sábado, março 28, 2020

Um estado de sei lá

Parece que estamos a viver dentro de uma história de George Orwell. Tudo isto é demasiado horroroso. Enclausurados em casa com o terror lá fora, e, pior, com o terror cá dentro. O terror a tomar conta de tudo. O medo de virmos a perder os nossos entes mais queridos, mais frágeis e mais velhos. O medo a querer tomar conta de nós como o Grande Irmão a querer zelar por nós. Esse medo parasita, viral.

Vivemos um estado de emergência. Um estado de sei lá.

Um pesadelo orwelliano.

domingo, março 22, 2020

Passeio higiénico

Passeia-te a ti mesmo.

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Não tendo animais de companhia para passear, passeei-me a mim mesmo hoje, nos termos regulamentares, claro está. O Decreto n.º 2-A/2020, que regulamenta a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, no seu Artigo 5º, alínea i) permite-o, desde que se trate de "deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre".

Realizado o rápido passeio pelas ruas quase desertas em que me cruzei com raros transeuntes em igualdade de circunstâncias, seguiu-se, mais uma vez, tal como no domingo passado, "uma rápida retirada em direcção ao recato do lar-bunker onde se consumiu o resto do dia". Isto já começa a ser o novo normal domingueiro, um estúpido novo normal, diga-se de passagem: rápidas retiradas para o lar-bunker. O problema é que ninguém nos garante que o tal micro-organismo* "«agregado de biomoléculas» patogénico e incapacitado para viver autonomamente fora das células que parasita" (Kutschera, 2008) não o tenha já invadido, insidioso e invasivo que ele é, e aguarde apenas o momento oportuno para nos invadir a nós

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(*) Com efeito, um vírus não é considerado um organismo e representa uma forma intermédia situada entre o mundo inanimado das moléculas e as células metabolicamente activas. (Kutschera, 2008). Não vamos portanto elevá-lo a micro-organismo, porque organismo é que ele não é (pelo menos autónomo).


Referência

Kutschera, Urlich (2008), Biologia Evolutiva, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013

quinta-feira, março 19, 2020

Evolução do nº de infectados pelo coronavirus, EUA, Europa e China


Fonte: Bloomberg (adaptado)

https://www.bloomberg.com/graphics/2020-wuhan-novel-coronavirus-outbreak/, (consultado a 19/03/2020)

Pela leitura desatenta dos gráficos até parece que os EUA estão numa situação tão grave como a Europa ou a China, mas não é verdade. A Bloomberg devia ter rodeado o gráfico dos E.U.A, com uma lupa, pois o número de infectados nesse país corresponde a apenas 10,3% dos infectados na China e a 9,1% dos infectados na Europa.

domingo, março 15, 2020

Peripatético sob ameaça



Hoje, pela manhã, entre a Praia da Rainha e a Praia do Rei, poucos eram os que se passeavam à beira-mar. Todos devidamente apartados (excepto alguns que iam aos pares), uns correndo, outros caminhando, passando bem à ilharga uns dos outros, não fosse o coronavírus andar por ali.

Depois, a rápida retirada em direcção ao recato do lar-bunker onde se consumiu o resto do domingo.

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Desta vez o Titanic embateu num vírus, e entre o ir e o não ir ao fundo, lá se vai tentando fingir a normalidade.

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Tenho-me lembrado nestes dias das palavras de George Steiner que disse que tinha uma certa imagem mental da verdade emboscada ao virar da esquina, à espera de que o homem se aproxime – e a preparar-se para lhe dar uma cacetada na cabeça*; e também de Urlich Beck e da sua Sociedade do Risco, a nossa sociedade do risco.

Estes tempos de excepção colocam-nos naqueles dias de aproximação de apocalipses, os dias do fim, em que é rompida a normalidade da rotina quotidiana. Mas é apenas isso no caso presente: a mera sensação de iminência de um fim.

O vírus não afundará o Titanic. Ficaremos somente um pouco mais conscientes do quão frágil é o navio em que navegamos face a essa verdade que a Natureza nos oferece: a de que estamos sós num universo hostil que só está à espera nalguma esquina que o homem se aproxime para lhe dar uma marretada na cabeça.

É que não era suposto estarmos aqui e contudo estamos.

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(*) George Steiner, Nostalgia do Absoluto, Relógio D’Água, 2003. Pág. 80 e 81.


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