sábado, fevereiro 18, 2012

O cínico do Sloterdijk


O filósofo Peter Sloterdijk, cinicamente, dispara sobre todo o tipo de militantismo. O militante é um colérico, um ressentido, um activista revolucionário, ansioso por reconhecimento e acção, que se agita e se organiza em partidos e movimentos[1] – reporta-se também aos actuais “movimentos sociais no capitalismo global”. O Partido é, para Sloterdijk, um banco de cólera e de ira que pretende capitalizar ainda mais esses (res)sentimentos, de forma a fazê-los explodir no momento considerado mais oportuno, a mando de um líder, de um comité coordenador ou de um comité revolucionário. O histórico Partido Comunista é visado pelo filósofo, mas não só o Partido Comunista: refere-se principalmente aos “partidos políticos ou movimentos situados na ala esquerda do espectro político” (Sloterdijk 2010: 161), se bem que aluda, noutro lado, ainda aos militantes nacionais-socialistas. No entanto, depois deste tratamento cínico, particularmente em relação a toda a esquerda que ainda mexe - a ala política que representa os desfavorecidos, os explorados, os expropriados, os sem-terra e os injustiçados deste mundo – o filósofo sai-se com este belo naco de prosa relativa ao capitalismo, digna de realce (Sloterdijk 2010: 162):

A verdadeira missão do capital consiste em assegurar constantemente o prosseguimento alargado do seu próprio movimento. Tem por vocação derrubar todas as situações em que as barreiras à exploração, como os usos e costumes e a legislação complicam a sua marcha vitoriosa. Assim sendo, não há nenhum capitalismo sem a propagação triunfal desse desrespeito a que os críticos da época dão desde o século XIX o nome pseudofilosófico de «niilismo». Na verdade, o culto do nada mais não é do que o efeito secundário inevitável do monoteísmo monetário, para o qual todos os outros valores só são ídolos e simulacros.


Por outras palavras, os promotores da marcha triunfal do capitalismo procuram remover todos os entraves a esse livre prosseguimento. E que entraves são esses? As “barreiras à exploração” acrescente-se, do homem pelo homem, e “os usos e costumes e a legislação”. Porque nos admiramos então das investidas contra certos direitos consignados na Constituição, promovidas pelos que representam os interesses capitalistas e que agora nos governam? Era suposto que nos representassem: afinal não vivemos num regime democrático representativo? Descobrimos perplexos que afinal o sistema pós-político vigente perdeu boa parte da sua democraticidade, e acerca da sua representatividade é melhor nem falar. Capitalismo e niilismo progridem de mãos dadas. Crescem numa proporção directa. Os usos e costumes são aplanados, para não dizer terraplanados (os geógrafos, os antropólogos, os sociólogos, entre outros cientistas sociais já haviam notado o seu retrocesso nas culturas locais face à avançada da cultura homogeneizadora da globalização capitalista). Todos os valores, que não “o monoteísmo monetário” são reduzidos a ídolos e simulacros. A verdadeira teologia é agora a dos mercados.

Mas, face a tal quadro, o que pretendia Sloterdijk que os indignados, ou nas suas palavras, os encolerizados e explorados deste mundo fizessem? Que calassem a sua indignação? Que permanecessem atomizados? O próprio filósofo reconhece que na origem da organização das vítimas do capitalismo em partidos e movimentos, se encontra a “miséria económica” e a “repressão política”  (Sloterdijk 2010:170):

Em relação à constituição do tesouro da cólera nos principais países do sistema económico capitalista durante a segunda metade do século XIX, escusado será dizer que a conexão crónica entre a miséria económica e a repressão política das amplas «massas» haveria forçosamente de garantir um abundante aprovisionamento adicional de cólera e indignação. Esses impulsos dissidentes, que começaram por ser amorfos e debilmente articulados, só estavam depositados inicialmente nas mãos dos indivíduos que os possuíam, até serem retomados por organizações interessadas [leia-se, partidos, movimentos da ala esquerda do espectro político], sendo captados e convertidos em capital social de uma política de oposição progressista baseada na cólera.

Sloterdijk, nas posições que toma é de um cinismo atroz em relação ao comunismo e à dita ala esquerda e movimentos sociais no capitalismo, mas também não deixa de ser extremamente cínico em relação ao próprio capitalismo. Ou seja, crítica as diferentes partes sem tomar parte por nenhuma delas, tal qual um Diógenes pós-moderno.  

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Referência

Sloterdijk, Peter (2006), Cólera e Tempo, Relógio D'Água. 2010.

[1]Na verdade, o militantismo nos tempos modernos tem atrás de si uma longa série de formas de constituições de corpos coléricos – sob a figura de sociedades secretas, de ordens terroristas, de células revolucionárias, de associações nacionais e supranacionais, de partidos operários, de sindicatos de todo o tipo, de organizações de auto-ajuda, de associações artísticas – todas organizadas, a nível interno, pelas respectivas condições de adesão, pelos rituais da vida associativa, pelos seus jornais, revistas e editoras.” (Sloterdijk 2005: 143)

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