domingo, novembro 06, 2016

A natureza das coisas

Todas as coisas acabam mal, no fim. Mas acabar é a natureza das coisas.

Gore Vidal, Criação, Publicações Dom Quixote, 1981, pág. 68.

sábado, novembro 05, 2016

O velho humanismo: uma mistura para vomitar. Mas será o novo melhor?

O velho humanismo afasta-se e desaparece. A nostalgia atenua-se e é cada vez mais raro que nos voltemos para rever a sua forma estendida no caminho. Era esta a ideologia da burguesia liberal. Inclinava-se sobre o povo, sobre os sofrimentos humanos. Cobria, sustentava a retórica das almas belas, dos grandes sentimentos, das boas consciências. Compunha-se de citações greco-latinas polvilhadas de judaico-cristianismo. Um cocktail assombroso, uma mistura para vomitar. Só alguns intelectuais (de “esquerda” – mas ainda haverá intelectuais de direita?) mantêm ainda o gosto por esta bebida triste, nem revolucionários, nem abertamente reaccionários, nem dionisíacos, nem apolíneos.  

É, assim, para um novo humanismo que devemos tender e esforçar-nos, isto é, para uma nova praxis e um outro homem, o da sociedade urbana. Escapando aos mitos que ameaçam esta vontade, destruindo as ideologias que desviam este projecto e as estratégias que afastam este percurso. A vida urbana ainda não começou. Nós realizamos hoje o inventário dos despojos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade, cujas ideias e “valores”, os tabus e as prescrições eram, em grande parte, de origem agrária, marcados por uma dominante rural e “natural”. Do oceano campesino emergiam custosamente esporádicas cidades. A sociedade rural era (ainda é) a sociedade da não-abundância, da provação aceite e rejeitada, dos interditos que ordenam a regulamentam as privações. Esta também foi, todavia, a sociedade da Festa, mas esse aspecto, o seu melhor, não foi retido, e era ele que seria necessário ressuscitar e não os mitos e os limites!

Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, Letra Livre, 2012, pág. 110.

A vida urbana já começou. Lefebvre acusa o velho Humanismo burguês e aponta para um novo, ironicamente ainda mais aburguesado (não é afinal um humanismo de burgo aquilo que ele nos propõe?). Trata-se no entanto de uma fuga para a frente. Ora o novo humanismo que ele nos propõe ainda é pior. Sabemo-lo agora. Trata-se de um humanismo urbano que descarrila na desumanidade das cidades sem fim. É o humanismo das ruas nocturnas, frias e vazias que produziu os sem-abrigo deambulantes e envergonhados que povoam as grandes cidades, verdadeiras sepulturas do espírito humano. À festa rural circunscrita opôs-se o frenesim festivo e consumista, urbano e omnipresente. À contenção da sociedade da não-abundância, sobrepôs-se o desperdício da sociedade da abundância, incontida, desregrada, infrene e insustentável. Se a dominante rural era “natural” e idílica, a urbana é artificial, insana e doentia. Trata-se de uma dominante mecânica. Um irónico humanismo de máquina.

Somos hoje prisioneiros de um quotidiano sistematicamente medido e controlado pelas máquinas do tempo, essa marca do novo humanismo. Vivemos o totalitarismo do tempo maquinal, em sociedades-máquina (e em cidades-máquina), onde os vizinhos não se conhecem. Nas sociedades humanistas urbanas defendidas por Lefebvre marchamos todos a toque de caixa. Alguns de olhos sonâmbulos ainda entoam loas a esse novo humanismo, nas novas manhãs urbanas que agora cantam. Um canto desafinado.

Profundo

Caminho durante horas a fio, desviando-me esporadicamente de um borrão de merda de cão.

Don Delillo, Zero K, Sextante, 2016, pág. 264

Delillo caminha pelas cidades, de mãos nos bolsos, ensimesmado, de olhos postos no passeio onde grassa a merda de cão. Leio noutro lugar que os animais domésticos superam já os animais selvagens (*), em número e em massa (omite o narrador, por certo, os insectos, nessa assumpção desesperante). Triste humanidade, rendida a uma natureza artificial que ela mesma criou. Homo Deus nos tornámos! Um pesadelo! Há seres humanos em excesso à superfície da Terra e animais domésticos também. O próprio Homem é já um animal doméstico. E ainda há quem defenda a paródia do Humanismo - esse ser prodigioso que é o Homem - mesmo depois de constatar todo mal que o homem (sim, com letra pequena!) faz a si mesmo e toda a destruição que inflige no jardim que lhe foi legado. Sim, venham de lá agora dizer que este discurso apoia a acção de genocidas que se entretêm a erradicar seres humanos da face Terra. Não se trata disso. Para melhorar o mundo, não tenhamos dúvidas, o primeiro passo é erradicar os genocidas.
_______________________________________________________

(*) Yuval Harari, Homo Deus: A Brief History of Tomorrow, Harper Collins Publishers, 2016

domingo, setembro 25, 2016

Nicolaes Ruts

Rembradt, Retrato de Nicolaes Ruts, 1631

Sopa quente e bebidas frescas

Uma contradição mata o seu contrário; as inconsistências [no carácter] existem lado a lado, em resposta a diferentes situações. Como poderia um indivíduo rígido sobreviver num mundo variável? No Inverno, sopa quente; no Verão, bebidas frescas.

Jacques Barzun, Da Alvorada à Decadência, Gradiva, 2003, p. 149.


O Eu é indissociável da sua circunstância. Assim se explicam as inconsistências que preenchem o carácter. Há, no entanto, quem as confunda com contradições, em particular quando ajuíza sem atender às circunstâncias que rodeiam as acções.

Pelas acções se conhece o carácter, contudo as circunstâncias que nelas influem não são despiciendas e devem também pesar numa avaliação do carácter.

sábado, setembro 24, 2016

Em alta


Em Dortmund mora um prodígio: Raphael Guerreiro. Está em alta. 

O defesa joga agora ao ataque e insufla de alma a equipa do Dortmund quando entra em jogo ou quando joga de início. Não é o único, diga-se de passagem, mas quando joga tudo se agita.

Eis a sequência dos últimos resultados do Borussia de Dortmund:

14/09/16       Legia Warszawa     0 - 6   Borussia Dortmund
17/09/16  Borussia Dortmund     6 - 0   Darmstadt
20/09/16                 Wolfsburg     1 - 5   Borussia Dortmund
23/09/16  Borussia Dortmund     3 - 1   Freiburg

Vinte golos marcados em quatro jogos (!), e não estamos a falar de hóquei em patins. Apenas dois golos sofridos.

Neste quatro jogos, Raphael Guerreiro marcou 3 golos e deu outros 3 a marcar (assistências), tendo jogado 262 minutos (apenas em dois dos últimos quatro esteve os 90 minutos em campo). 

No jogo contra o Dalmstadt, o treinador Tuchel deu-se ao luxo de o retirar conjuntamente com Dembelé, aos 63 minutos, para os preservar para o jogo seguinte e para que recebessem o aplauso merecido pela magnífica partida que estavam a realizar (então o Dormund já vencia por 3-0).

No jogo contra o Freiburg, entrou apenas aos 71 minutos: marcou golo aos 90'+1.

Uma verdadeira arma secreta do Dortmund.

É o melhor português emigrante a jogar futebol no momento.
----------

PS - Honra seja feita aos outros magníficos jogadores do Dortmund, muito jovens, que constituem uma verdadeira equipa multinacional: Aubameyang (Gabão), Pulisic (EUA), Piszczek (Polónia), Dembelé (França), Götze (Alemanha), o guarda-redes Bürki (Suíça) entre outros.

sexta-feira, setembro 23, 2016

O Presidente emplastro


Palavra de honra, que foi o que me veio à cabeça quando o vi, esta terça-feira, entre o casal Obama.

O frenético Marcelo está em todas.

De segunda a sexta-feira, ora nos noticiários da rádio (e logo pela manhã!), ora na TV, lá está ele, no boneco. É incontornável.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Colher nos campos do saber

Cícero inventou o conceito de «cultura», ainda hoje válido, ao comparar o cultivo da alma com o cultivo dos campos e, para ele, era óbvio que a literatura era a melhor maneira de cultivar o campo da alma.

Em ambos os campos, o cultivo faz-se porque há a perspectiva de crescimento. Por consequência, ler é como colher nos campos do saber.


Peter Sloterdijk, Morte Aparente no Pensamento, Relógio D’Água, 2014 , pág. 72.

***

Dos distantes campos romanos brotou a palavra “cultura”. Marcus Tullius Cícero (106 a.C. – 43 a.C.) foi quem lhe deu nome. O nome que ainda lhe damos.

quinta-feira, setembro 01, 2016

Fim das férias, início dos queixumes

Acabam as férias e começa Setembro. Começam os queixumes. Faltam magistrados, faltam oficiais de justiça, faltam médicos, faltam enfermeiros, faltam auxiliares de acção educativa, faltam meios, falta isto e falta aquilo…falta dinheiro… Falta tudo! Cada responsável corporativo tem uma visão parcelar do seu sector, ignorando as necessidades dos demais. Nem quer saber disso, não é com ele. Só lhe diz respeito o seu sector. Assim, reivindica sem visão e conhecimento das necessidades de todo o conjunto. Atender positivamente a todas as reivindicações seria o pântano. O governante tem de ter a coragem de dizer não, uma vez que não pode dizer sim a todos. Caso contrário, a sociedade torna-se ingovernável.  

Os queixumes tinham ido de férias, os queixumes regressaram. Quando os oiço, vindos de férias, apetece mandá-los de férias outra vez. Para bem longe.

Etiquetas