domingo, outubro 19, 2014

Safo

     Charles-Auguste Mengin, Safo, 1867, Manchester Art Gallery

Quando morreres,
hás-de jazer sem que haja no futuro
 memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte
nas rosas de Piéria.
Invisível, andarás a esvoaçar
no Hades, entre os mortos impotentes.

Safo, Lesbos, Séc. VII-VI a.C.
(traduzido por Maria Helena da Roca Pereira, in Hélade)

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Mais de dois mil e quinhentos anos nos separam, imortal Safo.
E poucas foram as vozes femininas desse tempo que chegaram até nós.
Contudo a tua ainda soa - tu, que participaste nas rosas de Piéria - entoando cânticos e declamando poemas às primeiras horas da Aurora.

Sei que ainda percorres descalça as praias de Lesbos com a tua harpa,
enquanto o teu olhar divaga no mar, 
insaciado, insatisfeito, invadido pela saudade.
Transporta um desejo obsessivo de reencontro impossível.
Daí a profunda dor que canta
Por um ardente amor ausente.

Distante. Sempre.

sábado, outubro 18, 2014

Para quem os impostos sobem

Lido hoje no Público:

Uma das tendências internacionais dos últimos anos (e décadas) foi a diminuição da carga fiscal sobre as empresas. Não só se reduziram as taxas de impostos sobre o rendimento das empresas como, por via de acordos internacionais e directivas europeias, se criaram mecanismos que permitiram a redução dos impostos.”

Ricardo Cabral, Público, 18 de Outubro, pág.51.

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Há dias emiti um comentário n' O Insurgente a um post que punha em questão a ideia de estarmos a viver numa época de “[Neo]Liberalismo” - para estes “Testemunhas de Jeová” do liberalismo, fundamentalistas do laisser faire, laisser passer,  o termo “neoliberalismo” é impronunciável, é um “vai de retro Satanás”, daí escreverem o prefixo entre aspas, ou entre parêntesis, ou, neste caso, entre colchetes -, na medida em que os impostos cobrados eram maiores que nunca, ilustrando com um gráfico esse aumento.

Acontece porém que se esqueceram do facto de que existem impostos e impostos, e que, não obstante, no seu conjunto, os impostos tenham aumentado, os que recaem sobre os lucros das empresas, ao invés, têm diminuído, como salienta Ricardo Cabral.

As grandes fortunas, fugidias, foram contempladas por este governo com um perdão fiscal, é bom não esquecer. O IRC é o único imposto que tem diminuído, assim como a TSU. Os impostos sobre os lucros dos bancos e sobre as transacções financeiras (a que me referi como impostos sobre o capital) são irrisórios.

O colossal aumento dos impostos recai principalmente sobre os rendimentos do trabalho.

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Entrar n’ O Insurgente para colocar uma objecção ou uma crítica às ideias daquela gente é como entrar numa congregação de Testemunhas de Jeová para os tentar convencer acerca do erro em que incorrem ao fazerem uma interpretação literal da Bíblia. Aquela gente está cega pela crença ideológica. Só vêem o que querem ver. É uma questão de Fé e não de Razão.

sábado, outubro 11, 2014

A fé do ateu

O agnóstico considera a existência de Deus uma possibilidade. É uma hipótese que não descarta. Para um ateu, Deus não existe. O ateu, por sua vez, crê na inexistência de Deus. É por isso um homem de fé, o ateu.

Quando o “Estado Islâmico” éramos nós

O nosso Estado foi construído contra o Castelhano e contra o Mouro, há quase 900 anos, na Idade Média. As práticas terroristas que hoje condenamos ao Estado Islâmico, e condenamos bem, também nós já as praticámos. Então, os bárbaros éramos nós. Pilhagens, cercos, razias, conquista de territórios à espadeirada, decapitações, eram o “pão nosso de cada dia”, a tal ponto que, perto delas, as atuais práticas terroristas do Estado Islâmico parecem ser coisa de crianças.

Fica um excerto do texto de Martin Page, A Primeira Aldeia Global, relativo ao cerco de cidade de Lisboa (1147), então cidade moura, pelos exércitos de D. Afonso Henriques, auxiliados por cruzados bretões, ingleses, normandos e alemães, entre outros:

«Escreveu no seu relato, o capelão dos cavaleiros normandos: “O ânimo dos nossos homens foi enormemente fortalecido para continuar a lutar contra o inimigo.” Um grupo de cavaleiros, que, entretanto, tinha ido fazer uma incursão a Sintra, acabava de regressar para junto dos seus companheiros de cerco, carregado com o produto das pilhagens.

Enquanto os bretões pescavam na margem sul do Tejo, um grupo de muçulmanos atacou, matando vários deles e fazendo cinco prisioneiros. Como represália, os ingleses organizaram um assalto à margem sul, à cidade de Almada, regressando nessa mesma tarde, com 200 prisioneiros muçulmanos e moçárabes e mais de 80 cabeças cortadas, o que, segundo então afirmaram, só lhes havia custado uma baixa. Empalaram as cabeças em lanças e agitaram-nas por cima das muralhas de Lisboa.

“Vieram ter com os nossos homens, suplicando-lhes que lhes dessem as cabeças que tinham sido cortadas”, acrescenta o capelão cronista. “Tendo-as recebido, voltaram para dentro das muralhas chorando a sua dor. Durante a noite, em quase todas as zonas da cidade, apenas se ouvia a voz da mágoa e o lamento da saudade. A audácia deste feito transformou-nos no pior terror para o inimigo.”»

Martin Page, A Primeira Aldeia Global, 6ª ed, Casa das Letras, 2010, pp. 87-88.

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Em suma, naquela altura os terroristas éramos nós. (Não estamos com isto a querer desculpar os imperdoáveis crimes do Estado Islâmico, mas factos são factos)

Hoje, o Estado Islâmico está a aplicar tácticas medievais de terror que os ocidentais então usavam sem qualquer pudor. Mas estamos no século XXI.

Naquele distante ano do século XII, a cidade sob cerco era Lisboa, hoje é Kobani.

quarta-feira, outubro 08, 2014

O menino é o alvo

Jean Fouquet. Madona e Menino, painel direito do Díptico de Melun. ca. 1450

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Caramba! Um seio prestes a rebentar, e logo no século XV!
Já o menino, tem um ar estranho o menino.
Insuflado de uma alma adulta, perscruta ao colo, carrancudo.
Guarda o alvo seio o menino.
E aponta sub-repticiamente o menino.
E o alvo seio aponta o menino.
O menino é o alvo.

domingo, outubro 05, 2014

Homens que odeiam as viagens

Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos esses anos, muitas vezes acalentei o projecto de começar este livro: a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?  

Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, Edições 70, 1993,p. 11

A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.

O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vive só de mexer-se.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 6ª ed. 2013, 130.

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. «Qualquer estrada», disse Carlyle, «até esta estrada para Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo». Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 6ª ed. 2013, 140.

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Claude Lévi-Strauss e Fernando Pessoa eram dois homens que odiavam as viagens. O primeiro sabia, ou pressentia, que ao fazer das culturas indígenas o objecto da sua dissecação análise, já estaria dessa forma a contaminá-las. O seu olhar inquisidor era também o do explorador científico. Claude Lévi-Strauss sabia muito bem o que se seguiria e para que servia essa actividade científica e exploradora a que se dedicava com minúcia. O Homem lança-se ao conhecimento do Mundo para melhor dominar o Mundo. Primeiro vem a exploração, depois a dominação.


Já para Fernando Pessoa, o universo interior era mais apelativo e encantador do que o universo exterior. Esse apelo soava mais alto, a ponto de ele desvalorizar completamente as deslocações no espaço físico. Para ele as grandes viagens eram as que realizava interiormente, quiçá, embalado pelos copos de aguardente. 

sábado, outubro 04, 2014

O mural apagado


Soube hoje que apagaram este mural do Banksy. Houve quem não percebesse a ironia e se queixasse às autoridades.

Os instalados pombos, racistas, sedentários, ridículos, manifestam-se contra a andorinha errante.

Pois o mural fica também aqui.

Aqui ninguém o apagará.

A paisagem bucólica e o carro

      Banksy, A Paisagem Bucólica e o Carro

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