domingo, janeiro 29, 2006

Inveja dos deuses, inveja dos homens

Enquanto esteve triste, Ílion defendeu-se de armas na mão; num dia de alegria introduziu na cidade um cavalo prenhe de guerreiros.
Ovídio, A Arte de Amar

O estado de felicidade e a despreocupação associada tornam-nos desatentos aos maiores perigos. A frase acima é uma alusão à tomada de Ílion pelos Aqueus. Ovídio aplica-a ao contexto da escolha do momento correcto para cortejar uma mulher – quando ela estiver mais feliz. Mas a riqueza da mensagem da frase é muito mais vasta.

Os antigos gregos acreditavam que a felicidade demasiado prolongada num homem poderia motivar a inveja dos deuses e, por consequência, sobre esse homem poderia recair uma desgraça resultante da acção invejosa dos deuses.

Tudo isto se relaciona com a temperança, uma das quatro virtudes cardeais. Até a felicidade no homem não deve manifestar-se excessivamente efusiva e duradoura de modo a não suscitar a inveja, quer dos deuses, quer dos homens.

Quando os deuses entram nisto, tal significa que nem no seu íntimo o homem deve estar sempre feliz (porque os deuses conhecem o íntimo dos homens e dessa forma a sua inveja pode ser desencadeada com as funestas consequências). Mas os estados de alma estão sempre presentes nos actos dos homens, em todos os actos, nem que seja de uma forma quase imperceptível, ainda que o tentemos ocultar.

Mas, se nem os deuses podem escapar à inveja da felicidade humana, o que não sentirão os homens relativamente àqueles que a sentem de uma forma aberta e prevalecente.

Ai daquele que é feliz, logo sobre ele recairão os olhares e as manifestações mais invejosas dos demais infelizes. A inveja dos bens materiais dos outros é mesquinha, mas a inveja de um estado de alma é terrível. A inveja é sempre uma das piores doenças da alma, senão a pior, porque é filha da cobiça e pode ser mãe da loucura. A inveja está para a alma como a preguiça para o corpo.

Porém, sendo tão humanas e naturais, a preguiça e a inveja talvez se possam tolerar se obedecerem à virtude da temperança, ou seja, se não se revelarem excessivas ou não virem dar origem aos males que referi. O importante é não nos deixarmos tomar pelos nossos sentimentos ao ponto de perdermos a razão, quer esses sentimentos sejam de inveja ou de alegria. Afinal, não foi isso que deitou Ílion à perdição?

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