segunda-feira, abril 10, 2017

Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017)

Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017)

Hoje partiu uma das nossas melhores.
Enriqueceu-nos.

Por ela chegou até nós a Cultura Clássica, os mundos gregos e romanos. Muito antes de sabermos quem ela era, já tínhamos descuidadamente lido algumas das suas traduções entre as quais A República, de Platão, da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois foi uma curiosa descoberta verificarmos, afinal, que o seu nome estava em muitas obras traduzidas e lidas.

É gratidão o que sentimos e lamentamos a sua partida. Foi (É) para nós a Tradutora e a Anfitriã desses mundos longevos.

Fica aqui a nossa humilde homenagem.

domingo, abril 02, 2017

Um mundo novo é inevitável

Todos sabemos que a lagarta se metamorfoseará numa borboleta. Mas a lagarta saberá isso? Esta é a pergunta que temos de fazer aos profetas da catástrofe. São como as lagartas no casulo da mundivisão da sua existência de lagarta, inconscientes da sua metamorfose iminente. São incapazes de distinguir entre a decadência e a mudança para uma coisa diferente. Veem a destruição do mundo e dos seus valores, embora não seja o mundo que está a perecer, mas a imagem que têm do mundo.

Ulrich Beck, A Metamorfose do Mundo, Edições 70, 2017, pág. 30

*** 

Um novo mundo é possível?! Que interessa isso agora? Agora é tarde. Os portões saíram dos seus gonzos. Um novo mundo é já inevitável! Quer queiramos quer não. A metamorfose do mundo está em curso. O que daí virá? Um admirável mundo novo? Talvez. Um mundo distópico? Não sabemos. Não será por certo um mundo em que os amanhãs cantam. Por certo será um mundo que não esperamos e do qual nem suspeitamos. Um mundo distante, muito distante desse mundo desejável pelos que proclamavam a possibilidade de um novo mundo, diferente do que nos impunha a globalização capitalista.

Ulrich Beck morreu. Só o soube, para grande surpresa minha, quando adquiri este seu novo livro póstumo: A Metamorfose do Mundo. Julgava-o vivo. Outro mestre que partiu, já há dois anos. Vive no entanto na sua obra e no pensamento que dela ecoa.

Até sempre Ulrich Beck.

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Novas costas delinear-se-ão. Ilhas e porções de terra hoje emersas ficarão submersas, assim como as áreas baixas das cidades e as baixas das cidades. Populações procurarão refúgio noutros lugares, espécies perecerão com o desaparecimento dos seus habitats e tempestades cada vez mais violentas varrerão os céus, a terra e os mares. Vinhedos, oliveiras e palmeiras surgirão noutros horizontes, mais para o norte e mais para o sul e certos insectos transmissores de doenças alastrarão também, assim como os desertos que já cobrem um terço da superfície da área continental planetária. Oceanos nunca antes navegados por veleiros serão atravessados por esses barcos de lés a lés. Os corais branqueiam-se e morrem, como já se anuncia, e muitas espécies perecerão numa já anunciada sexta extinção em curso. Não obstante não é do Apocalipse segundo São João de que falamos. É de outra coisa. A metamorfose do mundo é também a nossa metamorfose, assim como a da nossa visão do mundo. Virá um Homem novo. Um cyborg (já há quem por aí ande, merecidamente feliz, com um novo coração artificial). Também isto é já parte do mundo novo.

domingo, março 12, 2017

Ninguém nasce revolucionário

El hombre nos es totalmente dueño de su destino. El hombre también es hijo de las circunstancias, de las dificultades, de la lucha. Los problemas lo van labrando como un torno labra un pedazo de metal. El hombre no nace revolucionário, me atrevo a decir.
Fidel Castro


in Ignacio Ramonet, Biografia a dos Voces, Penguin Random House Grupo Editorial, 2015

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As primeiras palavras da longa entrevista de Fidel Castro a Ignacio Ramonet parecem o início de um poema épico: "O homem não é totalmente dono do seu destino".  Fidel adopta a terminologia do filósofo Ortega Y Gasset: o homem torna-se revolucionário, mas apenas se assim o forjarem o destino e as circunstâncias. 

Ninguém nasce revolucionário.

quinta-feira, março 09, 2017

Hoje está Levante

Lá, nas serras de xisto do Algarve,
Quando o Levante se erguia e soprava,
Os meus avós apuravam o ouvido
P’ra ouvir o mar rugir.
Ouvíamo-lo mesmo por trás das serras ondulantes
No nosso curto horizonte.

As serras que se acercavam,
e nos rodeavam,
nos cingiam,
e protegiam.

Ao Sul o mar rugia,
Sempre que o Levante se levantava.

(Consta que ainda assim é,
nos dias que correm)

sábado, fevereiro 04, 2017

Tempos de Neptuno

O Atlântico ruge
Estes tempos são os meus tempos
Tempos de tempestade

Tempos de lesa-majestade
Tempos de barco ao fundo
Tempos de fim do mundo
Tempos de Neptuno

Outros dias











© AMCD

Grey days

















© AMCD

Cabo Espichel ao fundo, 28 de Janeiro de 2017

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

É bem sabido que todas as vedações têm dois lados.

«É bem sabido que todas as vedações têm dois lados. Dividem um espaço uniforme em exterior e interior. Mas os que se encontram de um dos lados da vedação vêem o exterior onde os que estão do outro lado vêem o interior. Os residentes dos condomínios isolam-se por meio da sua vedação, do caos e da dureza que tornam a vida urbana desconcertante, desagradável e vagamente ameaçadora, e ficam reclusos num oásis de calma e segurança. Ao mesmo tempo, contudo, separam os outros dos lugares decentes e seguros, cujos valores estão dispostos a defender encarniçadamente, e abandonam-nos às mesmas ruas sórdidas e miseráveis de que fugiram sem olhar a despesas. A vedação separa o ghetto voluntário dos ricos e dos poderosos dos inumeráveis ghettos forçados em que os deserdados vivem. Para os que fazem parte do ghetto voluntário, os restantes ghettos são lugares onde nunca porão os pés. Para os habitantes dos ghettos involuntários, em contrapartida, o território a que estão confinados (ao verem-se excluídos de todos os outros lugares) é um espaço do qual se encontram proibidos de sair.»

Zygmunt Baumman, Confiança e Medo na Cidade, Relógio D’Água, 2006

domingo, janeiro 29, 2017

Poema de Chico Buarque

Cotidiano

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão

Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão

Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Chico Buarque, 1984

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