Preparo-me para deixar o Algarve
após uma longa estadia de mais de meia década. Vou rumar para outras paragens.
Algo em mim morre. Quando aqui cheguei o meu pai era vivo. À chegada ajudou-me
a erguer um grande móvel para colocar os livros e a instalar-me. Agora que
abalo, já não está entre nós. O Algarve mudou, e quando regressar, porque
regressarei, decerto não o encontrarei como o deixo. Também quando cheguei, não
foi o velho Algarve, o da minha infância, que encontrei.
Ainda escrevo no silêncio nocturno da serra que em
breve abandonarei. A casa e o quintal ficarão vazios. Talvez por isso, hoje, têm
ecoado no meu pensamento umas palavras que em tempos li a uma velha tia analfabeta
e devota, também já falecida, que se comprazia em ouvir-me ler a Bíblia:
«Lembra-te do teu Criador nos dias da tua juventude, antes que venham os
dias maus e cheguem os anos, dos quais dirás: “Não sinto prazer neles”;
antes que se escureça o sol, a luz, a lua e as estrelas,
e voltem as nuvens depois da chuva;
quando os guardas da tua casa começarem a tremer,
e os homens robustos a vergar,
quando as mós deixarem de moer porque são poucas
e se obscurecerem os que olham pela janela;
quando se fecharem as portas sobre a rua,
quando enfraquecer o ruído do moinho,
quando se calar a voz do pássaro
e humedecerem as canções.
Então, também terão medo de subir aos lugares altos,
e temerão os sobressaltos no caminho.
A amendoeira florescerá,
o gafanhoto engordará
e a alcaparra perderá as suas propriedades,
porque o homem encaminhar-se-á para a casa
da sua eternidade,
enquanto os carpidores percorrem as ruas;
antes que se quebre o cordão de prata
e se desperdice a lâmpada de oiro,
e se parta a bilha na fonte,
e se desfaça a roldana sobre a cisterna,
e o pó volte à terra donde saiu,
e o espírito volte para Deus que o deu.
Vaidade das vaidades, dizia o Eclesiastes, e tudo é vaidade.»
Livro do Eclesiastes, Ecle. 12
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Estou a ficar velho. Apenas isso.