O criacionismo é coisa de fundamentalistas protestantes, diz Umberto Eco, e, paradoxo dos paradoxos, o texto em que se baseiam – o Génesis - até é “refinadamente” darwinista. Nos nossos dias, e sabendo o que sabemos hoje, qualquer interpretação literal da Bíblia, como a que realizam os fundamentalistas protestantes, ultrapassa a fronteira da sanidade e da razoabilidade. Mas, por outro lado, a leitura metafórica também pode prestar-se a diversas interpretações, algumas até de sinal contrário. E assim, tudo o que antes era religiosamente proibido passa agora a ser vagamente permitido.
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Ora, seria infantil pedir a São Tomás absolvições para quem pratique um aborto dentro de um dado período de tempo, e, provavelmente, ele não pensava sequer nas implicações morais do seu discurso, que hoje chamaremos de tipo refinadamente científico. No entanto, é curioso que a Igreja, que sempre se reclama do magistério do doutor de Aquino, sobre este ponto tenha decidido afastar-se tacitamente das suas posições.
Aconteceu um pouco aquilo que aconteceu com o evolucionismo, com que a Igreja tinha chegado a acordo há muito, porque basta interpretar em sentido metafórico os seis dias da criação, como sempre fizeram os padres da Igreja, e eis que deixa de haver contra-indicações bíblicas a uma visão evolucionista. Pelo contrário, o Génesis é um texto refinadamente darwinista, porque nos diz que a criação aconteceu por fases, do menos complexo ao mais complexo, do mineral ao vegetal, ao animal, ao humano.
No princípio, Deus criou o céu e a terra. [...] Deus disse: «Haja luz!» E houve luz. Deus viu que a luz era uma coisa boa e separou a luz das trevas e chamou à luz dia e às trevas noite. [...] Deus fez o firmamento e separou as águas que estão debaixo do firmamento das águas que estão por cima do firmamento. [...] Deus disse: «Juntem-se as águas que estão debaixo do céu num único lugar e apareça seco.» E assim aconteceu. Deus chamou ao seco terra e à massa das águas mar. [...] E Deus disse: «A terra produza rebentos, ervas que produzam sementes e árvores de fruto, que dêem na terra fruto com a semente, cada uma segundo a sua espécie» [...]. Deus fez as duas luminárias grandes, a luminária maior para senhorear o dia e a luminária menor para senhorear a noite, e as estrelas. [...] Deus disse: «As águas fervilhem de seres vivos e aves voem sobre a terra, diante do firmamento do céu.» [...] Deus criou os grandes monstros marinhos e todos os seres vivos que deslizam e fervilham nas águas [...]. Deus disse: «A terra produza seres vivos segundo a sua espécie: gado, répteis e animais selvagens segundo a sua espécie.» [...] E Deus disse: «Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança.» [...] E então o Senhor Deus formou o homem com pó da terra e soprou-lhe nas narinas um fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.
A escolha de uma batalha anti-evolucionista e de uma defesa da vida que chega até ao embrião parece sobretudo um alinhamento com as posições do protestantismo fundamentalista.
Eco, Umberto; Construir o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais, Gradiva, 2011. Pág. 127-128
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