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Este ano a Assembleia da República legislou sobre o alargamento do período do luto parental, tendo aprovado a passagem desse período, de cinco para vinte dias. Como é sabido, vinte dias não apagam de forma alguma a dor da perda de um filho. Toda uma vida não basta. Se alguma dúvida houver, leiam o Apeirogon, de Colum McCann. A dor da perda atravessa o livro e as muitas histórias que nele se contam.
O pano de fundo, histórico e geográfico, é Israel e a
Palestina. E, como se refere repetidamente em várias passagens desde o início,
aqui, a geografia é tudo.
O conflito israelo-palestiniano nunca me entusiasmou (entusiasmará
alguém?). É cansativo estar sempre a ouvir notícias do eterno conflito que grassa naquela região. Foi por isso que hesitei na compra deste livro. Folheei-o várias vezes antes de o adquirir, sempre que fui à livraria. Estou convencido que entre Israel e a Palestina nunca
haverá paz enquanto o homem da rua não a procurar no fundo do seu coração. Os seus
líderes até podem assinar acordos visando a paz, sob o patrocínio das grandes
potências – fazem belas fotografias os apertos de mão – mas enquanto as correntes
do ódio não forem quebradas no âmago do homem da rua, que sofre pela perda dos
seus entes queridos, e enquanto esse homem canalizar o seu
sofrimento para alimentar o ódio que sente, jamais haverá paz. A violência gera violência,
dizem. Mas não tem de ser sempre assim. Ali, a paz não pode ser imposta de cima para baixo. Ela tem de partir de
baixo, da vontade do povo chão. Ela tem de partir de uma espécie de educação de cada homem.
Quando era jovem dizia que um dia haveria de ter barbas
brancas e ainda ouviria falar do conflito entre judeus e palestinianos. Pois
bem, a barba já me nasce branca e o conflito prossegue.
Na contracapa do livro, alguém do Guardian escreve
que se trata de uma obra-prima, um romance, que mudará o mundo. Há muita
ingenuidade nisto.
****
Da obra elejo a seguinte passagem, como poderia eleger outra. É uma passagem que ajuda
a compreender a designação de Povo do Livro, atribuída aos judeus, e ao horror
que sentem quando iconoclastas destroem livros:
«457. Na tradição judaica, é proibido deitar fora escritos
que invoquem o nome de Deus. Livros de orações. Pergaminhos. Enciclopédias. Trajes.
Atilhos de filactérios. Até mesmo panfletos ou livros de banda desenhada. Em
vez de serem destruídos, os textos são enterrados numa genizah, uma
sepultura para a palavra escrita.»
«456. Os manuscritos do Mar Morto foram originalmente
escondidos em vasos de barro e colocados em grutas para os proteger. Se não
voltassem a se encontrados, a escrita decompor-se-ia naturalmente. Nos vasos
selados – sem luz nem chuva -, os manuscritos podiam ir apodrecendo lentamente.»
«455. A genizah nos dias de hoje encontra-se
muitas vezes no sótão ou na cave de uma sinagoga, ou até mesmo num contentor
com autorização para estar na rua, à porta.»
Colum McCann, Apeirogon, Viagens Infinitas, Porto Editora, 2021, p. 284.
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