O velho humanismo afasta-se e desaparece. A nostalgia atenua-se e é
cada vez mais raro que nos voltemos para rever a sua forma estendida no
caminho. Era esta a ideologia da burguesia liberal. Inclinava-se sobre o povo,
sobre os sofrimentos humanos. Cobria, sustentava a retórica das almas belas,
dos grandes sentimentos, das boas consciências. Compunha-se de citações
greco-latinas polvilhadas de judaico-cristianismo. Um cocktail assombroso, uma
mistura para vomitar. Só alguns intelectuais (de “esquerda” – mas ainda haverá intelectuais
de direita?) mantêm ainda o gosto por esta bebida triste, nem revolucionários,
nem abertamente reaccionários, nem dionisíacos, nem apolíneos.
É, assim, para um novo humanismo que devemos tender e esforçar-nos,
isto é, para uma nova praxis e um
outro homem, o da sociedade urbana. Escapando aos mitos que ameaçam esta
vontade, destruindo as ideologias que desviam este projecto e as estratégias
que afastam este percurso. A vida urbana ainda não começou. Nós realizamos hoje
o inventário dos despojos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a
cidade, cujas ideias e “valores”, os tabus e as prescrições eram, em grande
parte, de origem agrária, marcados por uma dominante rural e “natural”. Do
oceano campesino emergiam custosamente esporádicas cidades. A sociedade rural
era (ainda é) a sociedade da não-abundância, da provação aceite e rejeitada,
dos interditos que ordenam a regulamentam as privações. Esta também foi,
todavia, a sociedade da Festa, mas esse aspecto, o seu melhor, não foi retido,
e era ele que seria necessário ressuscitar e não os mitos e os limites!
Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, Letra Livre, 2012,
pág. 110.
A vida urbana já começou. Lefebvre
acusa o velho Humanismo burguês e aponta para um novo, ironicamente ainda mais aburguesado
(não é afinal um humanismo de burgo aquilo que ele nos propõe?). Trata-se no
entanto de uma fuga para a frente. Ora o novo humanismo que ele nos propõe ainda é
pior. Sabemo-lo agora. Trata-se de um humanismo urbano que descarrila na
desumanidade das cidades sem fim. É o humanismo das ruas nocturnas, frias e
vazias que produziu os sem-abrigo deambulantes e envergonhados que povoam as
grandes cidades, verdadeiras sepulturas do espírito humano. À festa rural circunscrita
opôs-se o frenesim festivo e consumista, urbano e omnipresente. À contenção da
sociedade da não-abundância, sobrepôs-se o desperdício da sociedade da
abundância, incontida, desregrada, infrene e insustentável. Se a dominante
rural era “natural” e idílica, a urbana é artificial, insana e doentia.
Trata-se de uma dominante mecânica. Um irónico humanismo de máquina.
Somos hoje prisioneiros de um
quotidiano sistematicamente medido e controlado pelas máquinas do tempo, essa
marca do novo humanismo. Vivemos o totalitarismo do tempo maquinal, em
sociedades-máquina (e em cidades-máquina), onde os vizinhos não se conhecem. Nas
sociedades humanistas urbanas defendidas por Lefebvre marchamos todos a toque
de caixa. Alguns de olhos sonâmbulos ainda entoam loas a esse novo humanismo, nas
novas manhãs urbanas que agora cantam. Um canto desafinado.
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