domingo, fevereiro 24, 2008

A Escola

Escola de Atenas (1506-1510), Rafael
Soam já pelas ruas e praças as trombetas do chamamento. Mestres professores afluem de todas as direcções para unirem esforços e reflexões. A sua missão está a ser posta em causa. E a sua missão é simplesmente ensinar em liberdade e com responsabilidade. Acontece que querem retirar-lhes a liberdade. Uma liberdade milenar. Querem deixá-los apenas com a responsabilidade. Nesta missão de ensinar não há liberdade sem responsabilidade, nem responsabilidade sem liberdade! Dirigentes lançam os progenitores contra professores, para mais facilmente fazerem passar as suas reformas economicistas. Dirigentes que desvalorizam os professores, por questões de economia, são dirigentes mal-educados. Desprezam a escola. Os professores são intelectuais difusores de civismo e cultura, numa sociedade onde falta civismo e cultura. As suas escolas eram o último reduto que faltava tomar de assalto. Um porto seguro onde se podia aprender e amar as ciências, a filosofia, a arte e o desporto e onde se aprendia a ser cidadão. (Curiosamente, em muitas escolas existem réplicas de anfiteatros em meia-lua, copiando uma estrutura de tempos antigos, quando a cidadania imperava entre os homens).

Abrir a escola à sociedade. O que significa isso? Então, em todos estes anos a escola esteve fechada à sociedade? O chavão esconde na verdade outra intenção. O que se pretende é abrir a escola ao mercado. Colocar a escola no mercado. Vendê-la. Pô-la ao serviço da economia. Os actuais dirigentes parecem julgar que, para construir um modelo novo é preciso destruir o antigo, deformando-o. E a escola tem sido deformada e não reformada.

Mal vai o país que se deixa manipular pelos seus dirigentes. Mal vai o país que despreza os seus professores. Pobre país.

E as universidades?

O conceito agora é pragmático. Aprender é um privilégio que deve ser pago por quem aprende, consideram as novas tendências neoliberais. Não! Aprender é um prazer e uma necessidade. Hoje querem que a universidade passe a ser um enorme centro de formação profissional. Defendem que as universidades devem formar o homem laboral ao invés do Homem. A importância dos cursos é agora medida pelas saídas profissionais e pela ligação ao mundo do trabalho. Valoriza-se a ligação das universidades às empresas, como se isso fosse mais importante que tudo o resto. O homem deve agora estar ao serviço das empresas e a Universidade ao serviço da Economia. Se tivesse sido esse o critério a presidir às primeiras universidades, em Atenas, ou no período medieval, jamais teriam havido universidades.

Enfim, já soam as trombetas dos mestres professores. A hora é dramática. É hora de cerrar fileiras. É hora de união, reflexão e acção.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Cavaleiro, Diabo e Morte

Cavaleiro, Diabo e Morte (1513)

de Albrecht Dürer (1471-1528)

Albrecht Dürer criador de uma das gravuras mais belas do mundo: "Cavaleiro, Diabo e Morte".

Ortega y Gasset (1906)

sábado, fevereiro 09, 2008

Heidegger e o Dito de Anaximandro - II

A antiguidade que determina o Dito de Anaximandro, pertence à madrugada do dealbar da “terra do poente”. E se o inicial ultrapassasse todo o posterior, se até o mais inicial ultrapassasse, ainda e mais possível, o mais tardio? O primevo da madrugada do destino apareceria então como o primevo em relação ao derradeiro (ἔσχατου), isto é, em relação à despedida do destino do ser até agora velado. O ser do ente reúne-se (λἑγεσθαι, λὁγοϛ) no extremo do seu destino. Aquele que até agora, tem sido o estar-a-ser [Wesen] do ser afunda-se na sua verdade ainda velada. A história do ser reúne-se neste adeus. A reunião neste adeus, enquanto reunião (λὁγοϛ) do mais extremo (ἔσχατου) daquilo que tem sido até aqui o seu estar-a-ser [Wesen], é a escatologia do ser. O ser ele próprio, enquanto ser que tem um destino, é, em si próprio escatológico.

Heidegger, Martin (1946), O Dito de Anaximandro in Caminhos da Floresta, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, pág. 377.

Sonhamos ainda com o fecho dos ciclos e com um novo regresso à Idade do Ouro. Fortunae rota volvitur. Sonhamos com o regresso dessa primeira Idade, quando os homens eram livres e felizes. Ou sonhamos com a Idade em que os homens eram heróis, batendo-se ao lado dos deuses. E se o inicial ultrapassasse todo o posterior, se até o mais inicial ultrapassasse, ainda e mais possível, o mais tardio? (pergunta Heidegger). Hesíodo e o seu Mito das Idades ainda nos convoca, mas… a nossa Idade que ainda era há pouco a do Ferro, cessou, para dar lugar a uma nova Idade que não consta da mitologia. Já não a Idade do Ouro, da Prata, do Bronze ou do Ferro, mas uma nova Idade imaterial, feita de dados, informação, imagens… Torna-se necessário reescrever o Mito das Idades. Romperam-se os ciclos.

Mas retomamos o Dito de Anaximandro, para divagarmos com Heidegger acerca da possibilidade do seu cumprimento, com um retorno do estar-a-ser [Wesen] ao apeiron, essa verdade ainda velada, onde aquele que até agora, tem sido o estar-a-ser do ser se afunda. E o destino surge fatalmente enquanto lugar de retorno. Sempre o destino. O ser do ente reúne-se (λἑγεσθαι, λὁγοϛ) no extremo do seu destino. (…) A história do ser reúne-se neste adeus. E encerra-se assim um ciclo. O destino aqui, conduz o estar-a-ser a um eterno retorno, que se afunda na sua verdade e dela torna a emergir, furiosamente, como se estivesse lutando contra uma imersão profunda, ou pela Vida. Ou a Vida lutando por libertar-se das amarras que a prendem ao destino…

Talvez por isso Ortega y Gasset saliente que a vida é preocupação. Viver é preocupar-se, diz ele, ou seja, ocupar-se antecipadamente. Enfim, um eterno retorno do futuro, sempre convocado ao presente das nossas vidas. É por isso que nos preocupamos.


domingo, fevereiro 03, 2008

Heidegger e o Dito de Anaximandro - I

[Heidegger e o pressentimento do fim da história, antes, muito antes de Fukuyama.]

Mas que direito tem a madrugada de nos dirigir a palavra – a nós, supostamente os rebentos mais tardios da filosofia? Será que somos os rebentos de uma história que, agora, se dirige, precipitadamente, para o seu fim – o qual faz perecer todas as coisas, conduzindo-as a uma ordem uniforme cada vez mais desoladora? Ou será que, na distância cronológico-historiográfica do Dito, se esconde uma proximidade histórica daquilo que é o seu não-dito, que fala além de si, em direcção ao futuro?
Heidegger, Martin (1946), "O Dito de Anaximandro" in Caminhos da Floresta, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, pág. 376.

Heidegger desabafa. Parece reclamar contra a ousadia da "madrugada" da filosofia, que teima em dirigir-nos a palavra, e logo a nós, "os rebentos mais tardios da filosofia". Mas não deixa de escutar a palavra que ecoa desde a origem dos tempos filosóficos - o Dito de Anaximandro - e procura nela um sentido que se aplique ao seu tempo que ainda é o nosso. Terá o Tempo ditado o fim da história e o regresso ao apeiron? A questão não é descabida, se considerarmos que foi colocada num momento em que o mundo de Heidegger acabara de ruir (1946), quando os escombros das cidades alemãs, resultantes de uma longa e intensa guerra, pareciam anunciar o fim de uma civilização e se adivinhava uma nova era de equilíbrios instáveis que facilmente poderiam conduzir à destruição nuclear generalizada.

E assim, o fim da esperança, o fim da história, é marcado por um retorno em direcção a "uma ordem uniforme cada vez mais desoladora". Curiosamente, a uniformidade aparece também ligada à ideia de fim da história em Fukuyama (1992), quando se refere à difusão mundial da democracia capitalista liberal enquanto estágio final de uma evolução que tendeu para uma espécie de homeostasia social.

Mas a última questão de Heidegger, reacende a possibilidade de continuidade da história, porque o Dito é apenas uma fresta através da qual se vislumbra o fim, mas não o futuro para além dele - o Dito não é tudo, há o não-dito que pode esconder o futuro (*). Por outras palavras, é aberta a hipótese de a história não estar encerrada numa uniformidade cada vez mais desoladora, sintoma do seu fim. E com efeito, quem ousa hoje afirmar, mesmo depois de Fukuyama o ter afirmado, que a história atingiu o seu termo?

(*) – O fim de uma Era marca o início de uma nova. A construção total (a criação) sucede à destruição total, e as cidades nascem sobre as cinzas das suas antecessoras, excepto as primeiras cidades.

sábado, fevereiro 02, 2008

O Dito de Anaximandro

Anaximandro (Mileto, séc. VI a.C.) é o primeiro grego a escrever um livro, mas dessa obra resta apenas um pequeno fragmento: o Dito. E que Dito!

Segundo de Hermann DIELS reza assim:

Mas, de onde as coisas têm o seu passar a ser, para aí vai também o seu deixar de ser, segundo a necessidade; pois elas pagam, umas às outras castigo e penitência pela sua impiedade, segundo o tempo estabelecido.

De todas as frases do sábio Anaximandro, eis que esta consegue atravessar o tempo, um período de 2 600 anos, e como uma flecha, chega até nós. Como se de um capricho do próprio tempo se tratasse, já que, no Dito, o tempo é o juiz que dita a sentença, relativamente a tudo, determinando o fim de todas as coisas e o seu regresso ao apeiron (ἂπειρον). E o tempo determinou que o livro cessasse mas que o Dito perdurasse, chegando até nós.

Muitas questões se podem levantar: porquê este fragmento e não outro? Por que razão haveria logo de ser um fragmento acerca do princípio e do fim de todas as coisas, viventes e não viventes? Será que o Dito assume um significado diferente, de acordo com a época em que é interpretado, à luz do tempo vivido?

Se a chegada do Dito até nós foi um acaso, e é o mais provável, então trata-se de um facto admirável. O Dito refere-se a uma ordem do Universo, a um modelo de cosmos. O que existe é algo que se liberta do apeiron por um grande ou pequeno instante, a ele regressando logo após o tempo estabelecido. Poderíamos recorrer à imagem de uma chama que se projecta da superfície de uma estrela, a ela regressando por não conseguir vencer a força da sua gravidade. E isso acontecendo vezes e vezes sem conta, num ciclo sem fim.

Regressaremos ao Dito.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Sócrates, grande Sócrates (470 a.C - 399 a.C)

Atenienses, agradeço-vos e amo-vos, mas obedecerei antes ao deus do que a vós. Enquanto possuir um sopro de vida, enquanto for capaz, não conteis que eu deixe de filosofar, de vos exortar e de vos ensinar. A cada um daqueles que eu encontrar direi o que habitualmente digo ‘Como é que tu, excelente homem, que és ateniense e cidadão da maior cidade do mundo e da mais famosa pela sabedoria e poder, como é que não tens vergonha de pôr os teus cuidados em amealhar dinheiro o mais possível e em buscar a fama e as honrarias, ao passo que não tomas qualquer cuidado ou preocupação com o teu pensamento, com a verdade da tua alma?’

Platão, Apologia de Sócrates

Também nós, europeus, os da “terra do poente”, somos atenienses. Nós, os da grande Civilização Ocidental, somos atenienses. A questão de Sócrates ainda se coloca. Surge num momento em que Atenas inicia a sua decadência e Sócrates é condenado à morte pelos juízes, esses supostos defensores da Justiça, ultrapassados por ele, que em muito os transcendeu na defesa da Justiça.
Bem poderia também, ser um juramento deontológico para os que ensinam - Enquanto possuir um sopro de vida, enquanto for capaz, não conteis que eu deixe de filosofar, de vos exortar e de vos ensinar.
Hoje valorizamos o que é material, a fama e as honrarias e descuramos aquilo que é mais precioso, a liberdade, a alma, o pensamento, mas mais importante que tudo, a liberdade de pensamento.

Ter é tardar.

Fernando Pessoa, Mensagem

domingo, janeiro 27, 2008

Longe das grandes cidades





Já florescem as amendoeiras. Em breve por toda a Arcádia, as serras ondulantes serão mares brancos de estevas floridas. As andorinhas chegaram mais cedo e bandos de pássaros azuis rompem os céus da manhã. Aqui ainda se respira liberdade.

domingo, janeiro 13, 2008

A imutabilidade de Deus

Ancient of Days (God as an Architect), 1794
William Blake (1757-1827)
Lido no DN (12-01-2008):
Um interessante texto de Anselmo Borges e uma excelente constatação de Mestre Eckhart.
Mais uma vez pressentimos o apeiron de Anaximandro nas palavras de Mestre Eckhart. Apeiron "que tudo inclui, que tudo governa" e ao qual tudo retorna.
A imutabilidade é o pano de fundo da mudança.

sábado, janeiro 05, 2008

Sobre o uso de máquinas calculadoras no ensino de crianças

A memória é como um músculo. Se não for exercitada mirra, perde qualidades. A memória é a base de outros processos de raciocínio mais complexos. No entanto, alguns educadores e decisores parecem não ter compreendido e continuam a desvalorizá-la. Como a memorização foi levada longe demais por um ensino tradicional, que hoje se considera caduco, mesmo por aqueles que se alcandoraram em elevadas posições na nossa sociedade, educados pelo mesmo sistema de ensino que hoje abominam, as novas correntes de pensamento pedagógico, os novos pedagogos, resolveram erradicá-la das aprendizagens. Memorizar para eles, é anti-pegagógico.
As consequências podem ver-se à vista desarmada: produziu-se uma sociedade sem memória. As memórias estão nos filmes e nos documentários de um passado recente, mas não na cabeça dos homens, que não os vêem, e muito menos os discutem. Arruma-se a memória nos suportes virtuais da memória. Assim, o fantasma do totalitarismo abeira-se da democracia, quase sem ser notado.

Os nossos alunos vão agora poder utilizar a calculadora, nos primeiros anos de escolaridade, desprezando-se dessa forma a exercitação da memória, e por essa via, de todos os outros processos de raciocínio mais complexos.

Deviam memorizar a tabuada. Deviam memorizar poemas. Deviam memorizar regras gramaticais. Deviam memorizar cronologias, importantes referências no tempo histórico, como são os mapas que nos guiam no espaço geográfico. Deviam memorizar conceitos fundamentais para a construção do edifício do conhecimento.

Mas pelo contrário, fomenta-se uma educação e um ensino de triste memória. Assim vai o ensino nestes tempos demóticos.

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