«A Nellie, uma iole de recreio, balançou a
âncora sem o mais leve bulir das velas e imobilizou-se. A maré enchera, a
calmaria era quase total e, sendo o nosso rumo rio abaixo, a única coisa a
fazer era virar de ló e esperar que a maré mudasse.
O estuário do
Tamisa espraiava-se à nossa frente como a embocadura de um canal de navegação
interminável. Ao largo, o mar e o céu uniam-se sem uma cissura e, no espaço
luminoso, as velas curtidas pelo sol das lanchas que vogavam ao sabor da maré
pareciam estáticas em aglomerados vermelhos de velas repicadas, com revérberos
de espichas envernizadas. Uma bruma cobria as margens baixas que avançavam para
o mar numa planura que ia desaparecendo. O ar estava escuro sobre Gravesend e,
ainda mais para trás, parecia adensar-se num negrume fúnebre, como se cismasse,
melancólico e imóvel, sobre a maior, e também mais importante, cidade da
terra.»
Joseph
Conrad, O Coração das Trevas,
Publicações Dom Quixote, 2009
Poderíamos
pensar que a navegação dentro dos estreitos limites das margens fluviais seria
mais segura do que a ilimitada navegação no mar alto, mas não é assim, e muito
menos quando o rio por onde se navega penetra no coração das trevas. No Coração das Trevas a narrativa começa
num rio e noutro rio prossegue na maior parte da obra, mas é a selva, sempre
a selva - desconhecida, ameaçadora, impenetrável - que tolhe a nossa atenção. É
na selva, território do medo, que se esconde a insanidade. Kurtz está no seu
meio.
***
«Os troços de rio
entre meandros abriam-se à nossa frente e fechavam-se atrás de nós, como se a
floresta tivesse atravessado paulatinamente a água para nos barrar o caminho.
Embrenhávamo-nos cada vez mais profundamente no coração das trevas.»
Op. cit.,
pág. 68
«No entanto,
eu também julgara a selva impenetrável, nas duas margens, e afinal havia olhos
nela, olhos que nos tinham visto.»
Op.
cit., pág. 82
«O burburinho
de gritos furiosos e aguerridos emudeceu de repente, sucedendo-lhe, vindo das
profundezas da floresta, um trémulo e profundo lamento de medo desolado e
desespero absoluto, só comparável ao que imaginamos se seguirá à morte da
derradeira esperança na terra.»
Op.
cit., pág. 88
«Olhei em
redor e, embora não soubesse porquê, garanto-lhes que nunca, nunca antes, esta
terra, este rio, esta selva, a própria abóbada desse céu escaldante, me tinha
parecido tão desesperados, tão sombrios, tão impenetráveis ao pensamento
humano.»
Op. cit., pág. 105