Nos anos 40 do século XX, Karl Polanyi teve a ousadia de questionar a liberdade, num momento em que se morria por ela nos campos de batalha da Europa, África e Ásia. O geógrafo David Harvey, na sua Breve História do Liberalismo (2005) refere-se a Polanyi da seguinte forma (a tradução é minha):«Na sua análise [Polanyi] notou que existem dois tipos de liberdade, uma boa e outra má. Esta última manifesta-se através da “liberdade para explorar o semelhante, ou a liberdade para realizar ganhos incomensuráveis não proporcionais aos serviços prestados à comunidade, a liberdade para esconder invenções e inovações tecnológicas de modo a não serem utilizadas para benefício público, ou a liberdade para se lucrar com calamidades públicas secretamente engendradas para vantagem de privados”. Mas Polanyi prossegue afirmando que “na economia de mercado onde prosperam aquelas liberdades produzem-se também liberdades altamente prezadas. Liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o nosso próprio trabalho.” Enquanto acarinhamos estas liberdades para nosso próprio benefício - e certamente muitos de nós o fazem – existe uma larga extensão de by-products da mesma economia que são também responsáveis pelas más liberdades.» (Harvey, 2005)
Polanyi (1954) responde a este dualismo da seguinte forma:
«The passing of [the] market economy can become the beginning of an era of unprecedented freedom. Juridical and actual freedom can be made wider and general than ever before; regulation and control can achieve freedom not only for the few, but for all. Freedom not as appurtenance of privilege, tainted at the source, but as a prescriptive right extending far beyond the narrow confines of the political sphere into the intimate organization of society itself. Thus will old freedoms and civic rights be added to the fund of new freedoms generated by the leisure and security that industrial society offers to all. Such a society can afford to be both and free. (Polanyi, 1954, [citado por Harvey, 2005])
Infelizmente, Polanyi notou que a passagem a tal futuro é bloqueada pelo “obstáculo moral” da utopia liberal (e mais do que uma vez cita Hayek como um exemplar daquela tradição):
Planning and control are being attacked as a denial of freedom. Free enterprise and private ownership are declared to be essentials of freedom. No society built on other foundations is said to deserve to be called free. The freedom that regulation creates is denounced as unfreedom; the justice, liberty and welfare it offers are decried as a camouflage of slavery. (Polanyi, 1954, [citado por Harvey, 2005])
O fundamentalismo neoliberal que apenas considera livres as sociedades fundadas no princípio da livre empresa, da propriedade privada e isentas de qualquer regulação, constitui-se como um “obstáculo moral” à constituição de sociedades justas e reguladas, verdadeiramente livres e geradoras de bem-estar social.
Referências
Harvey, David (2005); A brief history of neoliberalism; Oxford University Press
Polanyi, Karl (1954); The great transformation; Boston, Beacon Press.
A liberdade e a igualdade, em certa medida, encontram-se em pólos opostos. Ou dito de outra forma: não cabem no mesmo saco. A Revolução Francesa, ao querer juntá-las, arranjou-nos um bom sarilho. Sistemas económicos e políticos que promovem a igualdade ou a liberdade individual estão longe de serem socialmente justos. É preciso pois encontrar um sistema que promova a justiça social, algures entre a liberdade e a igualdade.
Todos nós amamos a liberdade. Amamo-la tanto que daríamos a vida por ela. Colocamos a liberdade acima da nossa própria vida. “Antes morrer de pé que viver de joelhos” dizem as paredes revolucionárias. Contudo, há que questionar a liberdade, tal como a questionou Polanyi nos anos 40. Por uma razão muito simples: o neoliberalismo, fomentador da injustiça social, escuda-se na liberdade sempre que se vê acossado pelos que o contestam.
“Embora não pareça, o homem, naquilo que tem de criador, não provém do passado e sim do futuro. Provém do futuro, provém da sua expectativa, e dirige-se dele ao presente, isto é, rumo ao presente a partir da convocação que lhe fazem os seus projectos.”
O melhor negócio do mundo é o que nunca vai à falência. De acordo com o economista Silva Lopes e com o analista e especulador financeiro George Soros - quando se pronunciaram acerca da actual crise financeira mundial - os grandes bancos não podem falir e o Estado tudo deve fazer para impedir a sua queda, nem que seja à custa dos contribuintes. É este o neoliberalismo em que vivemos mergulhados. Quando a coisa dá para o torto, que sejam os contribuintes a pagar as aventuras especulativas dos bancos na economia de casino que vai alastrando pelo globo. É este o sistema económico que alimenta a injustiça social através da transferência de recursos dos contribuintes para os especuladores. É assim que o Estado joga o jogo dos neoliberais. É assim que enriquecem homens como George Soros ou Joe Berardo, ainda que acenem com a bandeira da liberdade (cada vez mais utilizada como uma cenoura) ou pisquem o olho à populaça. É assim que a democracia se transforma em cleptocracia.