segunda-feira, outubro 01, 2018

Vertigens


«Ao princípio, era apenas um exercício. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Captava vertigens.

Alugando pássaros, pedaços de pele, povoados,
Que busco eu, alheio ao sossego e à esteira?
Em ondas de ternura bebo afogados
Séculos de murmúrio, ajoelhado na areia.

Que piolho eu beberia noutro rio marata?
-  Copo de oiro sem voz, flores de gás, céu alvar! –
Beber por calabaças, fora da minha cubata?
Só se for o licor que a terra faz ao mar.

Ergui minha choupana em foz daninha.
- Rosa de areia! Sangue! Jubileus! –
A água do rio levou-me oiro e vinha,
(Nos lameiros, passava a mão de Deus)

E eu chorava, eu via – oiros! – nunca sereis meus!»

*
Às quatro horas o mastro de neve
Descansa do amor entre brandas avenas.
Na nudez de Bocácio Eva escreve
Uma noite de veias serenas.

Lasso, baço, num vasto coral
De rugas e olhos e sóis improfícuos
Sobe o rio o clamor matinal
            Dos carros Oblíquos.

Para o festim de chocolate, ébrios de claridade,
Eles vestem antecipadamente lambris pré-celestes
                                Cidade
De pão, bandeiras, declives, homens.

Para estes operários, veículo de tantos
Rios interiores a um rei da Babilónia,
Ó Vénus, deixa por momentos as almas
Estagnadas como pântanos no coração do Ródano.

Ó Guia dos pastores
Dá aos trabalhadores a ode viva.
Que a sua força seja como seda pacífica

- Um acto no caminho do amargo banho ao meio-dia.»

Rimbaud (1873), Une Saison en Enfer
(tradução Mário Cesariny de Vasconcelos)


in Jean Arthur Rimbaud, Uma Época no Inferno, Portugália Editora, 1960.

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