sexta-feira, dezembro 30, 2016

Grandes aberturas: Criação


Sou cego, mas não sou surdo. E porque a minha desgraça não é completa ontem fui obrigado a ouvir, durante quase seis horas, um auto-intitulado historiador cuja descrição do que os Atenienses gostam de chamar «as Guerras Persas» era um disparate de tal ordem que, se fosse menos velho e tivesse mais privilégios, ter-me-ia levantado do lugar, no Odeon, e escandalizado Atenas inteira com a resposta que lhe daria.

A verdade é que eu sei qual foi a origem das guerras gregas. Ele não. Como poderia sabê-la? Como poderia um Grego saber uma coisa dessas? Passei a maior parte da minha vida na corte da Pérsia e ainda hoje, com setenta e cinco anos, sirvo o Grande Rei, como servi o seu pai, o meu querido amigo Xerxes, e, antes de Xerxes, o pai de Xerxes, um herói conhecido inclusivamente pelos Gregos como Dario, o Grande.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989

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Assim começa a Criação, de Gore Vidal. Com a irritação de Ciro Spitama, filho de uma grega e de um persa, destacado na sua velhice pelo Grande Rei para ser embaixador da Pérsia em Atenas, onde passará os seus últimos dias. Ciro irrita-se com a descrição que ouve contar de Heródoto acerca dos feitos dos Gregos contra os Persas, numa conferência dada pelo historiador no Odeon. Trata-se de disparates e inverdades, a seu ver. Desta forma é dado o tom ao personagem que, ao longo de toda a história narrada ao seu sobrinho, Demócrito, não se coíbe de desmistificar e minimizar os feitos e as obras dos Gregos em relação aos feitos e às obras dos Persas.

Ciro tem razão, se pensarmos bem. Afinal que relatos persas nos chegaram desses encontros e confrontos? Porventura existiu algum Ésquilo ou algum Heródoto persa que enaltecesse as façanhas dos próprios Persas ou nos transmitisse o seu ponto de vista acerca dos factos? Os Persas não tinham as tradições escritas dos Gregos e as suas façanhas eram valorizadas doutra forma, que não a escrita. Por outro lado os historiadores, os poetas e os dramaturgos gregos, inauguraram uma velha tradição que ainda hoje, infelizmente, persiste nas narrativas dos historiadores actuais: a visão parcial dos factos; o enaltecimento dos feitos realizados pelos seus próprios povos. Desse chauvinismo manso não parecem os historiadores conseguir escapar. Aqui aplica-se um velho provérbio: é o olhar do dono que engorda a galinha. Por muito imparciais que tentem ser, os historiadores acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por trair essa intenção de imparcialidade, nalguma frase ou ideia que deixam inadvertidamente transparecer no seu “imparcial” texto.


Ciro Spitama é uma personagem brilhante e marcante no seu sarcasmo em relação aos feitos dos Gregos. Ele questiona e escarnece de uma civilização que por nós é unanimemente aclamada e da qual nos orgulhamos, pois é a raiz da nossa própria civilização. Nesta obra de Gore Vidal a civilização Grega é colocada no seu devido lugar, não só em relação à Persa, mas também em relação à Chinesa e à Hindu.

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P.S. É uma grande obra, esta Criação de Gore Vidal. Perdoa-se-lhe a alocução latina “non sequitur” (pág. 332) no pensamento do persa do séc. V a.C. entre outros, poucos, anacronismos. Não chegam para a beliscar. 

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