sexta-feira, outubro 12, 2007

Epílogo – Resposta a Marx

O que Marx escreveu não se encontra escrito na pedra. Afinal, dividir as sociedades em classes de oprimidos e opressores, não deixa de ser uma forma maniqueísta e simplista de as considerar. A realidade é um pouco mais complexa e é sabido que muitas vezes os oprimidos de hoje, se tornam os opressores de amanhã, ainda que aconteça muitas vezes a um homem, manter a condição de oprimido ou de opressor durante a maior parte da sua vida, senão na sua totalidade. Em cada oprimido há um potencial opressor e vice-versa, e o homem é na verdade lobo do homem, como referia Thomas Hobbes. Talvez essa reviravolta, de oprimido em opressor, ocorra quando o oprimido se apercebe que a maior arma do opressor é a sua própria cabeça (a do oprimido). Por outro lado, que dizer daqueles a quem não cabe nem a condição de oprimido, nem a condição de opressor? Serão esses os homens verdadeiramente livres? Os que nem oprimem nem são oprimidos? Será tal condição sequer possível?

O opressor por sua vez torna-se vítima da sua opressão, muitas vezes sem tomar consciência disso, ou por outras palavras, o opressor é oprimido pela sua própria acção de oprimir. É como refere Steiner: “O carrasco tortura a sua vítima e condena-se desse modo a ser uma eterna vítima.”*

E há ainda outra questão (para dizer a verdade, há muitas questões), que é essa ideia de a religião ser o ópio do povo. Ainda que possamos considerar que assim seja, o mesmo não o poderemos referir relativamente à religiosidade. Pois se religiosidade e religião forem consideradas a mesma coisa, então o homem anda entorpecido na dormência do ópio, desde o momento em que se tornou homem. É que a religiosidade é uma dimensão do ser humano. Ela é apenas o terreno (solo) de onde brotam as religiões. Por isso encontramos religiões por todo o planeta, cada uma com o seu deus ou os seus deuses, paradoxalmente, únicos e omnipresentes. Mas o facto de o homem possuir a religiosidade como uma das suas dimensões, tal não significa que tenha de professar necessariamente uma religião. E se as religiões são formas de apropriação da dimensão religiosa de cada homem visando atingir relações de dominação ou prevalência de uns sobre outros (todas as religiões têm os seus sumo-sacerdotes, xamãs, curandeiros, mediadores entre o mundo de além e o mundo de aquém, supostamente detentores de informação privilegiada, e informação é poder, e daqui à dominação e à opressão são dois passos), a religiosidade inerente a cada homem não é disso que se trata. Sabendo isto, é um erro querer negar a religiosidade potencial e inerente a cada homem, para dessa forma se anularem os efeitos perversos das religiões – um dos quais, dividir os homens, antagonizando posições. O objectivo perene do ecumenismo é a prova das eternas divisões. Ora, nesta questão da religião ser o ópio do povo, confundiu-se a religião com a religiosidade. E assim muitos querem despir a sua religiosidade como quem despe um casaco, como se isso fosse possível, quando a religiosidade lhes está entranhada na sua própria humanidade. É que podemos não professar uma religião, mas não podemos negar a nossa religiosidade.

Marx contudo, foi um verdadeiro filósofo, um cientista social, que, tal como Tocqueville, realizou uma análise certeira à sociedade do seu tempo, e adoptou uma concepção materialista da história que, em grande parte o levou a conclusões acertadas e a projecções que vieram, com efeito a verificar-se, tais como, a globalização alimentada pelo capitalismo insaciável, as causas das crises cíclicas do capitalismo ou as relações sociais e económicas determinadas pelo capitalismo – o sistema vigorante.


(*) – in Ramin Jahanbegloo, Quatro entrevistas com George Steiner, Fenda, pág.63

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