quinta-feira, agosto 06, 2009

A festa de casamento


A Festa do Casamento, de Pieter Bruegel, o Velho, c. 1567-68

«É um quadro do século XVI do pintor Peter Bruegel que retrata uma boda de casamento de uma família da classe média. Este quadro está cheio de informação económica fascinante. Reparem primeiro na ementa da boda. Apesar de se tratar de uma ocasião de festa, há um único prato que está longe de ser luxuoso: flocos de aveia. Olhem agora para a criança que está a lamber a pouca aveia que resta no seu prato. Parece claro que ela está a aproveitar uma das poucas oportunidades de comer até ficar saciada.
Uma das razões pela qual esta pintura é famosa é porque representa uma pessoa com fome. Reparem no olhar angustiado que um dos músicos deita aos pratos de aveia. Os músicos fazendo parte da classe baixa, comiam no fim. E ao ritmo a que a comida está a desaparecer nesta boda, é bem possível que a aveia se esgote.
Na pintura original há castanhos, verdes, vermelhos, azul claro, mas muito pouco de azul-escuro. A exclusão do azul-escuro pode ter sido uma escolha estética. Mas, perdoem-me o enviesamento profissional, a explicação mais plausível para a ausência do azul-escuro é uma explicação económica. A tinta azul com carácter permanente era na época extremamente cara, por ser produzida com uma pedra semi-preciosa chamada lápis-lazúli. O pintor teve que se contentar com o azul claro que o escuro era caro demais.
Porque é que lhes estou a mostrar esta pintura? Para nos lembrar a todos que, desde o princípio da humanidade até há cerca de dois séculos, o mundo foi muito pobre; o cidadão médio teve níveis de vida incompativelmente mais baixos do que os nossos. Até ao século XVIII a principal preocupação da maior parte dos habitantes era a sobrevivência. O pensamento mais comum era: será que vou ter saúde e comida suficiente para chegar ao fim do dia? Havia um grupo exíguo de ricos, e é sobre esses que se escrevem contos e novelas que nos dão uma imagem romântica dos “bons velhos tempos”. Essas obras podem ser boas do ponto de vista literário, mas escondem a verdade dos factos: os velhos tempos eram péssimos.»

Rebelo, Sérgio (2001); “Educação, Capital Humano e Desenvolvimento Económico” in Globalização, Desenvolvimento e Equidade; Fundação Calouste Gulbenkian e Publicações Dom Quixote, pp. 77-79.

terça-feira, agosto 04, 2009

As férias de Cavaco

O nosso Presidente foi de férias. Foi de férias, alto lá! Leva trabalho que daria para encher um jipe. No seu pedagógico anúncio à nação (como parece pretender que sejam todos os seus professorais anúncios) parece sentir relutância ou pudor em afirmar que não vai fazer a ponta de um corno. Não. Leva trabalho e que trabalho! Pois eu gostaria de ter um presidente que afirmasse sem vergonha que vai aproveitar as suas férias para descansar, para reflectir sobre o mundo, para pôr a sua leitura em dia (caso goste de ler algo mais do que técnicos cartapácios legais) ou para recitar poesia. Será que está imbuído da ética protestante e do espírito do capitalismo? É verdade que visitou a Áustria recentemente, berço de neoliberais, terra de Schumpeters e Hayeks. É também verdade que o trabalho dignifica (quando não escraviza). Mas nas férias? Mais vale reconhecer que não vai de férias. É que nós portugueses quando nos preparamos alegremente para ir de férias, lá vêm os anúncios da imprensa lembrar-nos de que somos o povo (ou um dos povos) que menos trabalha na Europa, que temos mais feriados do que os outros, que a nossa produtividade é baixa, etc. Em suma, somos todos uns mandriões que, se calhar, nem merecíamos ir de férias. Querem que trabalhemos como um alemão, um austríaco ou um japonês? Pois que trabalhem eles, que nós somos latinos. Nisto estou com Agostinho da Silva: ainda que o trabalho liberte (como diziam os outros maldosamente– arbeit macht frei), prefiro libertar-me do trabalho.

Boas férias Sr. Presidente.

sábado, agosto 01, 2009

Começar pelo princípio

Fernando Pessoa, Mensagem

É preciso descer a encosta e procurar outro caminho que nos leve ao cume da montanha. É necessário regressar ao sopé. Perdemos o trilho. A descida agora tem de ser cuidadosa, pois pode ser mais dolorosa do que a escalada se não for realizada com a necessária presença de espírito. Uma vez no sopé, é preciso tornar a avaliar o penhasco e procurar um possível novo percurso. E depois, voltar a tentar. Iniciar uma nova escalada. Procurar um novo caminho.

É esta a mensagem de Zizek*.

E ainda que tentem demover-nos, é preciso encarar a montanha que se ergue à nossa frente, em desafio. E a sua escalada é uma obrigação para todo aquele que não está contente com o mundo.

Na verdade, as causas do nosso descontentamento existem. São elas que nos motivam a subir e a não abandonar tão árdua tarefa. E o nosso descontentamento é o descontentamento com o mundo, hoje dominado pelo capitalismo neoliberal e pelos seus “antagonismos”: a sombria ameaça da catástrofe ecológica motivada pela capitalização de quase tudo (para os neoliberais, tudo o que é passível de ser comercializado no “mercado livre” é capital, desde florestas a presas de elefante, do petróleo a peles de foca); a transformação de toda a propriedade intelectual em propriedade privada; as implicações éticas e sociais dos novos desenvolvimentos tecnológicos, especialmente no campo da bio-genética; e as novas formas de apartheid social – dos muros aos condomínios fortaleza, das vedações eléctricas aos bairros-de-lata (Zizek, 2009: 53).

A montanha aguarda-nos.

O que esperamos?

Referências

*Zizek, Slavoj (2009); “How to begin from the beginning”, New Left Review, 57, May June 2009.

quarta-feira, julho 29, 2009

O Mal

«O mal, eu afirmo, não é contingente, não é a ausência, ou deformação, ou a subversão da virtude (ou seja o que for que pensemos como seu oposto), mas um facto obstinado e irremissível.»

Kolakowski, "The Devil in History", in My Correct Views

terça-feira, julho 28, 2009

O Destino

O Destino existe. Pressentimo-lo. Pressentiram-no os antigos povos. E pressentiram mais: nem os deuses, nem os homens o podiam iludir por muito tempo. Tudo acabaria sempre por regressar aos seus estranhos desígnios, contra todos os esforços de deuses e humanos. Mas os primeiros conheciam-no melhor. Conseguiam sustê-lo por mais tempo, mas já no limite das suas forças, tinham que o largar e dar-lhe livre curso. É como um rio imorredouro que ninguém pode impedir que corra e que retorna sempre ao seu curso, contra todos os esforços. Hoje sonhei com uma mulher que amei em tempos. E que, pelos vistos, não consigo deixar de amar. Por que sonhei? Não sei. Por que a amei? Não sei. Só sei que o Destino a trouxe e o Destino a levou.

O dia nasceu.

Os melros já cantam à minha janela, como em todas as manhãs. E isso ninguém consegue mudar.

quarta-feira, julho 22, 2009

Comunismo vs Capitalismo

No comunismo o indivíduo perde-se no colectivo.

No capitalismo o colectivo perde-se no indivíduo.

segunda-feira, julho 20, 2009

Assim choram os deuses

E o poente tem cores
Da dor dum deus longínquo
E ouve-se soluçar
Para além das esferas...

Ricardo Reis (12-06-1914)

Ainda o marfim...

Loxodonta africana

Vinte anos após a proibição de comércio de marfim, eis que voltam a tocar a rebate os sinos de alarme.

Afinal neste ínterim prosseguiu a caça, porque o comércio de marfim foi permitido em determinados períodos excepcionais. O suficiente para galvanizar caçadores, furtivos e autorizados, e comerciantes de marfim.

Mas, qual é a surpresa? Não relatam os viajantes a existência de lojas em Adis Abeba e em Harar, na Etiópia e no Quénia?

«O comércio de marfim era ilegal, de maneira que eu insisti no assunto. Tinha ouvido dizer que circulavam grandes quantidades de marfim de elefantes caçados furtivamente. Mas embora tivesse visto bocados dele à venda em lojas, nunca tinha visto dentes inteiros, e não sabia qual era o seu preço no mercado; na verdade embora me tivessem dito que o seu comércio florescia, em Harar e noutros pontos, não fazia ideia de que podia, muito simplesmente, entrar numa pequena loja de Adis Abeba e dizer: “Queria comprar uns dentes de elefante, por favor.”»

Paul Theroux (2002), Viagem por África, Círculo de Leitores, página 155.

Continua o saque, no coração das trevas.

domingo, julho 19, 2009

Memória Esquecida

«O que é significativo na época de transformação actual é a singular despreocupação com que abandonámos não só as prácticas do passado - isso é bastante normal, e não tão alarmante - mas a sua própria memória. Um mundo que mal acabámos de perder já está meio esquecido.» (pág. 17)

(...)

«Em muitos países, "pôr o passado para trás" - ou seja, concordar em superar ou esquecer (ou negar) uma memória recente de extermínio mútuo e violência intercomunitária - foi um objectivo primordial dos governos do pós-guerra: às vezes conseguido, às vezes demasiado conseguido.» (pág. 18)

(...)

«Mas mesmo na Europa uma nova geração de cidadãos e políticos está cada vez mais esquecida da história: ironicamente, é o que acontece em especial nos países ex-comunistas da Europa Central, onde "construir o capitalismo" e "tornar-se rico" são as novas metas colectivas, enquanto a democracia é tida por garantida e até encarada em alguns quadrantes como um estorvo.» (pág. 31)

Tony Judt, O Século XX Esquecido - Lugares e Memórias, Edições 70

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