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domingo, agosto 06, 2023

Tudo muda

Todos os dias nasce um sol novo. (Heraclito) 

Ninguém pode regressar ao lugar onde já esteve. A cada microssegundo deixamos de ser quem éramos. A cada microssegundo somos já outro e assim é com todos os lugares.  Assim é com o Sol. Ninguém volta ao que já deixou. Esta é a mensagem da cantiga do pastor. 

 

Pastor

«Ai que ninguém volta
Ao que já deixou
Ninguém larga a grande roda
Ninguém sabe onde é que andou

Ai que ninguém lembra
Nem o que sonhou
Aquele menino canta
A cantiga do pastor»

 ***

sexta-feira, abril 28, 2023

O Douro


      Porto, Dezembro de 2022                © AMCD

***

        O Douro

 

        Não é a tristeza que encontro

        Quando caminho pela margem

        Do Douro, no Porto.


        O seu vinho, as suas gentes e os verdes olhos das minhotas,

        Aquecem-me o coração.


        Nem o céu plúmbeo

        Me pesa.


        Ali consigo esquecer a dor.

        Como um ópio que me invade o corpo,

        Uma aguardente.

        Esqueço tudo,

        Até a solidão.

quarta-feira, abril 26, 2023

Medvedev‎ no epicentro

  

O futebol é a zombaria da guerra, campal ou política.

(Ortega y Gasset)

 

Medvedev‎ arenga no hangar:

5 000º Kelvin, calor nuclear,

350 m/s, a deslocação do ar

(e tudo o vento levou, no epicentro nuclear)


Radiação penetrante, radiação ionizante

Impulso electromagnético, explosão nuclear.

Arenga o Medvedev, que nos quer intimidar.

 

Tenham medo, muito medo.

Ui, ui, que medo, Medvedev.

(Faz isso não)

 

(Enquanto isso, a Europa vira o cu a Medvedev

E abanca no estádio, que é dia de futebol.)

 

Vá falando Medvedev, vá falando.

Arengando, não faz mal.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Os dias do fim

Canção

O último pássaro

canta nos álamos.

A luz fatigada

 tropeça nos ramos.

A terra é apenas

 memória de lábios.

Ah, canta, canta,

rouxinol da água.

 

                                   Eugénio de Andrade (1961)

 

***

Um dos poemas para estes dias é a canção do último pássaro. É difícil discernir o espírito do tempo em que vivemos quando vivemos neste tempo. O que virá? O precipício sobre o mar rumorejante ou a luz dos prados verdejantes? Já cantarão os últimos pássaros neste planeta fatigado, de solo ressequido? Um último rouxinol canta antes da longa noite escura? 


O que virá?

 

O silêncio.

 

A Terra nem memória será.

 

Epílogo

 

Devastámos a Terra, conspurcámos o mar, poluímos o céu. Nem as profundezas e os abismos escaparam ao fluxo e refluxo das nossas cloacas. Nem as mais altas montanhas.

 

A Terra devastada. O mar conspurcado. O céu poluído. A vida à beira da extinção.

 

Depois do canto do último pássaro, sabemos que advirá o silêncio. Daremos entrada no reino sombrio das criaturas da noite, enquanto remanescerem criaturas. Uma longa noite, repleta de horrores. Os últimos seres, almas, espíritos e medos. Mutantes sem memória. E por fim, nem a memória restará.


Soprará o vento nas ruínas das cidades.

sexta-feira, dezembro 16, 2022

Dias do solstício de Inverno

Nestes dias

Em que as sombras se alongam,

Chove sempre a melancolia.

Uma chuva miudinha.


Ismael busca o navio no porto.

Na urgência de partir.


Regressará na Primavera,

Quando os dias explodirem.

Então far-se-á luz.

Então far-se-á cor.

quinta-feira, dezembro 31, 2020

Tocar a reunir

 

Conto com todos os poetas e profetas anacoretas,

Atletas das palavras,

Lançadores de discos, riscos e asteriscos.

Retiram das aljavas flechas de palavras

E montam cercos às cidades.

E com as suas catapultas as suas palavras arremessadas e catapultadas,

Derrubam muralhas.

 

Conto com todos os poetas e profetas anacoretas,

Atletas das palavras,

Para erguer este muro

Incontornável, insondável muralha,

Com todas as palavras do mundo.

 

É profundo o mundo.

sábado, agosto 22, 2020

"Land Ho!"

Grandma loved a sailor, who sailed the frozen sea.
Grandpa was that whaler and he took me on his knee.
He said, "Son, I'm going crazy from livin' on the land.
Got to find my shipmates and walk in foreign sands."

This old man was graceful with silver in his smile.
He smoked a briar pipe and he walked four country miles,
Singing songs of shady sisters in old time liberty,
Songs of love and songs of death and songs to set men free.

I've got three ships and sixty men,
A course for ports unread.
I'll stand at mast, let north winds blow, till half of us are dead

Land Ho!


                                                                                                   Jim Morrison (1970)



A avó amou um marinheiro
Que nos mares gelados navegou.
O avô era esse baleeiro,
Que nos joelhos me sentou.

Dizia-me: “Filho, dou comigo em doido,
por viver em terra,
Temos de encontrar os meus camaradas
E caminhar por areias estrangeiras”.

Era um velho gracioso,
Com prata no seu sorriso,
Fumava um cachimbo de urze e
Caminhámos quatro milhas,
Cantando canções de mulheres da vida
E da antiga liberdade,
Canções de amor e canções de morte
E canções para libertar os homens.

Eu tenho três barcos e sessenta homens
Um rumo para portos por encontrar.
Ficarei junto ao mastro,
que soprem os ventos do norte,
Até dizimarem metade dos homens.


Terra!

                                                                                          Jim Morrison (1970)

domingo, agosto 16, 2020

Epitáfio de Bartolomeu Dias

     V

        EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS



Jaz aqui, na pequena praia extrema,

O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,

O mar é o mesmo: já ninguém o tema!

Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.


                                              Fernando Pessoa, Mensagem


s.d.

domingo, agosto 02, 2020

Malaguenha


A morte
entra e sai
da taberna.

Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.

E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.

A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.

Garcia Lorca

(traduzido por Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940 – 1986], II Volume, 3ª edição aumentada, Círculo de Leitores.

segunda-feira, julho 20, 2020

Não, não é Horácio, é Macaulay


XXVII

Then out spake brave Horatius,
The Captain of the Gate:
"To every man upon this earth
Death cometh soon or late.
And how can man die better
Than facing fearful odds,
For the ashes of his fathers,
And the temples of his gods

 Thomas Babington Macaulay, Lays of Ancient Rome (1842)

Uma tradução:

Então falou o bravo Horácio,
O Capitão do Portão:
“A todo o homem acima desta terra
A morte virá mais cedo ou mais tarde.
E que melhor morte pode um homem desejar
Do que enfrentando riscos tremendos,
Em nome das cinzas dos seus antepassados
E dos templos dos seus deuses

Thomas Macaulay, Cantos de Roma Antiga (1842)

quinta-feira, junho 11, 2020

Querer nada, ser livre

Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

                                 Ricardo Reis, Odes, Fernando Pessoa (1930), Lisboa: Ática, 1946


Já cantava Horácio nas suas Odes:

A quanto mais se negar o homem,
 mais dos deuses receberá.

                                   Horácio, Odes, Livro III, XVI, Livros Cotovia, 2008


Porém, Ricardo Reis queria que os deuses dele não se lembrassem:


 Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo nos oprimem.
                A quem deuses concedem
                Nada, tem liberdade

                                Ricardo Reis, Odes, Fernando Pessoa (1930), Lisboa: Ática, 1946

Em suma, só seria livre aquele sobre o qual não recairia o olhar dos deuses.
A liberdade acima de tudo, até do próprio amor que oprime, segundo Ricardo Reis.

terça-feira, junho 09, 2020

Pela tormenta do mar Egeu

Se numa tempestade africana o mastro geme,
não sou pessoa que recorra a miseráveis preces,
fazendo promessas e pactos
para que as mercadorias cipriotas ou tírias

as riquezas do ávido mar não aumentem:
se assim acontecer, ajudado por um bote de dois remos,
o gémeo Pólux e uma brisa me hão-de levar
incólume pela tormenta do mar Egeu.

                                               Horácio, Odes, Livro III, XXIX


domingo, junho 07, 2020

Do grande Horácio, que viveu há mais de dois milénios

A fome por mais e a inquietude acompanham
a fortuna que cresce.
Horácio, Odes, Livro III, XVI

domingo, outubro 20, 2019

Horror às máquinas (aspiradores matutinos de sábado)

Secadores e aspiradores,
Horrores!

Onde o silêncio repousa
também quero estar,
Mas longe, muito longe
dos cemitérios.

Talvez entre os sobreiros da manhã,
Onde a brisa não sopra ou sopra ligeira,
Afagando a ondulação das searas,
Ainda longe da ceifa e das vis ceifadeiras mecânicas.

Anseio por uma manhã sonhada
Longe de todas as máquinas.

sábado, março 23, 2019

A poesia visita as mentes com o fulgor de um raio

Heinrich Heine e a Musa da Poesia, 1894–1894
Georges Moreau de Tours

O poeta (como o homem moral na sua acção, que nunca é isenta de alguma impureza) sofre com as manchas que percebe na sua obra e gostaria de as remover a todas, até ao mais ínfimo vestígio […] Mas a poesia visita as mentes com o fulgor de um raio e o trabalho humano tenta segui-la, atraído, fascinado por ela e dela colhe o que pode e, em vão, pede que fique e se deixe remirar em todos os traços do rosto, mas ela já vai longe.  

Croce, A Poesia (1936), citado por Umberto Eco, Aos Ombros de Gigantes, Gradiva, 2018, p. 298.

terça-feira, outubro 02, 2018

Outono


   Luigi Garzi, Alegoria de Outono, c.1680

š

«Já, o outono! – Mas porque desejar um sol eterno, se partimos à descoberta da claridade divina – longe daqueles que florescem e morrem com as estações.
O outono. A barca ascendida à imobilidade das brumas regressa agora ao porto da miséria, cidade imensa, imenso céu traçado de fogo e de lama. Ah! os farrapos podres, o pão encharcado de chuva, a bebedeira, os mil amores que me crucificaram! Então não findará jamais este vampiro, este tirano de milhões de almas e de corpos mortos que serão julgados! Revejo-me: a pele roída pela peste e pela lama, a cabeça e os sovacos repletos de piolhos, não tão gordos, não tantos como os que me roíam o coração, deitado entre desconhecidos de idade incerta, de sentimentos incertos…Podia ter ficado ali…Pavorosa evocação! Detesto a miséria.
E temo o inverno por ser a estação do conforto!»

Rimbaud (1873), Une Saison en Enfer
(tradução Mário Cesariny de Vasconcelos)


in Jean Arthur Rimbaud, Uma Época no Inferno, Portugália Editora, 1960.


segunda-feira, outubro 01, 2018

Vertigens


«Ao princípio, era apenas um exercício. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Captava vertigens.

Alugando pássaros, pedaços de pele, povoados,
Que busco eu, alheio ao sossego e à esteira?
Em ondas de ternura bebo afogados
Séculos de murmúrio, ajoelhado na areia.

Que piolho eu beberia noutro rio marata?
-  Copo de oiro sem voz, flores de gás, céu alvar! –
Beber por calabaças, fora da minha cubata?
Só se for o licor que a terra faz ao mar.

Ergui minha choupana em foz daninha.
- Rosa de areia! Sangue! Jubileus! –
A água do rio levou-me oiro e vinha,
(Nos lameiros, passava a mão de Deus)

E eu chorava, eu via – oiros! – nunca sereis meus!»

*
Às quatro horas o mastro de neve
Descansa do amor entre brandas avenas.
Na nudez de Bocácio Eva escreve
Uma noite de veias serenas.

Lasso, baço, num vasto coral
De rugas e olhos e sóis improfícuos
Sobe o rio o clamor matinal
            Dos carros Oblíquos.

Para o festim de chocolate, ébrios de claridade,
Eles vestem antecipadamente lambris pré-celestes
                                Cidade
De pão, bandeiras, declives, homens.

Para estes operários, veículo de tantos
Rios interiores a um rei da Babilónia,
Ó Vénus, deixa por momentos as almas
Estagnadas como pântanos no coração do Ródano.

Ó Guia dos pastores
Dá aos trabalhadores a ode viva.
Que a sua força seja como seda pacífica

- Um acto no caminho do amargo banho ao meio-dia.»

Rimbaud (1873), Une Saison en Enfer
(tradução Mário Cesariny de Vasconcelos)


in Jean Arthur Rimbaud, Uma Época no Inferno, Portugália Editora, 1960.

sábado, novembro 25, 2017

Um poema de Alberto Pereira



Flores de ponta e mola.
Beijos calibre 6,35.
Foi assim que encostaste
o aço ao meu nome.

Guardo ainda num revólver
algumas árvores e pássaros,
o arrependimento de Raskólnikov
e as sinfonias de Stravinsky.

É já tempo de matar a eternidade.

Tenho a mais bela pólvora do mundo.


(Poema de Alberto Pereira, Viagem à Demência dos Pássaros, Glaciar, 2017)

***

Abri o livro e deparei com este poema. Fechei o livro e o poema perseguia-me na contracapa.

Bela pólvora a de Alberto Pereira: árvores, pássaros, o arrependimento de Raskólnikov e as sinfonias de Stravinsky. A mais bela pólvora do mundo.

sábado, novembro 11, 2017

Conheci rios

O Negro Fala de Rios

Conheci rios
Conheci rios tão antigos como o mundo, mais velhos do
   que o sangue humano correndo nas veias humanas.
A minha alma foi-se tornando funda como os rios.

Banhei-me no Eufrates quando eram jovens as madrugadas.
Construí a minha cabana nas margens do Congo e ele embalou-me o sono.

Olhei o Nilo e acima dele ergui as pirâmides.
Ouvi o canto do Mississipi quando Abraham
   Lincoln desceu até Nova Orleães, e vi
   o seu fundo lamacento ficar todo dourado ao pôr-do-sol.

Conheci rios:
rios escuros, rios antigos.

A minha alma foi-se tornando funda como os rios.


                         (Langston Hughes, tradução de Ana Luísa Amaral, Antena 2)

***

"The Negro Speaks of Rivers

I’ve known rivers:
I’ve known rivers ancient as the world and older
   than the flow of human blood in human veins.
My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississippi when Abe
    Lincoln went down to New Orleans, and I’ve seen
    its muddy bosom turn all golden in the sunset.

I’ve known rivers:
Ancient, dusky rivers

My soul has grown deep like the rivers.


                                                               (Langston Hughes)

***

Sobre Langston Hughes, na Antena 2, aqui.


***


quinta-feira, julho 06, 2017

Um poema de O'Neill

A força do hálito

A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.

Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.

Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.

        "Ai onde transpira agora
         o bom sovaco de outrora!"

Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.

Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.

Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.

                          Alexandre O'Neill (1969)

***

Mais poemas de Alexandre O'Neill, e mais, muito mais: aqui.

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