René Magritte, Le fils de l'homme, 1964
«Diz-se, e justificadamente, de certo livro alemão, que «es lässt sich nicht lesen» - não se deixa ler. Há determinados segredos que não se deixam desvendar. Existem homens que morrem de noite na cama, apertando entre as suas as mãos de espectrais confessores, olhando-os lastimavelmente nos olhos, que morrem com o desespero no coração e convulsões na garganta em virtude do horror de mistérios que não se prestam a ser revelados. De vez em quando - ai de nós! - a consciência do homem carrega um tão pesado fardo de horror que só no túmulo consegue libertar-se dele. E assim fica por divulgar toda a essência do crime.
(...)
Com a testa comprimida de encontro ao vidro, entretinha-me deste modo a contemplar a multidão, quando subitamente se me deparou uma fisionomia (a de um velho decrépito, dos seus sessenta e cinco ou setenta anos de idade) que imediatamente me atraiu e monopolizou a atenção, dada a absoluta idiossincrasia da sua expressão. Nunca havia visto coisa que se parecesse, mesmo que remotamente, com tal expressão. Lembro-me perfeitamente de que a minha primeira ideia, ao aperceber-me dela, foi que Retzch, se a visse, a preferiria de longe às suas próprias encarnações pictóricas do Demónio. Enquanto me esforçava, durante o breve momento da minha pesquisa inicial, por analisar de algum modo o significado que ela transmitia, surgiram-me confusa e paradoxalmente no espírito as noções de grande capacidade mental, de precaução, de mesquinhez, de avareza, de frieza, de maldade, de sede de sangue, de triunfo, de contentamento, de extremo terror, de intenso - de profundo desespero. Senti-me estranhamente excitado, surpreso, fascinado. «Que estranha história», disse para comigo, «está inscrita naquele peito!» Sobreveio-me um desejo ardente de não perder o homem de vista - de ficar a saber mais sobre a sua pessoa. Envergando precipitadamente o sobretudo e pegando no chapéu e na bengala, dirigi-me para a rua e abri caminho por entre a multidão no sentido que o tinha visto tomar, pois ele já desaparecera. Com alguma dificuldade, consegui finalmente descobri-lo, aproximei-me e segui-o de perto, mas cautelosamente, de modo a não lhe despertar a atenção.»
***
Este conto de Poe, digo para comigo, podia ter sido em Lisboa de novecentos, num final de dia, no Rossio - hora de ponta. Tudo podia ter começado na Pastelaria Suíça. Dali é possível observar através da janela o bulício da rua, os transeuntes apressados e a circulação de fim de tarde.
E eis que de repente um transeunte prende a nossa atenção (nossa, a de leitores, e tudo por culpa de Poe). As suas feições são imperscrutáveis. Querem dizer tudo e não querem dizer nada. Erguemo-nos curiosos e seguimos o homem. Queremos saber mais acerca de tão estranha criatura. Que estranho. O ritmo da sua caminhada é inconstante, ora se anima e caminha com vigor, ora esmorece e parece desesperar. Tudo depende do caudal de multidão que o envolve. E o homem circula no caudal. No final descobrimos que este homem vive no fluxo e em função dele. Procura-o sempre onde ele é mais intenso. À noite dirige-se apressadamente para as ruas dos bairros boémios (podia ser o Bairro Alto ou o Cais do Sodré), para as docas, onde alguns ainda deambulam, e assim continua até ao raiar do dia e para além dele, sempre, sempre, sem parar...