Tempo suspenso
Cavalo suspenso
Terreiro suspenso
Vivemos num tempo suspenso,
à espera de outro tempo.
Numa urgência, tudo o que soa a demora exaspera.
Esperar por um consenso num mar de divergências para, por fim, tomar uma decisão, pode revelar-se, em certas circunstâncias, fatal.
Quando chega, finalmente, o momento da decisão, uma vez obtido o consenso, já as circunstâncias mudaram, já o barco afundou, já a floresta ardeu...O momento em que a decisão devia ter sido tomada ficou lá atrás.
A obtenção de consensos obriga muitas vezes a demoradas negociações na procura de cedências de parte a parte.
O líder, muitas vezes, decide só. É a ele que cabe a decisão. É a sua responsabilidade. E isto passa-se, principalmente, quando tem de decidir rapidamente.
Nem sempre as decisões procedem de negociações.
Num momento de urgência não há pior do que um líder hesitante entre divergências, um líder que procura a negociação.
Num momento de urgência a acção impõe-se. Exige-se ao líder que assuma as suas responsabilidades nas horas difíceis, nas horas mais sombrias e decida.
Que oiça e que decida, mas não perca tempo a negociar em busca de um consenso.
Primeiro foi a Primavera do nosso descontentamento, depois o
Verão do nosso descontentamento, ao qual se seguiu o Outono do nosso
descontentamento.
O cinzento e frio Inverno do nosso descontentamento apresenta-se
agora, no Terreiro do Paço, vazio no na sexta-feira sábado passado, cerca das 14:00.
Estamos quase a concluir um ano de descontentamento. Seria bom que concluíssemos mesmo.
Já basta de descontentamento.
Li Wenliang, médico investigado pela polícia chinesa por “espalhar rumores” [o aparecimento de um novo coronavírus], foi obrigado a assinar uma carta em que se comprometia a parar com as suas “actividades ilegais”.
Ironia das ironias. Agora somos nós o Rabo de Peixe da Europa. Até uma missão alemã veio cá ver este estranho e triste fenómeno.
E cá estamos nós em quarentena, confinados, de voos cortados e fronteiras fechadas, não vá esta peçonha safar-se daqui.
Ó Portugal, Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo. Meu remorso, meu remorso de todos nós...
Estou como o O´Neill. Venha o poema dele:
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
Alexandre O'Neill, in 'Feira Cabisbaixa'
Todos os dias se afadigam em transmitir-nos o número de óbitos
e de infectados. Todos os dias os pivots dos telejornais parecem
comprazer-se no sensacionalismo dos números catastróficos, pois juntam à fria
notícia dos números a sua cuidada, ajardinada, trágica narrativa. Muito bem cuidada
ela é, para consumo dos demais, acompanhada com o devido moralismo benfazejo: tenham
medo, muito medo, não vão à praia.
O que dizer mais?
Não há ninguém que pense fora da caixa neste país?!
Quantas pessoas foram vacinadas contra o COVID-19 em
Portugal, neste dia?
Falta esse dado estatístico ao lado do número de óbitos e de
infectados. E não é só em Portugal que ele falta.
Ousem! Sejam originais!
Quantas pessoas foram vacinadas contra o COVID-19 em
Portugal, neste dia?
Se há luz ao fundo do túnel, porque não lembrá-lo todos os
dias? É aí que reside a esperança.
Ou acredita-se que por este andar a imunidade de grupo
chegará primeiro?
Quantas pessoas foram vacinadas contra o COVID-19 em
Portugal, neste dia?
Gostaríamos que Direcção-Geral de Saúde, nos seus relatórios diários de situação, divulgassem também esse número.
Deixemos a amargura, o ressentimento.
Libertemo-nos do tormento.
Que pare o sofrimento.
As razões que acalento?!
O silêncio e a paz.
Não se entende como há pessoas que, em caso de dúvida, e tratando-se de vidas humanas, ainda assim defendam avançar em vez de esperar, como manda a precaução.
Certos liberalóides que nem sabem o que uma escola é, opinaram
com toda a ligeireza, que deveriam permanecer abertas, na dúvida em relação ao
mal que tal decisão pudesse causar a quem nela trabalha, estuda, aos seus
familiares e à sociedade inteira. Como se na escola não laborasse um dos grupos
profissionais mais envelhecidos de todos, constituído por muitos e velhos
professores, para não falar dos excelentes auxiliares de acção educativa, afadigados
a toda a hora, a limpar tampos de mesas, cadeiras, teclados de computadores,
baldes do lixo e retretes e a lembrar aos alunos que cubram o rosto com a
máscara, ou a desinfectar-lhes as mãos à entrada da escola. Como se os novos
professores vivessem como monges, em missão e em mosteiros, isolados das suas
famílias e dos seus velhos. Como se as escolas fossem só constituídas por grupos
de alunos e crianças. E como se esses alunos estivessem sempre sentados a dois
metros uns dos outros. Não, não estão. Estão de ombro com ombro, lado a lado,
na mesma carteira, que a lei permite, muitas vezes numa sala abarracada e
apinhada, numa escola não intervencionada, e não no colégio de elite frequentado
pelos filhos deles, que forma elites e não ralés.
Liberalóides que se baseiam nas “sérias dúvidas sobre a
vantagem de tal decisão”, dizem eles, para sustentarem a defesa de uma escola
aberta, que assim é que o mundo avança. Nem que seja para o abismo, dizemos nós,
ou em direcção à doença.
Vantagem!?
A dúvida aqui era se a decisão de manter as escolas abertas poderia
levar ou não, facilmente, à contaminação e morte de mais alguns. O resto são balelas.
Uma dúvida destas não é para brincadeiras. O que manda o
princípio da precaução? Se há dúvidas relativas ao passo que se vai dar quanto
aos elevados danos que o mesmo possa causar, então mais vale estacar e aguardar.
Houve quem sugerisse atempadamente que se prolongasse a
interrupção das actividades lectivas do Natal por mais uma ou duas semanas. Não lhe deram ouvidos. Havia
que causar uma boa impressão, afinal éramos nós os que iriamos presidir,
vaidosamente, ao Conselho da União Europeia. Inchados e impantes anfitriões. Havia
que dar uma boa imagem aos dignatários estrangeiros que nos viriam visitar na
inauguração – um país de sucesso. Alguns saíram de cá contaminados e apoquentados.
Lá foram para o isolamento profiláctico nos seus países natais, acabrunhados.
A casa dos vizinhos (Reino Unido, França, Alemanha, Espanha
entre outros) já ardia e nós nem mangueira nem extintor. Não nos preparámos
atempadamente.
Estirpes inglesa, da África do Sul, do Brasil, anunciadas
aos quatro ventos e nós aguardando que por cá chegasse a inglesa para tomarmos
uma decisão. Que idiotas! Afinal a culpa é do Natal. Pois. Os portugueses
portaram-se mal, dizem eles. Fracos os governantes que culpam os governados. Correm
agora para as vacinas, os políticos.
Esta é a realidade: os decisores não foram prescientes, nem previdentes
e o princípio da precaução veio tarde – o passo já tinha sido por eles dado. Agora
deram o passo atrás, alegando exactamente, o princípio da precaução. Já
fecharam os corredores aéreos com o Reino Unido? Parece que é hoje. O Reino
Unido já fechou os corredores aéreos para Portugal há algum tempo. Prescientes.
O nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros reclamou outra vez, como sempre, da pronta
decisão inglesa. Fechámos os corredores aéreos para o Brasil? Fechámos????
Esta é a realidade: não foram proactivos. Foram sempre,
sempre, reactivos. Reagiram sempre, sempre por arrasto. E desde Março que é
assim.
Culpam agora portugueses, que se portaram mal. Que foram passear para a praia nos gélidos dias de Janeiro. Não gozem connosco.
E eis-nos agora aqui, no topo do mundo – “o país do mundo com mais mortes por milhão de habitantes (e continua o 1.º em novos casos)” anuncia o Expresso, a 22 de Janeiro. Aqui.
Tenham vergonha!