Há momentos em que o Kitsch se pode tornar uma coisa nauseabunda e é difícil imaginar que a própria hierarquia da Igreja não reconheça e não se sinta incomodada por ela.
António Guerreiro
"Deus ex Media", Ipsilon, Público, 11 de Agosto de 2023
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O que é a Igreja afinal, senão a primeira multinacional do mundo, com as suas sucursais implantadas desde cedo em todos os continentes, à excepção da Antárctida. Os seus serviços religiosos têm de ser promovidos de modo a serem empacotados e vendidos em todo o lado. Vive por isso bem com o kitsch.
Paulatinamente, e só dessa forma, a Igreja, com a sua inércia temporal, vai-se ajustando lentamente à rápida mudança social imposta pelas agendas progressistas. Também ela muda, sob pena de, se não o fizer, não conseguir vender os seus serviços, independentemente da vontade de Cristo (que expulsou os vendilhões, uma espécie de mercadores, do templo). Se a Igreja é a esposa de Cristo, então é uma esposa emancipada e empoderada que não precisa da anuência do marido para ir mais além. Nada que não soubéssemos há muito.
Ninguém pode regressar ao lugar onde já esteve. A cada microssegundo deixamos de ser quem éramos.
A cada microssegundo somos já outro e assim é com todos os lugares. Assim é com o Sol. Ninguém
volta ao que já deixou. Esta é a mensagem da cantiga do pastor.
Pastor
«Ai que ninguém volta
Ao que já deixou
Ninguém larga a grande roda
Ninguém sabe onde é que andou
Ai que ninguém lembra
Nem o que sonhou
Aquele menino canta
A cantiga do pastor»
De
facto, é impossível fugir ao kitsch,
procurando refúgio na religião, quando a própria religião é kitsch. A
«modernização» da Missa católica e do Livro de Oração anglicano foi, na verdade, um processo de kitschificação; e as intenções da arte litúrgica estão,
hoje em dia, contaminadas pela mesma efemeridade. As cerimónias litúrgicas
comuns das igrejas constituem um testemunho confrangedor de que a religião está
a perder a sua orientação puramente divina, e a converter-se ao mundo da
produção em massa.
Roger Scruton (1998)
A Cultura Moderna, Edições
70, 2021 pág. 125 (destaques nossos)
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Hoje
temos uma religião pop, missas pop, Papa pop, bispos pop,
cardeais pop, os portugueses, burgueses até ao tutano, tolentinos &
aguiares. A aparição do Papa, em qualquer lugar, é celebrada como uma
efemeridade, um grande evento de marketing religioso. Esta é a Era do
Mercado, que tomou conta de tudo.
A Inquisição oficializada principalmente a partir da Contra-Reforma
prolonga-se até ao século XIX em Portugal. O Pombalismo terá também essa faceta
inquisitorial bem patente na sua polícia específica, assim como as décadas de
vigilância fascista no século XX, ou, embora com aspectos bem distintos, o Estado
democrático exerce também o controlo quase absoluto da sociedade nos últimos 50
anos.
A Inquisição transformou-se num modelo mental e estruturou de
modo profundo o nosso plano de comportamentos, as dimensões morais e até
judiciais.
João Maurício Brás, O Atraso Português,
Guerra e Paz, pág. 140
Cumpre-se por obediência e medo, na maior parte das vezes
irracional, não por respeito ou por se considerar que seguir determinado
caminho é o mais correcto e eficaz. Mexericos e bisbilhotices, a má-língua no
trabalho e na vizinhança, a pequena calúnia, são vestígios de uma cultura de
resquícios inquisitoriais.
João Maurício Brás, O Atraso Português,
Guerra e Paz, pág. 129
Continuamos a construir
os nossos panópticos sociais sob a égide da governação do Partido Socialista.
Temos agora um Portal da Delação, digo, Portal da Denúncia (procedimento muito socialista e até nacional-socialista ou estalinista).
Maravilhoso mundo
novo. Aos poucos a liberdade e a privacidade vão perdendo território para o
controlo social. Que ideia maravilhosa essa a de os cidadãos controlarem os cidadãos.
Suspeito que
alguns de nós têm no seu DNA um gene mais desenvolvido: o gene inquisitorial.
Em Portugal a Santa Inquisição durou até ao século XIX. Um período tão
prolongado de controlo das ideias não poderia deixar de marcar a genética social e a de muitos portugueses.
Com o Portal da Denúncia, far-se-á da pequena calúnia grande. Como a imagem sugere, o pequeno caluniador tem agora um altifalante para se fazer ouvir. Para nosso bem e com cobertura governamental.
A soberba desta gente. Nem se dão conta. Na sua cabeça o
mundo pode perfeitamente ser dividido em dois, qual novo Tordesilhas. “O mundo
é suficientemente grande para os EUA e a China”. É traçar um meridiano para que
não se atropelem na sua hegemonia sobre os demais. Que grandes que eles são.