sexta-feira, outubro 21, 2011

O Cavalo de Tróia para o assalto à Constituição


Gomes Canotilho, constitucionalista e Professor jubilado esta semana em Coimbra
(citação extraída do blogue Almocreve das Petas)

Havia na Roma Antiga uma designação legal para uma situação de excepção, à qual não se aplicava a Lei geral – o homo sacer. Tratava-se de uma pessoa que podia ser morta ou assassinada por qualquer outra, sem que a sua morte fosse reconhecida, em qualquer sentido legal, como sendo um homicídio ou sacrifício religioso. Tratava-se de uma pessoa à qual não se aplicavam os direitos civis porque se encontrava num estado de excepção mediante o qual a lei era preservada através da sua suspensão autorizada (Barkan, 2011). Por outras palavras, para se poder contrariar a lei geral, criava-se uma situação de excepção, para justificar todo o tipo de violações dessa mesma lei.

À escala das nações e dos Estados, a criação ou existência de situações de excepção tem servido para justificar violações de Direitos Humanos entre outros direitos. É conhecida a situação da base Guantanamo e a tortura dos prisioneiros. Também sobre eles não recai a lei geral que os poderia proteger legalmente da tortura. Os prisioneiros são mantidos numa base distante do solo continental dos EUA: não convém violar os Direitos Humanos dentro de casa e à vista dos olhares do cidadão comum. As vergonhas têm de ser escondidas. Na verdade, aos prisioneiros de Guantanamo não se aplica a lei geral que vale para o comum dos cidadãos, porque a situação excepcional da Guerra ao Terror assim o determina. Homo sacer, portanto.

Tudo isto para dizer que a criação de cenários que envolvam situações de excepção, situações de crise, como a que vivemos actualmente, pode constituir uma estratégia política para se tomarem decisões que vão contra a lei geral, a Constituição ou os direitos sociais de que fala Canotilho.

Os cidadãos devem permanecer alerta pois a crise que atravessamos é muitas vezes referenciada, e não por acaso, como uma situação de emergência ou uma espécie de estado de guerra – situações de excepção, portanto. Os que alimentam este discurso, geralmente os políticos que nos governam e certos comentadores, tentam dessa forma, justificar as medidas de austeridade que estão a ser tomadas e que obrigam os cidadãos ao seu cumprimento, ainda que em violação da Constituição do País. O estado de crise ou de emergência enquadra medidas que violam a lei geral: cortam-se ou reduzem-se salários à revelia do diálogo social, da concertação entre Estado, sindicatos e entidades patronais, por exemplo, quando a Constituição determina que assim seja. Atropelam-se direitos laborais e outro tipo de direitos sociais. Tudo à nossa vista.

Não foi por acaso que, ao abrigo da situação excepcional em que vivemos, Manuela Ferreira Leite, sem qualquer pudor, vem propor, em alternativa aos cortes do subsídio de férias e do 13.º mês por dois anos na função pública, que os cidadãos passassem a pagar os serviços de saúde e de educação prestados pelo Estado durante igual período, quando a Constituição determina a sua gratuitidade ou a tendência para tal (é óbvio que nada é gratuito e que são os contribuintes que, mediante os seus impostos, asseguram os serviços do Estado, ainda que a Constituição se refira a gratuitidade). A gratuitidade da educação e da saúde é um direito que lhes assiste. Suspendia-se a Constituição portanto. Já antes Manuela Ferreira Leite tinha sugerido a suspensão da democracia durante uns meses, como se os males do país fossem a democracia ou a Constituição.

Vivemos tempos excepcionais dizem eles, para que possam fazer vingar a sua agenda política de leis excepcionais.

***

Referência

Barkan, Joshua (2011), "Law and the geographic analysis of economic globalization", Progress in Human Geography, 35(5), 589 - 607,

2 comentários:

  1. Bom texto. Bem esgalhado. Lembro apenas que o esto de excepão não é mais que um corredor da estratégia, labirintica, definida hà muito. Ou me engano ou o cavalo de Troia entra na cidade, as portas estão abertas...

    Sobre a estratégia que refiro ela está numpost meu de 26 de Julho de 2010

    ResponderEliminar
  2. Onde lê "esto" queria escrever "estado"

    Desculpe e ...obrigado

    ResponderEliminar

Etiquetas