sábado, novembro 05, 2016

O velho humanismo: uma mistura para vomitar. Mas será o novo melhor?

O velho humanismo afasta-se e desaparece. A nostalgia atenua-se e é cada vez mais raro que nos voltemos para rever a sua forma estendida no caminho. Era esta a ideologia da burguesia liberal. Inclinava-se sobre o povo, sobre os sofrimentos humanos. Cobria, sustentava a retórica das almas belas, dos grandes sentimentos, das boas consciências. Compunha-se de citações greco-latinas polvilhadas de judaico-cristianismo. Um cocktail assombroso, uma mistura para vomitar. Só alguns intelectuais (de “esquerda” – mas ainda haverá intelectuais de direita?) mantêm ainda o gosto por esta bebida triste, nem revolucionários, nem abertamente reaccionários, nem dionisíacos, nem apolíneos.  

É, assim, para um novo humanismo que devemos tender e esforçar-nos, isto é, para uma nova praxis e um outro homem, o da sociedade urbana. Escapando aos mitos que ameaçam esta vontade, destruindo as ideologias que desviam este projecto e as estratégias que afastam este percurso. A vida urbana ainda não começou. Nós realizamos hoje o inventário dos despojos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade, cujas ideias e “valores”, os tabus e as prescrições eram, em grande parte, de origem agrária, marcados por uma dominante rural e “natural”. Do oceano campesino emergiam custosamente esporádicas cidades. A sociedade rural era (ainda é) a sociedade da não-abundância, da provação aceite e rejeitada, dos interditos que ordenam a regulamentam as privações. Esta também foi, todavia, a sociedade da Festa, mas esse aspecto, o seu melhor, não foi retido, e era ele que seria necessário ressuscitar e não os mitos e os limites!

Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, Letra Livre, 2012, pág. 110.

A vida urbana já começou. Lefebvre acusa o velho Humanismo burguês e aponta para um novo, ironicamente ainda mais aburguesado (não é afinal um humanismo de burgo aquilo que ele nos propõe?). Trata-se no entanto de uma fuga para a frente. Ora o novo humanismo que ele nos propõe ainda é pior. Sabemo-lo agora. Trata-se de um humanismo urbano que descarrila na desumanidade das cidades sem fim. É o humanismo das ruas nocturnas, frias e vazias que produziu os sem-abrigo deambulantes e envergonhados que povoam as grandes cidades, verdadeiras sepulturas do espírito humano. À festa rural circunscrita opôs-se o frenesim festivo e consumista, urbano e omnipresente. À contenção da sociedade da não-abundância, sobrepôs-se o desperdício da sociedade da abundância, incontida, desregrada, infrene e insustentável. Se a dominante rural era “natural” e idílica, a urbana é artificial, insana e doentia. Trata-se de uma dominante mecânica. Um irónico humanismo de máquina.

Somos hoje prisioneiros de um quotidiano sistematicamente medido e controlado pelas máquinas do tempo, essa marca do novo humanismo. Vivemos o totalitarismo do tempo maquinal, em sociedades-máquina (e em cidades-máquina), onde os vizinhos não se conhecem. Nas sociedades humanistas urbanas defendidas por Lefebvre marchamos todos a toque de caixa. Alguns de olhos sonâmbulos ainda entoam loas a esse novo humanismo, nas novas manhãs urbanas que agora cantam. Um canto desafinado.

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