De George Steiner, sobre o pensamento de Claude Levy-Strauss:
A queda do homem não apagou de uma penada todos os vestígios do Jardim do Éden. Os viajantes do século XVIII sucumbiram a uma espécie de ilusão
premeditada quando pensaram ter encontrado raças humanas inocentes no paraíso
dos Mares do Sul ou nas florestas do Novo Mundo. Mas as suas idealizações
tinham uma certa validade. Os homens primitivos, que existiam, por assim dizer,
fora da história, seguindo usos sociais e mentais dos primórdios e possuindo
uma certa intimidade com as plantas e os animais, encarnavam efectivamente uma condição mais natural. O seu divórcio
cultural com a natureza ocorrera evidentemente centenas, milhares de anos
atrás, mas fora menos drástico que o do homem branco: em termos mais precisos,
os seus usos culturais, os seus rituais, mitos, tabus, técnicas de recolha de
alimentos eram calculados para aplacar a natureza, para confortá-la, para viver
com ela, para tornar a divisão entre natureza e cultura em algo menos violento,
menos dominante.
Ao encontrar estas sombras de vestígio do Éden, o homem ocidental
dispôs-se a destruí-las. Massacrou inúmeros povos inocentes. Derrubou as
florestas e queimou as savanas. Então, a sua fúria de destruição virou-se para
as espécies animais. Uma após outra, foram perseguidas até à extinção ou à
sobrevivência factícia dos jardins zoológicos. Esta devastação foi muitas vezes
deliberada: era o resultado directo da conquista militar, da exploração
económica, da imposição de tecnologias uniformes aos modos de vida autóctones.
Milhões pereceram ou perderam a sua identidade e património étnicos. Alguns
observadores calculam que, só no Congo, tenham morrido vinte milhões de vítimas
desde o início da colonização belga. Linguagens, cada uma das quais codificava
uma única visão do mundo, foram cilindradas e lançadas no esquecimento. A
garça-real e a baleia foram caçadas quase até à extinção. Muitas vezes, a
destruição era acidental ou mesmo devido a benevolência. As dádivas trazidas
pelo homem branco – dádivas médicas, materiais, institucionais – mostraram-se
fatais para os seus receptores. Como conquistador, explorador ou médico, o
homem ocidental trazia sempre a destruição. Aparentemente possuídos por alguma
ira arquetípica pela nossa exclusão do Jardim do Paraíso, por alguma recordação
torturante dessa desgraça, revirámos a Terra em busca de vestígios do Éden e
arrasámo-los sempre que os encontrámos.
George Steiner, Nostalgia do Absoluto, Relógio D’Água,
2003, pp 45-47
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Post scriptum:
O texto supracitado, da autoria de George
Steiner, faz parte de um conjunto de palestras que ele proferiu na rádio em
1974. Então não se falava de países emergentes. Hoje, o homem ocidental, o
branco de que ele fala, está longe de ser o único a causar a devastação
planetária (*). Chineses, hindus, malaios, africanos, enfim, brancos, pretos,
amarelos, homens de todas as cores, muito para além do homem branco, caucasiano,
devastam alegremente os últimos vestígios edénicos do planeta.
Deixemo-nos de lirismos.
Virámo-nos contra esses vestígios
do Éden primordial e contra nós mesmos. No fim, não irá restar pedra sobre pedra.
Nesta visão apocalíptica compreendemos
Heidegger que disse um dia numa entrevista que só um deus poderia salvar-nos. O
ser humano entregue a si mesmo está perdido, é a ilação que se tira de tudo
isto. Trata-se de um voto de desconfiança cruel no ser humano.
Não subscrevemos essa ideia
porque não a queremos subscrever. Só a Ciência pode salvar-nos, só o Homem pode salvar-se. É preciso acreditar ainda na Ciência e no Homem.
Contra todas as evidências.
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(*) Hoje, o homem ocidental já
não é apenas o homem branco caucasiano. Entre as sociedades dos países
ocidentais convivem homens de todas as cores.