Pensamos compreender Nietzsche e ele faz-se muitas vezes compreender, contudo, verifica-se facilmente que se trata de um ressentido. É um ressentido com o cristianismo. O título mais indicado para a sua imprecação contra o cristianismo é O Anticristianismo e não O Anticristo, pois Cristo não integrou o cristianismo, assim como Marx, por exemplo, não foi marxista. Há que separá-los, Cristo e Marx, das ideologias que neles se basearam, mas que eles não fundaram. Na verdade, Nietzsche afirma que “houve apenas um cristão e que esse morreu na cruz” (1).
Por vezes, não muitas, Nietzsche parece, surpreendentemente, de forma implícita, valorizar Cristo. Por exemplo, quando afirma que “Qualquer prática quotidiana, qualquer instinto, qualquer juízo de valor que se torne acto são, actualmente, anticristãos: que monstro de falsidade há-de ser o homem moderno, para que, apesar disso, não se envergonhe de ainda se chamar cristão!” (2), está implicitamente a considerar Cristo como uma referência que não está a ser seguida, em actos e atitudes, por aqueles que se dizem cristãos, e que esses deveriam por isso envergonhar-se, na medida em que estão a ser falsos.
Nietzsche parte também de uma premissa falsa ao separar o Homem da Natureza. Para ele os “valores naturais”, a Natureza e a Vida são valores que voam mais alto. O que se opõe à Natureza, aos valores naturais, à Vida deve ser alvo de imprecação. Mas o Homem, na verdade, faz parte da Natureza, o Homem não está fora da Natureza e por isso qualquer separação entre Homem e Natureza é artificial.
Outra objecção: Nietzsche condena o cristianismo por este ter considerado a Ciência o primeiro pecado, o pecado original, aquele que levou à expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Tudo porque a ciência “tornava o Homem igual a Deus” (3). Mas a verdade é que o homem científico está a transformar o mundo num lugar muito distante de um paraíso. O mundo pode tornar-se num inferno por causa do uso indevido que se faz dos avanços científicos. Um inferno atómico, um inferno demográfico, um inferno ambiental, etc. Na verdade, o uso que o Homem está a fazer dos conhecimentos científicos está a expulsá-lo do Paraíso, o paraíso terrestre, ameaçado pela degradação ambiental e pela extinção das espécies. E aqui a metáfora da Árvore do Saber e da expulsão do Paraíso, torna a emergir, prenhe de significado.
O conhecimento científico é um instrumento ao serviço do Homem, e como todos os instrumentos, pode ser utilizado indevidamente.
Nietzsche é preconceituoso em relação à mulher, que considera fraca de vontade:
“Qualquer forma de crença é em si mesma uma expressão de despersonalização, de alienação de si próprio…Se se tiver em conta como é necessário à maioria das pessoas um elemento regulador que as ligue e as fixe a partir do exterior, como a coacção (num sentido mais radical, a escravatura) é a única e derradeira condição que permite prosperar às pessoas de vontade mais fraca, sobretudo à mulher, pois também se compreende a convicção, a «fé»”. (4)
Nietzsche considera a bondade uma fraqueza, com uma excepção: “Só às pessoas mais espirituais é permitido aceder à beleza e ao belo; só nelas é que a bondade não é fraqueza.” (5). O filósofo classifica muitas vezes as pessoas em fracas e fortes, como se tal fosse possível. Tratam-se de condições transitórias. Ninguém é sempre fraco, assim como ninguém é sempre forte. O ser humano vacila muitas vezes, cai e levanta-se…
Enfim, o cristianismo para Nietzsche, é o grande inimigo da Vida, ainda que tenha como primeiro mandamento “Não matarás!”. E isto é uma contradição.
P.S. - Contudo percebemos o rancor de Nietzsche em relação a esses que mataram e matam em nome de Deus, quando o primeiro mandamento pelo qual dizem guiar-se é “Não matarás!”, ou em relação aos sacerdotes, como por exemplo, os padres pedófilos que violam, para além das crianças, os princípios cristãos mais fundamentais. Com efeito, tem razão Nietzsche quando afirma que “houve apenas um cristão e que esse morreu na cruz”.
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Notas:
(1) – Friedrich Nietzsche, O Anticristo in Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche, Volume 7, Relógio D’Água, 2000, pág. 57.
(2) – Op. cit., pág. 57.
(3) – Op. cit., pág. 75
(4) – Op. cit., pág. 87
(5) – Op. cit., pág. 93
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