sábado, novembro 19, 2016

As elites já não moram aqui

Ontem, 18/11/2016, António Guerreiro escreveu no Público uma das suas interessantes opiniões, agora contra os que usam o discurso da crítica das “elites”, sem que precisem com rigor de que elites se tratam. “Que elites são essas tão vagamente nomeadas?”, questiona ele, e refere que “Não é possível saber [que elites são essas], nem há nada a saber, porque este discurso [o da crítica das elites] tem o objectivo de uma palavra de ordem, um refrão, que nada diz de substancial, mas chama a atenção sobre quem o profere.” Mais adiante esclarece-nos que “a palavra “elite” de origem francesa, incorpora a originária raiz do verbo latino eligere, escolher”.

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Quem são as elites de hoje afinal? Quem são os escolhidos, os eleitos dos nossos dias? Não serão os que se podem evadir, descomprometidamente, de um mundo que se tornou demasiado superlotado, demasiado malcheiroso, demasiado insuportável, enfim, um mundo com demasiados outros, comuns mortais? Afinal não era Jean-Paul Sartre que afirmava que o Inferno são os outros? Mas atenção: ainda que possam e desejem apartar-se dos outros, as elites, para o serem, não se podem apartar do poder. Caso contrário que elites seriam? Elites sem poder? Trata-se de uma contradição nos seus termos. É o poder que define as elites, acima de tudo. Mas hoje, também acima de tudo, esse poder é um poder politicamente descomprometido, é um poder desterritorializado, e a sociologia das elites sabe-o bem e melhor do que ninguém.

Zygmunt Bauman, aborda o assunto na sua obra, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000. Afirma ele o seguinte:

Os operadores de capital da nossa época [a elite global de hoje] têm uma notável semelhança com os proprietários de terras pré-modernos que viviam longe das suas propriedades. A sua ligação com as localidades das quais retiram o excedente de produção é, no entanto, ainda mais ténue do que os laços que uniam aqueles proprietários fundiários às suas terras distantes.

Mesmo quando fisicamente ausentes e não integrando nem social nem culturalmente a localidade, os antigos senhores de terras eram assim mesmo proprietários fundiários, daí ser necessária uma certa preocupação em preservar a capacidade da terra em produzir riqueza, caso contrário secaria a fonte da sua riqueza e poder. No caso desses senhores de terras dos tempos pré-modernos, o poder era acompanhado de obrigações, ainda que diluídas, e a exploração andava de mãos dadas com algum tipo de solidariedade — ainda que frágil e pouco confiável — para com a sorte dos explorados. Já não é mais esse o caso ou pelo menos não tem que ser — e as pressões globais combinadas dos todo-poderosos mercados financeiro, accionista e bancário cuidam para que assim não seja.

O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, e torna-se cada vez mais “irreal” quando visto a partir do significado que a realidade tem para as pessoas que não integram a elite global e têm pouca oportunidade de juntar-se a ela. Uma nova habilidade para evitar, elidir e escapar substituiu o envolvimento na vigilância, no treinamento e na administração como recurso primordial e essencial do poder. Tornou redundante todo e qualquer compromisso — por mais benigna ou cruel a forma que assumisse. Sobretudo, a capacidade de evitamento tornou disponível a outrora suprema forma panóptica de envolvimento através do esforço de vigilância, treinamento e disciplina. O financiamento do controle de tipo panóptico é hoje considerado um gasto desnecessário e injustificável, irracional mesmo, a ser descartado ou, melhor ainda, completamente eliminado. O sinóptico — um panóptico tipo faça-você-mesmo, que seduz muitos a embasbacarem-se com poucos, em vez de contratar uns poucos para vigiar muitos — mostrou-se um instrumento de controlo muito mais eficaz e económico. Os remanescentes do velho panóptico ainda actuantes não visam o treinamento corpóreo nem a conversão espiritual das massas, mas a manter no seu lugar aqueles sectores das massas que não devem seguir a elite no seu novo gosto pela mobilidade.

As classes cultas do nosso tempo, produtoras e detentoras de saber [outra elite que Guerreiro critica], também se parecem às congéneres pré-modernas à época em que estas se postavam em segurança atrás das impenetráveis muralhas do latim, isolando-se da gente simples. Com efeito, o ciberespaço da web mundial é sob muitos aspectos o equivalente actual do latim medieval. Ela torna os integrantes das classes cultas pessoas sem território e fora do alcance daqueles que lhes são próximos no espaço físico, ao mesmo tempo que lança o alicerce tecnológico de um outro universo, um universo virtual que aproxima os membros da classe culta. Na qualidade de homens e mulheres de saber eles habitam o ciberespaço, no qual as distâncias são medidas por padrões inteiramente diferentes dos que são usados no espaço geográfico comum; no ciberespaço criam-se pistas independentes das rotas seguidas pelos outros e a sinalização é disposta de maneira apenas, quando muito, superficial e casualmente relacionada à cartografia e topografia usuais.

Zygmunt Bauman, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000 (adaptada), os destaques e sublinhados são nossos.

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As elites já não moram aqui. Moram em todo o lado, ou seja, não moram em lado nenhum. A extrema mobilidade é uma das suas características. A capacidade de morar em qualquer lugar, onde lhes aprouver, sem qualquer outra ligação de maior a esse lugar, localidade ou região, para além de ocuparem esporadicamente um dos seus condomínios aí localizados, é outra das suas particularidades. O compromisso político com as sociedades que as viram nascer deixou de ser considerado pelas elites como uma obrigação, um dever ou uma necessidade de sobrevivência, ou ainda uma condição para a obtenção de poder. A possibilidade de evasão ou “evitamento” por parte das elites trata-se antes de uma libertação.

As novas elites dispensam representação e furtam-se à taxação.

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