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segunda-feira, outubro 23, 2023

A moral dos superiores

«A memória do Holocausto torna mais pesada a mão dos ocupantes israelitas dos territórios árabes: mantém-se viva a recordação da rentabilidade das deportações de massa, as rusgas, a tomada de reféns e os campos de concentração. À medida que a história avança, a injustiça tende a ver-se compensada por uma outra injustiça acompanhada pela inversão dos papéis. Só os vencedores, enquanto a sua vitória permanece incontestada, consideram (ou deformam) essa compensação como triunfo da justiça.  A superioridade moral é vezes de mais a moral dos superiores.»

Zygmunt Bauman (1995)

Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna, Relógio d’Água, 2007, p.188.

***

Não se deve responder à barbárie com a barbárie. A lei de talião, no caso do conflito israelo-palestiniano, não se deve aplicar, caso contrário também se tornará bárbaro quem a aplica. O mais forte tem o dever moral de ponderar a resposta à agressão, quando essa resposta implicar a perda de vidas humanas inocentes (crianças, principalmente), ainda que tenha o direito de se defender contra a agressão, e ainda o direito e o dever de tudo fazer para libertar os reféns, com vida e saúde, se possível. Esta é a nossa posição, nesta fase do conflito israelo-palestiniano, que não se iniciou no dia 7 de Outubro, ainda que nesse dia os terroristas (sim, terroristas e não “combatentes”) tenham agredido barbaramente os israelitas. Se um dos inimigos não parar a espiral de violência, então a barbárie não terá fim.

quarta-feira, dezembro 29, 2021

Livros lidos: Apeirogon, Viagens Infinitas

 


Colum McCann, Apeirogon, Viagens Infinitas, Porto Editora, 2021.


⭐⭐⭐⭐


Este ano a Assembleia da República legislou sobre o alargamento do período do luto parental, tendo aprovado a passagem desse período, de cinco para vinte dias. Como é sabido, vinte dias não apagam de forma alguma a dor da perda de um filho. Toda uma vida não basta. Se alguma dúvida houver, leiam o Apeirogon, de Colum McCann. A dor da perda atravessa o livro e as muitas histórias que nele se contam.

 

O pano de fundo, histórico e geográfico, é Israel e a Palestina. E, como se refere repetidamente em várias passagens desde o início, aqui, a geografia é tudo.

 

O conflito israelo-palestiniano nunca me entusiasmou (entusiasmará alguém?). É cansativo estar sempre a ouvir notícias do eterno conflito que grassa naquela região. Foi por isso que hesitei na compra deste livro. Folheei-o várias vezes antes de o adquirir, sempre que fui à livraria. Estou convencido que entre Israel e a Palestina nunca haverá paz enquanto o homem da rua não a procurar no fundo do seu coração. Os seus líderes até podem assinar acordos visando a paz, sob o patrocínio das grandes potências – fazem belas fotografias os apertos de mão – mas enquanto as correntes do ódio não forem quebradas no âmago do homem da rua, que sofre pela perda dos seus entes queridos, e enquanto esse homem canalizar o seu sofrimento para alimentar o ódio que sente, jamais haverá paz. A violência gera violência, dizem. Mas não tem de ser sempre assim. Ali, a paz não pode ser imposta de cima para baixo. Ela tem de partir de baixo, da vontade do povo chão. Ela tem de partir de uma espécie de educação de cada homem.

 

Quando era jovem dizia que um dia haveria de ter barbas brancas e ainda ouviria falar do conflito entre judeus e palestinianos. Pois bem, a barba já me nasce branca e o conflito prossegue.

 

Na contracapa do livro, alguém do Guardian escreve que se trata de uma obra-prima, um romance, que mudará o mundo. Há muita ingenuidade nisto.

 

****

 

Da obra elejo a seguinte passagem, como poderia eleger outra. É uma passagem que ajuda a compreender a designação de Povo do Livro, atribuída aos judeus, e ao horror que sentem quando iconoclastas destroem livros:

 

«457. Na tradição judaica, é proibido deitar fora escritos que invoquem o nome de Deus. Livros de orações. Pergaminhos. Enciclopédias. Trajes. Atilhos de filactérios. Até mesmo panfletos ou livros de banda desenhada. Em vez de serem destruídos, os textos são enterrados numa genizah, uma sepultura para a palavra escrita.»

 

«456. Os manuscritos do Mar Morto foram originalmente escondidos em vasos de barro e colocados em grutas para os proteger. Se não voltassem a se encontrados, a escrita decompor-se-ia naturalmente. Nos vasos selados – sem luz nem chuva -, os manuscritos podiam ir apodrecendo lentamente.»

 

«455. A genizah nos dias de hoje encontra-se muitas vezes no sótão ou na cave de uma sinagoga, ou até mesmo num contentor com autorização para estar na rua, à porta.»

 

Colum McCann, Apeirogon, Viagens Infinitas, Porto Editora, 2021, p. 284.

quarta-feira, agosto 06, 2014

Crimes de guerra e colheitas futuras

Os crimes de guerra podem ser definidos como violações das convenções de Genebra e de Haia relativamente às práticas proibidas em situação de guerra. As referidas convenções cobrem um vasto leque de categorias, incluindo os maus tratos infligidos a prisioneiros de guerra, refugiados e não combatentes, o uso da força excessiva e de armas proibidas (tais como gás venenoso); a violação de hospitais e equipas médicas, a tomada de reféns, o bombardeamento de alvos civis; episódios recorrentes de saque, violação, espancamento e assassínio praticados por militares indisciplinados.

Norman Davies, A Europa em Guerra, 1939-1945, Edições 70, 2008, pág. 83.
(realces nossos)

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Quando um pirralho dá uma canelada num adulto este tem o dever moral de não lhe responder da mesma forma, ou de forma pior, dando-lhe um murro ou um pontapé, por exemplo. O adulto tem a razão e a força que o pirralho não tem e o uso da força numa situação destas, pela sua parte, redunda no uso de força excessiva e na perda da razão.

O governo de Israel porta-se como o adulto irresponsável e o Hamas como o pirralho malcriado. Ambos têm cometido crimes de guerra e os seus líderes deviam ser severamente punidos pela justiça internacional.

Neste conflito não há bons de um lado e maus do outro. Ambos os lados são maus e cada bomba ou rocket lançado por cada uma das partes, cada tiro disparado, é uma semente de ódio e violência que no futuro irá despontar. Tristes colheitas se adivinham.

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Sobre este assunto, é interessante a entrevista de Zygmunt Bauman, divulgada pelo Diário do Centro do Mundo. Aqui.

segunda-feira, dezembro 03, 2012

Nem Roma, nem Império, nem Israel.

                       © AMCD

                      © AMCD


O Arco de Tito, construído em 81 d.C., em Roma, celebra o triunfo sobre a Judeia e a destruição do Templo de Jerusalém, em 70 d.C., pelos romanos. Num pormenor, pode observar-se um grupo de soldados transportando a Menorah (candelabro de sete braços) entre outros despojos do saque.


Hoje, na verdade, “os romanos” são outros e Israel vive com a anuência do Império que a consente e apoia. As questões são por isso agora outras: até quando sobreviverá este Império? E sobreviverá Israel à queda do Império que agora a suporta?

Ouvi um dia, pela primeira vez, estas palavras da boca do falecido Arafat (e garanto que foi pela primeira vez e por isso as retive): “Não há força que sempre dure”. Nem Roma, nem Império, nem Israel.

O peido mais funesto da história universal


Em homenagem ao Sr. Benjamin Netanyahu, que autorizou a construção de três mil casas na parte Leste da Cidade Santa e Cisjordânia, logo após a obtenção do reconhecimento da Palestina como Estado observador não-membro da ONU, com o apoio de 138 Estados, entre os quais Portugal. Como é óbvio, a pacificação da região não se alcança com decisões que implicam a construção de mais colonatos. Pelo contrário, tais decisões acirram mais ainda os ânimos da guerra e os ódios.

O que nos faz pensar que a esta gente – sionistas conservadores do Likud e alguns fanáticos que julgam pertencer ao povo eleito de Deus - tem de ser recordada a sua posição, posição essa que, nem é mais elevada nem é mais baixa do que a posição dos outros povos. Por outras palavras, e para sermos mais exactos, não acreditamos em povos eleitos e abençoados por Deus, ou qualquer deus que seja. Qualquer povo que seja. É claro que muito admiramos Albert Einstein, George Steiner, Stefan Zweig, Hannan Arendt, Eric Hobsbawn, Tony Judt e muitos outros judeus, mas tal admiração não implica que abandonemos essa ideia de que é tão importante, como ser humano, por exemplo, tanto um bosquímano como um judeu, aos supostos “olhos do Senhor”. Aliás, provavelmente a maioria judeus, também não embarca nessa história.

Ainda assim, invocamos aqui uma passagem de um texto de Peter Sloterdijk, que nos remete para outros tempos, quando o orgulhoso e cínico domínio romano na região mostrava aos supostos eleitos de Deus a sua posição naquela época.

Diz o filósofo Peter Sloterdijk:

«O peido, entendido como sinal, mostra que o baixo-ventre está em plena acção e isso pode ter consequências fatais nas situações em que toda e qualquer alusão às esferas desse género é absolutamente indesejada. Ernst Jünger notava no seu Diário Parisiense sobre a leitura de uma passagem da Guerra dos Judeus do historiador Flavius Josephus:

«Voltei a ir dar à passagem que descreve o início da agitação em Jerusalém sob o governo de Cumano. Enquanto os Judeus se reuniam para a festa do pão ázimo, os Romanos colocaram por sobre o pórtico do templo uma coorte a fim de manter a multidão sob observação. Um dos soldados levantou o manto e, voltando com uma reverência irónica o posterior para os Judeus, «emitiu um som indecente correspondente à sua posição». Foi motivo de um conflito que custou a vida a dez mil homens, de modo que podemos falar do peido mais funesto da história universal.» (Strahlungen, II, pp. 188-189)

O cinismo do soldado romano, que se peidou de forma politicamente provocatória e «blasfematória» no Templo, tem um paralelo no comentário de Jünger que faz a transição para o domínio do cinismo teórico.»

Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, Relógio D’Água, 2011, p. 203.

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