sábado, junho 30, 2012

O medo


Uma vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar – irrefreavelmente.

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.  Pág. 15.

O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demónios que se aninham nas sociedades abertas da nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável.

Zygmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos. Zahar, Rio de Janeiro.  Pág. 32


O medo?! Conhecemo-lo bem e não é de agora, ao contrário do que diz Bauman, que o associa às "sociedades abertas da nossa época". Como se o medo não nos tivesse acompanhado desde sempre, associado a essa incerteza do futuro e à imprevista aparição da morte. É um demónio intemporal. Recuemos. Após a IIª Grande Guerra, as sociedades ocidentais não estavam mais resguardadas do medo do que “as sociedades abertas da nossa época”. Dos céus, a qualquer momento, poderia abater-se sobre elas, uma intensa chuva de mísseis nucleares. Alguém teria carregado no botão, do outro lado, e restariam alguns segundos para o adeus. A ilusória “segurança” dos trinta gloriosos anos estava assombrada por uma ténue cortina de medo. Vivia-se então o equilíbrio do terror nuclear, o que gerava um nervoso miudinho, quase imperceptível entre os viventes conscientes.

Mas se recuarmos ainda mais, até à Idade Média, encontraremos o medo em cada cidade, em cada castelo, em cada aldeia, em cada caminho. Fomes, pestes, guerras, assomavam-se com frequência no horizonte, quando não investiam implacavelmente sobre os mortais. Cada castelo, cada muralha, cada catedral são monumentos ao medo. Nas catedrais procurava-se o amparo divino do mundo celestial contra as ameaças do mundo terreno. Buscava-se a salvação, acima de tudo, e os ricos compravam indulgências. Foi uma Era de terror profundo e reduzida esperança média de vida.

Nos Descobrimentos, o medo embarcava em cada navio – adamastores e pesadelos de escorbuto…O medo despertava a imaginação dos homens e navegar para o tórrido sul poderia significar rumar para o Inferno. Quantos dos que partiram à descoberta jamais regressaram? Navegava-se para o desconhecido, e o desconhecido é a casa do medo.

Mas Bauman, um dos mais lúcidos pensadores do mundo actual, não deixa de ter razão quando afirma que “a insegurança do presente e a incerteza do futuro produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável”. Era suposto vivermos já com maior segurança, mas a doutrina económica e política dominante no planeta tem tornado a vida da larga maioria dos seres humanos cada vez mais precária. Injustamente.

***

PS - Há uma canção de Zeca Afonso em que o cantor trata o medo por amigo. Um amigo que nos alerta e nos faz escapar mais depressa à aproximação dos que pela madrugada, ameaçadoramente, nos querem  prender, torturar e matar.

sexta-feira, junho 29, 2012

Balotelli

          Castagnaro, Verona, Itália

segunda-feira, junho 25, 2012

Cornelius Castoriadis, outro grande pensador falecido no final do século XX, que anteviu onde tudo isto iria parar


Dizia ele:

Desde há quinze anos que a profunda regressão mental das classes dirigentes e dos quadros políticos que conduziu à «liberalização» a todo o custo da economia (da qual em França os «socialistas» foram os heróicos protagonistas) e à globalização cada vez mais efectiva da produção e das trocas comerciais, tiveram como consequência a perda do controle por parte dos Estados das suas próprias economias. Como era de esperar, foram acompanhadas por uma expansão da especulação que, a cada dia que passa, transforma ainda mais a economia capitalista num casino.”

Cornelius Castoriadis, A Ascensão da Insignificância. Bizâncio,2012. Pág. 30
(Os sublinhados são nossos).

O trecho acima foi escrito em 1995 (dois anos antes da sua morte) e constitui um post-scriptum a um texto de 1982. Acerta em tudo. Mas não foi só em França - sabemos agora - que os «socialistas» de “terceira via” abriram o caminho à «liberalização» da economia, com as consequências nefastas que hoje nos afectam. Foi uma orientação seguida em toda a Europa onde os ditos desgovernaram. Resultado: os Estados estão hoje reféns dos mercados financeiros, quais casinos da economia capitalista.

A qualidade das classes dirigentes e dos quadros políticos, essa, continua pelas ruas da amargura (dirijamos o nosso olhar para Merkel, por exemplo, e oiçamos as suas “brilhantes” intervenções). Outros já nem políticos são, na verdadeira acepção da palavra: são técnicos e homens de palha ao serviço de interesses outros que não os de quem os elegeu. Como dizia Castoriadis, “vivemos a sociedade dos hobbies e dos lobbies”. Ongoings, estão a ver?!

domingo, junho 24, 2012

Helena de Tróia

Antonio Canova, Helena de Tróia, 1807, Museu de Copenhaga


Deste modo pois se sentavam na muralha os regentes dos Troianos.
Assim que viram Helena a avançar em direcção à muralha,
sussurram uns aos outros palavras apetrechadas de asas:


“Não é ignomínia que Troianos e Aqueus de belas cnémides
sofram durante tanto tempo dores por causa de uma mulher destas!
Maravilhosamente se assemelha ela às deusas imortais.
Mas apesar de ela ser quem é, que regresse nas naus;
que aqui não fique como flagelo para nós e nossos filhos!”

Assim falaram. Mas Príamo com sua voz chamou Helena.
“Chega aqui querida filha, e senta-te a meu lado,
para veres o teu primeiro marido, teus parentes e teu povo –
pois no meu entender não tens culpa, mas têm-na os deuses,
que lançaram contra mim a guerra cheia de lágrimas dos Aqueus

Homero, Ilíada, III, vv. 153 - 165

Piano Concerto No.2 in C Minor,Moderato by Rachmaninov on Grooveshark


Primeiro vem a estrada

Auto-estrada Federal BR 222 que atravessa a Amazónia no estado do Pará

Primeiro vem a estrada com todas as suas promessas de progresso e civilização: um prenúncio de desflorestação e morte.

sábado, junho 23, 2012

“Passos Coelho diz que é cedo para falar em medidas de austeridade”

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Não pensa ele noutra coisa. Ao dizê-lo, já está, na verdade, a acenar com mais austeridade. E di-lo no dia em que aos funcionários públicos foi subtraído (usemos um eufemismo) o subsídio de férias. Raia o cinismo. Já pondera mais austeridade. Só faltam as medidas, mas ainda é cedo para falar delas. Aguardemos pois, que ele e o governo que nos desgoverna ponderem o melhor momento para desferirem a "boa nova". Talvez quando os portugueses estiverem na praia com a família, quem sabe?

Mas afinal, quem não sabia que esta austeridade acabaria por conduzir a mais austeridade? Pelos vistos só o Ministro Gaspar. Diz ele que as receitas do IRC "registaram uma evolução menos favorável do que se esperava em resultado dos menores lucros das empresas neste contexto de recessão prolongada. (os sublinhados são nossos)

Caramba! Outra surpresa? Outro lapso? Outro equívoco? Mas como é possível? Andaram todo o tempo entretidos a semear recessão e agora dizem-se surpreendidos com os efeitos da recessão que semearam?

Primeiro foi a taxa de desemprego que se tornou surpreendentemente maior do que a esperada, e agora as receitas dos impostos, que foram menores do que as esperadas. Ó céus! Ó mundo cruel! Ó abrenúncio! Gaspar avança de surpresa em surpresa e Portugal, dizem eles, está no bom caminho.

Mas que gente é esta?

sexta-feira, junho 22, 2012

"Scratching The Surface"

Alexandre Farto, Scratching The Surface, 2009

A Grécia perdeu. Viva a Grécia!


A Grécia perdeu com a Alemanha (e o nosso Fernando Santos também).
Mas o grito será ainda o mesmo:

Viva a Grécia!

domingo, junho 17, 2012

O salto em frente da Europa, por cima do abismo da história


«A inteligência europeia está agora perante o desafio de transformar a sua máquina de fabricar destino. Não se trata agora de uma nova reclamação do Império por um sujeito político pan-europeu com sede em Bruxelas; não competirá aos Europeus, nem hoje, nem amanhã, brincar aos Romanos pela enésima vez. Nenhum contemporâneo inteligente pode seriamente interessar-se por um «Leviatã supranacional» com o nome de União Europeia. (…)

Não se trata já de enformar as potências neoeuropeias por reivindicações dos modelos da velha Europa (como implicava outrora a simbólica carolíngia enganadora de Estrasburgo e de Aix-la-Chapelle), mas de substituir o próprio princípio do Império pela união dos Estados, num acto de criação da forma política que se inserirá na história do mundo. Na qualidade de federação multinacional, a Europa tem de afinar um primeiro modelo conseguido por essa entidade intermédia que falta entre os Estados-nação e as organizações do complexo United Nations. Tal é o tema incontornável de uma filosofia política europeia do futuro. Dela se pode dizer desde já que só pode realizar-se pelo modo de uma filosofia-de-processo do pós –imperialismo

Peter Sloterdijk (2008), Se a Europa Acordar. Relógio D’Água. Pág. 48-49

«O poder que se exerce a partir de Bruxelas sobre a grande Europa encontra-se agora perante uma escolha. Ou quer passar para um imperialismo mais ou menos aberto, nomeadamente sob influência de cenários sugestivos que profetizam uma guerra económica entre os Estados Unidos, o Japão e a Europa, bem como uma guerra mundial por infiltração do Sul contra o Norte. Ou compreende que a sua oportunidade reside na translação do Império para um não-império, uma nova união de entidades políticas. Se se decidir por um novo Império, perde o resto da sua alma e provoca o seu próprio desaparecimento por depravação das três gerações futuras. Apenas com a aliança da ambição e do cinismo, nenhuma cultura moderna percorrerá nem que sejam cem anos suplementares

Peter Sloterdijk (2008), Se a Europa Acordar. Relógio D’Água. Pág. 60

***

Passaram alguns anos desde 1994, data em que foi escrito o texto acima, e a Europa parece querer recuar agora para um cenário impossível. A constituição de uma federação multinacional parece não se encontrar na mesa das opções políticas. A falta de arrojo e de liderança política, a mediocridade e a inépcia política dos líderes europeus, com destaque para a chanceler Angela Merkel, parecem estar a lançar a Europa para a desagregação, para a Velha Europa dos Estados-nação rivais. Mas esse tempo já não existe mais. Estamos a querer voltar a um lugar que não existe. Ao procurarmos refúgio nessa ideia e nesse tempo, nem ao passado regressamos. Provocaremos o nosso próprio desaparecimento, como diz o filósofo. Por que aguardam os líderes para darem esse salto para a federação multinacional? Aguardarão a voz reivindicativa dos povos? Terão de ser os povos a exigi-lo?

Por agora, a Europa ainda dorme.

Zona Euro ao fundo


A Zona Euro está organizada (ou deveremos dizer, desorganizada?) como uma espécie de condomínio vertical com dezassete condóminos e, pasme-se, com dezassete administradores. Ora assim não há condomínio que funcione. Para que funcione, tem de haver um só administrador, como é óbvio, ou seja, um só Governo. Caso contrário, a Zona Euro continuará a oferecer o flanco à especulação financeira, que vai explorando as fraquezas deste disfuncionamento.

Neste edifício onde as potências económicas ocupam os andares cimeiros e os países periféricos os andares de baixo, ninguém está a salvo do fogo que vai consumindo já o rés-do-chão. Mais tarde ou mais cedo, os países do topo acabarão por ser atingidos, como peças de dominó que tombam em cadeia.

Até agora não houve um só líder político que confrontasse com seriedade os demais relativamente à opção que tem de ser tomada: ou se desfaz a Zona Euro e voltamos à velha Europa babilónica das nações rivais, ou se avança para uma Federação multinacional, aprofundando-se ainda mais a integração política na União. Assim como estamos, os problemas vão-se avolumando: apaga-se um fogo aqui, surge outro acolá. E disto não saímos.

Embora a crise não se restrinja à Zona Euro, esta, neste contexto, encontra-se bastante fragilizada e por isso é um alvo apetecível para os ataques especulativos (há gente que está a ganhar muito dinheiro com isto, e nós, cidadãos e contribuintes europeus, estamos todos a perder e a pagar, cada vez mais).

A criação da Zona Euro, há que assumi-lo, foi um erro. Mas parece ser um erro que ninguém quer assumir. E agora, o que fazer? Ou se bate em retirada, ou se avança a todo o vapor. Aqui é que não podemos ficar. Parece que só falta a coragem, ou a liderança política que nos tire deste atoleiro. Mas se assim é, nesse caso teremos de ser nós a sair disto. Teremos de ser nós, europeus, a sair pra a rua.

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