outro lado, é absolutamente natural as espécies, incluindo a nossa, mo­dificarem o seu ambiente para que possam reproduzir-se. Fazem­-no as formigas, as abelhas e, da forma mais espectacular, os castores. Do mesmo modo que um formigueiro é absolutamente natural, também a cidade de Nova Iorque o é, decerto.»

David Harvey, O Enigma do Capital, Bizâncio, 2011, pág. 100

segunda-feira, maio 02, 2011

Morreu um terrorista

Hoje morreu um terrorista. Bin Laden era isso, na sua essência. Dizem, contudo, que ainda não terminou a guerra contra o terrorismo, como se estivessem a elucidar-nos. Como se estivessem a contar-nos uma grande novidade.

Enquanto houverem dois homens à superfície da Terra, haverá sempre um, pelo menos um, potencial terrorista.

Este é um dos significados da história bíblica de Abel e Caim.

domingo, maio 01, 2011

Se eles pudessem...

Breaker Boys, 1910

Se eles pudessem, as crianças ainda trabalhariam em todos os países do nosso mundo. As nossas crianças. O trabalho infantil, que prossegue nos países do Terceiro Mundo, onde o Estado não protege os filhos dos trabalhadores pobres, é um sinal da persistência dessa gente. Nesses países, os empresários sem escrúpulos - ou na linguagem marxista, os capitalistas - e as multinacionais, avançam à rédea solta e ainda se dão ao desplante de escravizar o trabalho.

Contra esta gente, temos de erguer barricadas intransponíveis e do alto delas, elevar bem a nossa voz: NÃO PASSARÃO!


Islamabad, 2011. Raparigas numa fábrica de tijolos.

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