O filósofo Peter Sloterdijk,
cinicamente, dispara sobre todo o tipo de militantismo. O militante é um
colérico, um ressentido, um activista revolucionário, ansioso por reconhecimento
e acção, que se agita e se organiza em partidos e movimentos[1]
– reporta-se também aos actuais “movimentos sociais no capitalismo global”. O
Partido é, para Sloterdijk, um banco de cólera e de ira que pretende
capitalizar ainda mais esses (res)sentimentos, de forma a fazê-los explodir no
momento considerado mais oportuno, a mando de um líder, de um comité
coordenador ou de um comité revolucionário. O histórico Partido Comunista é
visado pelo filósofo, mas não só o Partido Comunista: refere-se principalmente
aos “partidos políticos ou movimentos situados na ala esquerda do espectro
político” (Sloterdijk 2010: 161), se bem que aluda, noutro lado, ainda aos
militantes nacionais-socialistas. No entanto, depois deste tratamento cínico,
particularmente em relação a toda a esquerda que ainda mexe - a ala política que
representa os desfavorecidos, os explorados, os expropriados, os sem-terra e os
injustiçados deste mundo – o filósofo sai-se com este belo naco de prosa
relativa ao capitalismo, digna de realce (Sloterdijk 2010: 162):
A verdadeira missão do capital consiste em assegurar constantemente o
prosseguimento alargado do seu próprio movimento. Tem por vocação derrubar
todas as situações em que as barreiras à exploração, como os usos e costumes e
a legislação complicam a sua marcha vitoriosa. Assim sendo, não há nenhum capitalismo
sem a propagação triunfal desse desrespeito a que os críticos da época dão desde
o século XIX o nome pseudofilosófico de «niilismo». Na verdade, o culto do nada
mais não é do que o efeito secundário inevitável do monoteísmo monetário, para
o qual todos os outros valores só são ídolos e simulacros.
Por outras palavras, os
promotores da marcha triunfal do capitalismo procuram remover todos os entraves
a esse livre prosseguimento. E que entraves são esses? As “barreiras à
exploração” acrescente-se, do homem pelo homem, e “os usos e costumes e a
legislação”. Porque nos admiramos então das investidas contra certos direitos
consignados na Constituição, promovidas pelos que representam os interesses
capitalistas e que agora nos governam? Era suposto que nos representassem:
afinal não vivemos num regime democrático representativo? Descobrimos perplexos
que afinal o sistema pós-político vigente perdeu boa parte da sua
democraticidade, e acerca da sua representatividade é melhor nem falar.
Capitalismo e niilismo progridem de mãos dadas. Crescem numa proporção directa.
Os usos e costumes são aplanados, para não dizer terraplanados (os geógrafos, os
antropólogos, os sociólogos, entre outros cientistas sociais já haviam notado o
seu retrocesso nas culturas locais face à avançada da cultura homogeneizadora
da globalização capitalista). Todos os valores, que não “o monoteísmo monetário”
são reduzidos a ídolos e simulacros. A verdadeira teologia é agora a dos mercados.
Mas, face a tal quadro, o que
pretendia Sloterdijk que os indignados, ou nas suas palavras, os encolerizados e
explorados deste mundo fizessem? Que calassem a sua indignação? Que
permanecessem atomizados? O próprio filósofo reconhece que na origem da
organização das vítimas do capitalismo em partidos e movimentos, se encontra a “miséria
económica” e a “repressão política” (Sloterdijk 2010:170):
Em relação à constituição do tesouro da cólera nos principais países do
sistema económico capitalista durante a segunda metade do século XIX, escusado
será dizer que a conexão crónica entre a miséria económica e a repressão
política das amplas «massas» haveria forçosamente de garantir um abundante
aprovisionamento adicional de cólera e indignação. Esses impulsos dissidentes,
que começaram por ser amorfos e debilmente articulados, só estavam depositados
inicialmente nas mãos dos indivíduos que os possuíam, até serem retomados por
organizações interessadas [leia-se, partidos, movimentos da ala esquerda do
espectro político], sendo captados e
convertidos em capital social de uma política de oposição progressista baseada
na cólera.
Sloterdijk, nas posições que toma
é de um cinismo atroz em relação ao comunismo e à dita ala esquerda e
movimentos sociais no capitalismo, mas também não deixa de ser extremamente
cínico em relação ao próprio capitalismo. Ou seja, crítica as diferentes partes
sem tomar parte por nenhuma delas, tal qual um Diógenes pós-moderno.
***
Referência
Sloterdijk, Peter (2006), Cólera e Tempo, Relógio D'Água. 2010.
[1]
“Na verdade, o militantismo nos tempos
modernos tem atrás de si uma longa série de formas de constituições de corpos
coléricos – sob a figura de sociedades secretas, de ordens terroristas, de
células revolucionárias, de associações nacionais e supranacionais, de partidos
operários, de sindicatos de todo o tipo, de organizações de auto-ajuda, de associações
artísticas – todas organizadas, a nível interno, pelas respectivas condições de
adesão, pelos rituais da vida associativa, pelos seus jornais, revistas e
editoras.” (Sloterdijk 2005: 143)
"um belo naco de prosa"
ResponderEliminarele é cínico
você goza