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quarta-feira, agosto 12, 2020

Kaputt


Curzio Malaparte (1944), Kaputt, Publicações Europa-América, 1979.

[Há uma edição deste ano da Cavalo de Ferro]

óóóó


Kaputt, onde o italiano Malaparte passeia impunemente a sua insolência (que faz passar por irreverência) sob o nariz dos nazis enquanto com eles janta. Teve de testemunhar o mal com os seus próprios olhos para aprender, da pior forma, o horror do nazismo e do fascismo, que antes abraçara. É nessa condição de “aliado” que lhe é conferido um livre trânsito que o leva a testemunhar os horrores na frente Leste: as perseguições, os fuzilamentos, a chacina dos judeus. Por toda a obra transparece o seu repúdio pela crueldade dos nazis, com a qual convive horrorizado, com a habilidade e a inteligência necessária para os ludibriar e sair dali vivo.

Tem, no entanto, um tique que manifesta ao longo do livro: associa muitas vezes o mal a um elemento feminino (chega a gracejar, dizendo que Hitler é uma mulher, ou que há um elemento feminino no "medo" e na crueldade dos alemães). Talvez não seja de forma consciente. É uma tendência com profundas raízes bíblicas e mitológicas: não foi Eva que convenceu Adão a morder a maçã? Não foi da caixa de Pandora que fugiram todos os males do mundo? Não era Medusa uma mulher? Ou Circe uma feiticeira? Será que Malaparte não se deu conta desta tendência para a diabolização do elemento feminino na sua história e na história da literatura?

O capitão Curzio Malaparte

quinta-feira, julho 23, 2020

Medo e crueldade












Em nenhuma parte da Europa o Alemão me aparecera tão nu, tão descoberto, como na Polónia. No decorrer da minha longa experiência de guerra, tinha-me convencido de que o Alemão não tem medo do homem forte, do homem armado que o enfrenta com coragem e que lhe faz frente. O Alemão tem medo dos desarmados, dos débeis, dos doentes. O tema do «medo», da crueldade alemã como efeito do medo, tornara-se o tema fundamental de toda a minha experiência. Para quem olhar bem, com inteligência moderna e cristã, este «medo» inspira piedade e horror, e nunca me tinha suscitado tanta piedade e tanto horror como na Polónia, onde me aparecia em toda a sua complexidade o elemento mórbido, feminino, da sua natureza. O que move o Alemão para a crueldade, para os actos mais fria, mais metódica, mais cientificamente cruéis é o medo. O medo dos oprimidos, dos desarmados, dos débeis, dos doentes, o medo dos velhos, das mulheres, das crianças, o medo dos judeus.

Curzio  Malaparte (1944), Kaputt, Publicações Europa-América, 1979, pág. 88.


***

O desconhecimento e o desconhecido escondem-se sempre por trás do medo. O medo do outro, esse desconhecido, pode conduzir, em situação extrema, à agressão, quando pressentimos no outro uma potencial ameaça, um risco, um perigo. Colocamo-nos em guarda ante o desconhecido. O outro é um abismo.

Os Alemães pouco participaram das grandes navegações e dos encontros entre povos e civilizações, iniciadas no século XV. Só quanto os europeus partilharam a África, no final do século XIX, lhes coube a Togolândia, o Camarões, a África Oriental (actual Tanzânia) e o Sudoeste Africano (actual Namíbia). Neste último território ensaiaram o extermínio de povos autóctones e o funcionamento de campos de concentração*, “solução” que viriam mais tarde a adoptar largamente na Europa, durante a IIª Guerra Mundial, para fins de extermínio, não só de judeus, mas principalmente de judeus.
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(*) Sobre as atrocidades dos Alemães no Sudoeste Africano, ver Niall Ferguson, Civilização: o Ocidente e os Outros, Civilização Editora, 2012, pp. 205-213.

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