Ontem, 18/11/2016, António Guerreiro escreveu
no Público uma das suas interessantes
opiniões, agora contra os que usam o discurso da crítica das “elites”, sem que
precisem com rigor de que elites se tratam. “Que elites são essas tão vagamente nomeadas?”, questiona ele, e refere que “Não é possível saber [que elites são essas], nem há nada a saber, porque este discurso [o da crítica das elites] tem o objectivo de uma palavra de ordem, um refrão, que nada diz de substancial, mas chama a atenção sobre quem o profere.”
Mais adiante esclarece-nos que “a palavra “elite” de origem francesa, incorpora a originária raiz do verbo latino eligere, escolher”.
***
Quem são as elites de hoje afinal?
Quem são os escolhidos, os eleitos dos nossos dias? Não serão os que se podem
evadir, descomprometidamente, de um mundo que se tornou demasiado superlotado,
demasiado malcheiroso, demasiado insuportável, enfim, um mundo com demasiados
outros, comuns mortais? Afinal não era Jean-Paul Sartre que afirmava que o Inferno são os outros? Mas atenção: ainda que possam e desejem
apartar-se dos outros, as elites, para o serem, não se podem apartar do poder. Caso contrário que elites seriam? Elites sem poder? Trata-se de uma contradição nos seus termos. É
o poder que define as elites, acima de tudo. Mas hoje, também acima de tudo,
esse poder é um poder politicamente descomprometido, é um poder
desterritorializado, e a sociologia das elites sabe-o bem e melhor do que
ninguém.
Zygmunt Bauman, aborda o assunto na
sua obra, Em Busca da Política, Zahar
Editores, 2000. Afirma ele o seguinte:
Os operadores de capital da nossa época [a elite global de hoje] têm uma notável semelhança com os
proprietários de terras pré-modernos que viviam longe das suas propriedades. A
sua ligação com as localidades das quais retiram o excedente de produção é, no
entanto, ainda mais ténue do que os laços que uniam aqueles proprietários
fundiários às suas terras distantes.
Mesmo quando fisicamente ausentes e não integrando nem social nem
culturalmente a localidade, os antigos senhores de terras eram assim mesmo
proprietários fundiários, daí ser necessária uma certa preocupação em preservar
a capacidade da terra em produzir riqueza, caso contrário secaria a fonte da
sua riqueza e poder. No caso desses senhores de terras dos tempos
pré-modernos, o poder era acompanhado de obrigações, ainda que diluídas,
e a exploração andava de mãos dadas com algum tipo de solidariedade — ainda que
frágil e pouco confiável — para com a sorte dos explorados. Já não é mais
esse o caso ou pelo menos não tem que ser — e as pressões globais
combinadas dos todo-poderosos mercados financeiro, accionista e bancário cuidam
para que assim não seja.
O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, e torna-se cada
vez mais “irreal” quando visto a partir do significado que a realidade tem para
as pessoas que não integram a elite global e têm pouca oportunidade
de juntar-se a ela. Uma nova habilidade para evitar, elidir e escapar
substituiu o envolvimento na vigilância, no treinamento e na administração como
recurso primordial e essencial do poder. Tornou redundante todo e qualquer compromisso
— por mais benigna ou cruel a forma que assumisse. Sobretudo, a capacidade de
evitamento tornou disponível a outrora suprema forma panóptica de envolvimento
através do esforço de vigilância, treinamento e disciplina. O financiamento do
controle de tipo panóptico é hoje considerado um gasto desnecessário e
injustificável, irracional mesmo, a ser descartado ou, melhor ainda,
completamente eliminado. O sinóptico — um panóptico tipo faça-você-mesmo, que
seduz muitos a embasbacarem-se com poucos, em vez de contratar uns poucos para
vigiar muitos — mostrou-se um instrumento de controlo muito mais eficaz e económico.
Os remanescentes do velho panóptico ainda actuantes não visam o treinamento
corpóreo nem a conversão espiritual das massas, mas a manter no seu lugar
aqueles sectores das massas que não devem seguir a elite no seu novo gosto pela mobilidade.
As classes cultas do nosso tempo,
produtoras e detentoras de saber [outra elite que Guerreiro critica], também se parecem às congéneres
pré-modernas à época em que estas se postavam em segurança atrás das impenetráveis
muralhas do latim, isolando-se da gente simples. Com efeito, o
ciberespaço da web mundial é sob muitos aspectos o equivalente actual do latim
medieval. Ela torna os integrantes das classes cultas pessoas sem território
e fora do alcance daqueles que lhes são próximos no espaço físico, ao mesmo
tempo que lança o alicerce tecnológico de um outro universo, um universo
virtual que aproxima os membros da classe culta. Na qualidade de homens e
mulheres de saber eles habitam o ciberespaço, no qual as distâncias são medidas
por padrões inteiramente diferentes dos que são usados no espaço geográfico
comum; no ciberespaço criam-se pistas independentes das rotas seguidas pelos
outros e a sinalização é disposta de maneira apenas, quando muito, superficial
e casualmente relacionada à cartografia e topografia usuais.
Zygmunt Bauman, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000
(adaptada), os destaques e sublinhados são nossos.
***
As elites já não moram aqui.
Moram em todo o lado, ou seja, não moram em lado nenhum. A extrema mobilidade é uma das suas características. A capacidade de morar em qualquer lugar,
onde lhes aprouver, sem qualquer outra ligação de maior a esse lugar, localidade
ou região, para além de ocuparem esporadicamente um dos seus condomínios aí
localizados, é outra das suas particularidades. O compromisso político com as
sociedades que as viram nascer deixou de ser considerado pelas elites como uma
obrigação, um dever ou uma necessidade de sobrevivência, ou ainda uma condição para a obtenção de poder. A possibilidade de evasão ou “evitamento” por parte das elites trata-se
antes de uma libertação.
As novas elites dispensam representação
e furtam-se à taxação.
Sem comentários:
Enviar um comentário