Lido o longo livro de Nuno
Rogeiro, 652 páginas (!), há ideias e pontos de vista com as quais concordamos
e outros acerca dos quais discordamos. Mas nem poderia ser doutra forma quando
se realiza uma leitura crítica. Para dizer a verdade, embora não sendo uma
bíblia, são vários livros num, pois o autor deambula por vários temas com toda
a liberdade, indisciplinadamente, e a seu contento, aprofundando mais aqui e
menos ali, o que dá um certo desequilíbrio aos subcapítulos – por exemplo, só
às questões que se prendem com a política de defesa, questões militares e geopolítica,
são dedicadas 108 páginas integradas num capítulo reservado a políticas
sectoriais de 181 páginas (em suma, a Defesa ocupa 60% das páginas desse
capítulo). Mas Nuno Rogeiro escreve sobre aquilo de que gosta e fá-lo de forma
fundamentada, como se pode atestar pelas inúmeras referências a que recorre,
indicadas em rodapé. Escreve com grande erudição, existindo muitas outras
referências implícitas no texto, para além das que indica em rodapé – por
exemplo, Céline[1],
Jean-Paul Sartre[2], Hayek[3],
são citados, entre muitos outros, se o leitor estiver atento.
Em abono do autor está também o
facto de ter resistido à ideia de colocar a sua cara na capa ao contrário destes aqui, referidos no Malomil.
Mas vamos às discordâncias e
embirrações (ficamo-nos apenas por três para não sermos maçudos, pois outras
haveria).
Primeira embirração. Para Rogeiro,
neoliberais são ou foram os do Partido Socialista. Já o governo PSD-CDS de
Passos-Portas é tão só, liberal (p. 558 e outras antes e depois). Nunca aponta
as políticas governamentais seguidas como sendo neoliberais, referindo apenas
que “algumas capelinhas” chamam neoliberal a Vítor Gaspar (p. 125). Os termos
neoliberal ou neoliberalismo aparecem nas páginas 125, 155, 244, 382, 384, 557,
579 e 595, mas nunca agregados ao actual governo e sua política. Ora a nosso
ver, as políticas actualmente seguidas, mais do que liberais, são neoliberais,
na medida em que, mais do que a liberdade do indivíduo, procuram servir o
interesse da grande empresa, desmantelando o Estado social. Um verdadeiro
liberal serve a liberdade do indivíduo, os neoliberais, servem e estão ao
serviço das grandes empresas e do poder financeiro em expansão pelo planeta.
Por outras palavras, se tiver de escolher entre a liberdade do indivíduo ou o
interesse da grande empresa, o governante neoliberal não hesita: escolhe sempre
o interesse da grande empresa. Por isso não é liberal. Enquanto projecto
político, o neoliberalismo é intervencionista. Na prática, e politicamente, exerce
um grande controlo da vida económica e social - ao contrário do que propala a
teoria liberal - em benefício de classes sociais minoritárias mas poderosas.
Podemos dizer que o governo neoliberal, através do Estado, inferniza a vida dos
cidadãos comuns em favor de determinadas elites proprietárias e terratenentes.
É a liberdade de uns, conseguida à custa da restrição da liberdade dos outros,
geralmente a ampla maioria.
Mas é curioso que, sendo Rogeiro
um fã das teorias da conspiração, a ponto de ser exaustivo na explicitação das
várias versões e de inventar ele mesmo, a sua própria teoria da conspiração (p.
43-49), não aborde o neoliberalismo enquanto ficção conspirativa, o que poderá
significar que lhe dá algum crédito.
Segunda embirração: a saída do
euro. Diz Rogeiro que “A saída significa
o regresso, para quem sai, das velhas políticas de manipulação soberana da
moeda e tentativa de fecho ao exterior. Pode resultar, mas noutro mundo.» (p.
574). Políticas de manipulação soberana?! Soberania, isso sim. Com a saída do
euro seria o regresso de alguma soberania perdida e autodeterminação. No
momento em que escrevemos o euro vale 1,35 dólares, a nossa economia agoniza e
nós não podemos utilizar os instrumentos de política monetária de forma a
estimular a economia. Ainda sabendo que sair da zona euro depois de nela ter
entrado, não é o mesmo do que nunca ter entrado nela, perguntamo-nos: o Reino
Unido, a Dinamarca e a Suécia, só para nomear três países da U.E. com moeda
própria, serão doutro mundo? Serão países autárcicos? Estarão fechados ao exterior?
Terceira embirração: lembra-nos
Rogeiro, à semelhança de muitos outros, conservadores e reaccionários, que o
período de maior crescimento económico em Portugal foi no período do fascismo,
entre 1959 e 1973 (p. 597). Perguntamos: e depois? Como explicar então que,
nessa “próspera terra do leite e do mel, do maná dos céus”, se tenha verificado
a maior debandada de portugueses de que há memória (falamos das emigrações e da
mala de cartão)? E o que nos indicavam nesse período os indicadores de
desenvolvimento humano, como a esperança média de vida, a taxa de
mortalidade infantil ou a taxa de analfabetismo, entre outros? O crescimento
económico é apenas um meio para o desenvolvimento. De nada nos serve se não se
reflectir na qualidade de vida nem no bem-estar da população.
Outras embirrações haveria que
contar. Afinal Rogeiro parece ser um pró passista-portas com simpatias
marcelistas e nós não somos, mas existem no seu texto ideias expressas com as quais concordamos, e que já aludimos aqui noutro post.
Concordamos também que o Estado
não pode pedir sacrifícios aos cidadãos enquanto existirem “28 mil viaturas a
transportar ministros, ajudantes dos ajudantes, juízes, autarcas, deputados,
generais, funcionários, gestores públicos e banqueiros de Portugal” (p. 587).
Afinal o exemplo deveria vir de cima. Já na página 237, Rogeiro havia reforçado
esta ideia: “enquanto não se cortar o último Mercedes do Estado, não se pode
tocar nas pensões” e, diz ele, esta é uma revolução simbólica que está por
fazer.
Finalmente diga-se que Rogeiro é um
patriota e um nacionalista, disso não há dúvida. Diz ele no fim da sua análise:
«Tudo isto é assim num país paradoxal e estranho, como se disse atrás,
na conferência aos funcionários chineses.
Paradoxal e estranho, mas o nosso. De que não desistimos.
Quem quiser sair e fechar a luz, faça favor.
Mas nós ficamos».
Nós também ficamos. Mas não
ficaremos às escuras.
[1]
Um dos subcapítulos intitula-se “Bagatelas para um massacre”, que é título de
uma obra de Céline, Bagatelles pour un
Massacre.
[2]
Na página 460 refere “Por outras palavras, desenvolvimento é crescimento em
equilíbrio e expansão individual com consciência do ecossistema, isto é, dos
outros, que deixam de ser o inferno para passarem a ser tão-só a realidade”. A
expressão “o inferno são os outros” é atribuída a Jean-Paul Sartre.
[3]
Nas páginas 296-297 coloca esta questão: “Como podia alguém pensar que a
produção e as exportações, aumentadas e revistas, sobreviveriam miraculosamente
se mantivéssemos uma carga improdutiva, paga por todos, que é, citando o outro,
um caminho para a servidão?” O outro é o economista austríaco Hayek, e a sua
obra mais conhecida The Road to Serfdom.
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