Mario Vargas Llosa, O Apelo da Tribo, Quetzal, 2019
Apreciação: óóóó
Mário Vargas Llosa não resistiu
ao apelo da tribo neoliberal, ou seja, ao apelo da tribo dos que idolatram
o mercado desregulado, o mais desregulado possível, embora diga defender o
mercado regulado. Se há algo de errado no liberalismo é esse fundamentalismo de
mercado que pretende alargar a lógica do seu funcionamento a todas as esferas
da vida e mercantilizar tudo, da saúde à educação, da segurança à
arte e quase tudo o resto. Para a tribo dos fundamentalistas do mercado, por
exemplo, um casamento não é um casamento, é um contrato; a educação de um filho,
não é simplesmente educação, é um investimento; o desemprego não é um
infortúnio, é uma oportunidade para se ser empreendedor, uma situação de
transição entre dois empregos, e assim sucessivamente. Se o mercado foi uma
descoberta associada ao desenvolvimento das trocas comerciais, a tentativa de
alargamento desse mecanismo a todas as esferas da vida é, no
mínimo, um erro.
Mário Vargas Llosa até reconhece o
“excessivo economicismo em que se confinou um certo liberalismo”(p. 65), mas depois
lamenta que Ortega y Gasset, que foi um liberal na cultura e na filosofia e “tão
curioso e aberto a todas as disciplinas” (p. 77) tenha sentido “uma desconfiança
parecida com o desdém” em relação ao “mercado livre” e à “liberdade económica”.
Chega por isso a acusar Ortega Y Gasset de ser um “liberal parcial” que padece
de uma “limitação geracional” (p.77). Mais adiante chega a criticar Ortega y
Gasset, considerando-o “um liberal limitado pelo seu desconhecimento da
economia”, facto que “o levou por vezes, quando propunha soluções para problemas
como o centralismo, o caciquismo ou a pobreza, a postular o intervencionismo
estatal e um dirigismo voluntarista” (p.87) e que “os erros de Ortega” eram os
erros de um “ingénuo” (p.91), pasme-se. Sente-se que Vargas Llosa queria que
Ortega y Gasset fosse da sua tribo, e seria, apenas com o problema de não ser um
neoliberal, ou seja, de não estender o seu liberalismo também à esfera
económica.
Ora Ortega y Gasset era um
filósofo que estava muito à frente do seu tempo, e que está ainda muito à frente
de Mário Vargas Llosa, não cometendo o mesmo erro que este comete ao abraçar o
desumano mecanismo de mercado, esse “frio” e “implacável” mercado que, nas próprias
palavras de Vargas Llosa, “premeia o êxito e castiga o fracasso de maneira
implacável” (p. 48), como se assim fosse ou fosse sempre assim – este é um mandamento
dos fundamentalistas do mercado – e como se Llosa não soubesse o que essa
palavra, “implacável”, esconde.
O livro está a ser, contudo,
muito interessante. A leitura prossegue a bom ritmo. Na tribo de Vargas Llosa,
cabem liberais respeitáveis e admiráveis, como Adam Smith, Ortega y Gasset
entre outros, mas lá está também Friedrich von Hayek, um bispo do
fundamentalismo de mercado (1).
(1) Segundo Llosa, “Hayek refere-se aos países subdesenvolvidos e diz que, felizmente para eles, os países ocidentais puderam prosperar e avançar graças ao seu sistema, de modo a terem agora um modelo a seguir e também poderem receber uma ajuda dos países do Primeiro Mundo na sua luta pelo progresso.” (pág.129) Ora, ou Hayek é ingénuo, ou isto é de um cinismo atroz.
(1) Segundo Llosa, “Hayek refere-se aos países subdesenvolvidos e diz que, felizmente para eles, os países ocidentais puderam prosperar e avançar graças ao seu sistema, de modo a terem agora um modelo a seguir e também poderem receber uma ajuda dos países do Primeiro Mundo na sua luta pelo progresso.” (pág.129) Ora, ou Hayek é ingénuo, ou isto é de um cinismo atroz.
Embora no livro não existam capítulos
biográficos de Margaret Tatcher, Ronald Reagan, Von Mises ou Milton Friedman,
estes cultores e defensores do neoliberalismo não deixam de ser alvo de
admiração e referência por Vargas Llosa que coloca todos no mesmo saco, homens de cultura
liberal e neoliberais económicos e políticos.
***
Uma nota final
Aqui prefere-se o liberal Keynes
ao neoliberal Hayek.
Aqui admiramos a cultura liberal
e os seus defensores, intelectuais como Jacques Barzum, Allan Bloom, Harold Bloom,
Ortega e Gasset, George Steiner, Roger Scruton, entre muitos outros intelectuais
que podem ser considerados da ala Direita.
Mas não deixamos de escutar os intelectuais da ala Esquerda, marxistas inclusive, como David Harvey, Immanuel
Wallerstein, Manuell Castels e outros, como Zygmunt Bauman ou Tony Judt, por
exemplo, já falecidos.
Como dizia
Ortega e Gasset “Ser de esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas
maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil; ambas, com efeito, são
formas de hemiplegia moral.”
Em todas as alas
há argumentos, vozes e pensamentos que devem ser ouvidos e pesados, ou seja,
dignos de consideração.
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