quinta-feira, junho 02, 2011

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Entre ruínas

Habito num mundo arruinado. As ruínas estão por toda a parte. Os muros esboroam-se. As noras, abandonadas na serra, aguardam. As eiras, vencidas pelas estevas, desaparecem. Por todo o lado restam os despojos de uma civilização desaparecida. Quando estes montes eram habitados…Ah! quando eram habitados...Os cântaros eram transportados à cabeça das camponesas.

Esse Algarve morreu. As suas gerações já abandonam a terra e abandonam-me no meio destas ruínas.

Partem os meus avós, partem os meus pais: fico cada vez mais pobre, cada vez mais só.

Por vezes também apetece partir. Tomar aquela ponte ali. Zarpar.

quinta-feira, maio 26, 2011

Para onde pende o prato da balança

A leitura prossegue a bom ritmo.

David Harvey analisa, como ninguém, a realidade com duas lentes bastante potentes: a lente da geografia e a lente marxista. Tratam-se de dois instrumentos de análise que, combinados e bem utilizados, conferem ao cientista social uma capacidade acrescida de leitura e compreensão do mundo, da contemporaneidade, da globalização do capitalismo, das suas causas e dos seus efeitos.

O seu ataque ao capitalismo não é cego. Ele reconhece nessa forma de organização económica e social virtudes e defeitos. Contudo, a leitura da sua obra revela claramente para onde pende o prato da balança.

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«A saga do capitalismo está repleta de paradoxos, ainda que a maior parte das formas de teoria social (sobretudo a teoria económica) renuncie inteiramente a tê-los em conta. Do lado negativo, temos as crises económicas periódicas e muitas vezes localizadas que pontuaram a evolução do capitalismo, incluindo as guerras mundiais intercapitalistas e interimperialistas, os problemas da degradação ambiental, a perda de habitats de biodiversidade, o aumento em flecha da pobreza entre populações em crescimento, o neocolonialismo, as graves crises de saúde pública, as múltiplas alienações e exclusões sociais, e as tensões provocadas pela insegurança, a violência e os desejos insatisfeitos. Do lado positivo, há algumas pessoas que vivem num mundo onde os níveis de vida e de bem-estar material nunca foram tão elevados, onde as viagens e comunicações passaram por uma revolução e onde as barreiras espaciais físicas (mas não sociais) às interacções humanas se reduziram muito, onde os progressos médicos e biomédicos proporcionam a muitos uma vida mais longa, onde se construíram cidades imensas, em desenvolvimento e, em muitos aspectos, espectaculares, onde o conhecimento prolifera, onde a esperança está sempre a brotar e onde tudo parece possível (desde a autoclonagem até às viagens espaciais)

David Harvey, O Enigma do Capital, Bizâncio. 2011, pág. 136

domingo, maio 22, 2011

La Puerta del Sol


Que rios desaguam na Porta do Sol?

E porque param ante a Porta do Sol?

Que aguardam ante a Porta do Sol?

Ousarão abri-la?

Ousarão mudar o mundo?

Que haverá para lá da Porta do Sol?

Que sinos para lá dela dobrarão?

Serão os sinos da revolução?

***

Pois que seja.

Que se encham mil praças e mil gargantas, para que tremam os poderosos, lá no alto das suas ebúrneas torres.

Ou será necessário fazê-las tombar com a força do mar?




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Que coisa curiosa, este caldo ideológico.

Um CDS social democrata.
Um PSD liberal, mui neoliberal.
Um PS, social democrata na palavra, liberal na acção.
Um BE socialista.
Uma CDU marxista-leninista e ambientalista.

O PS é o mais esquizofrénico dos partidos: o rótulo não condiz com a palavra, nem esta com a acção. O PSD também anda próximo neste desfasamento.

Assim vai o país, submerso na esquizofrenia política enquanto a realidade o ultrapassa. Bate-o aos pontos.

domingo, maio 15, 2011

Grandes aberturas: O Homem da Multidão


René Magritte, Le fils de l'homme, 1964


«Diz-se, e justificadamente, de certo livro alemão, que «es lässt sich nicht lesen» - não se deixa ler. Há determinados segredos que não se deixam desvendar. Existem homens que morrem de noite na cama, apertando entre as suas as mãos de espectrais confessores, olhando-os lastimavelmente nos olhos, que morrem com o desespero no coração e convulsões na garganta em virtude do horror de mistérios que não se prestam a ser revelados. De vez em quando - ai de nós! - a consciência do homem carrega um tão pesado fardo de horror que só no túmulo consegue libertar-se dele. E assim fica por divulgar toda a essência do crime.

(...)
Com a testa comprimida de encontro ao vidro, entretinha-me deste modo a contemplar a multidão, quando subitamente se me deparou uma fisionomia (a de um velho decrépito, dos seus sessenta e cinco ou setenta anos de idade) que imediatamente me atraiu e monopolizou a atenção, dada a absoluta idiossincrasia da sua expressão. Nunca havia visto coisa que se parecesse, mesmo que remotamente, com tal expressão. Lembro-me perfeitamente de que a minha primeira ideia, ao aperceber-me dela, foi que Retzch, se a visse, a preferiria de longe às suas próprias encarnações pictóricas do Demónio. Enquanto me esforçava, durante o breve momento da minha pesquisa inicial, por analisar de algum modo o significado que ela transmitia, surgiram-me confusa e paradoxalmente no espírito as noções de grande capacidade mental, de precaução, de mesquinhez, de avareza, de frieza, de maldade, de sede de sangue, de triunfo, de contentamento, de extremo terror, de intenso - de profundo desespero. Senti-me estranhamente excitado, surpreso, fascinado. «Que estranha história», disse para comigo, «está inscrita naquele peito!» Sobreveio-me um desejo ardente de não perder o homem de vista - de ficar a saber mais sobre a sua pessoa. Envergando precipitadamente o sobretudo e pegando no chapéu e na bengala, dirigi-me para a rua e abri caminho por entre a multidão no sentido que o tinha visto tomar, pois ele já desaparecera. Com alguma dificuldade, consegui finalmente descobri-lo, aproximei-me e segui-o de perto, mas cautelosamente, de modo a não lhe despertar a atenção.»

Edgar Allan Poe, "O Homem da Multidão", Histórias Extraordinárias, Publicações Europa-América

***

Este conto de Poe, digo para comigo, podia ter sido em Lisboa de novecentos, num final de dia, no Rossio - hora de ponta. Tudo podia ter começado na Pastelaria Suíça. Dali é possível observar através da janela o bulício da rua, os transeuntes apressados e a circulação de fim de tarde.
E eis que de repente um transeunte prende a nossa atenção (nossa, a de leitores, e tudo por culpa de Poe). As suas feições são imperscrutáveis. Querem dizer tudo e não querem dizer nada. Erguemo-nos curiosos e seguimos o homem. Queremos saber mais acerca de tão estranha criatura. Que estranho. O ritmo da sua caminhada é inconstante, ora se anima e caminha com vigor, ora esmorece e parece desesperar. Tudo depende do caudal de multidão que o envolve. E o homem circula no caudal. No final descobrimos que este homem vive no fluxo e em função dele. Procura-o sempre onde ele é mais intenso. À noite dirige-se apressadamente para as ruas dos bairros boémios (podia ser o Bairro Alto ou o Cais do Sodré), para as docas, onde alguns ainda deambulam, e assim continua até ao raiar do dia e para além dele, sempre, sempre, sem parar...

sábado, maio 14, 2011

sexta-feira, maio 13, 2011

Curiosidade infantil

A curiosidade é sempre infantil. Não há outra.

Esse é o segredo que todo o professor ser deveria saber: para bem ensinar é preciso despertar a curiosidade infantil em quem quer que seja, ou, por outras palavras, acordar a criança que existe em cada um de nós.

terça-feira, maio 10, 2011

Antes da palavra, o gesto

Antes da palavra nos atingir, já fomos fulminados pelo gesto.

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