domingo, fevereiro 03, 2008

Heidegger e o Dito de Anaximandro - I

[Heidegger e o pressentimento do fim da história, antes, muito antes de Fukuyama.]

Mas que direito tem a madrugada de nos dirigir a palavra – a nós, supostamente os rebentos mais tardios da filosofia? Será que somos os rebentos de uma história que, agora, se dirige, precipitadamente, para o seu fim – o qual faz perecer todas as coisas, conduzindo-as a uma ordem uniforme cada vez mais desoladora? Ou será que, na distância cronológico-historiográfica do Dito, se esconde uma proximidade histórica daquilo que é o seu não-dito, que fala além de si, em direcção ao futuro?
Heidegger, Martin (1946), "O Dito de Anaximandro" in Caminhos da Floresta, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, pág. 376.

Heidegger desabafa. Parece reclamar contra a ousadia da "madrugada" da filosofia, que teima em dirigir-nos a palavra, e logo a nós, "os rebentos mais tardios da filosofia". Mas não deixa de escutar a palavra que ecoa desde a origem dos tempos filosóficos - o Dito de Anaximandro - e procura nela um sentido que se aplique ao seu tempo que ainda é o nosso. Terá o Tempo ditado o fim da história e o regresso ao apeiron? A questão não é descabida, se considerarmos que foi colocada num momento em que o mundo de Heidegger acabara de ruir (1946), quando os escombros das cidades alemãs, resultantes de uma longa e intensa guerra, pareciam anunciar o fim de uma civilização e se adivinhava uma nova era de equilíbrios instáveis que facilmente poderiam conduzir à destruição nuclear generalizada.

E assim, o fim da esperança, o fim da história, é marcado por um retorno em direcção a "uma ordem uniforme cada vez mais desoladora". Curiosamente, a uniformidade aparece também ligada à ideia de fim da história em Fukuyama (1992), quando se refere à difusão mundial da democracia capitalista liberal enquanto estágio final de uma evolução que tendeu para uma espécie de homeostasia social.

Mas a última questão de Heidegger, reacende a possibilidade de continuidade da história, porque o Dito é apenas uma fresta através da qual se vislumbra o fim, mas não o futuro para além dele - o Dito não é tudo, há o não-dito que pode esconder o futuro (*). Por outras palavras, é aberta a hipótese de a história não estar encerrada numa uniformidade cada vez mais desoladora, sintoma do seu fim. E com efeito, quem ousa hoje afirmar, mesmo depois de Fukuyama o ter afirmado, que a história atingiu o seu termo?

(*) – O fim de uma Era marca o início de uma nova. A construção total (a criação) sucede à destruição total, e as cidades nascem sobre as cinzas das suas antecessoras, excepto as primeiras cidades.

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