sábado, maio 23, 2015

Trabalhos e escravidões

Pouco tempo tem havido para escrever nos Trabalhos e os Dias. Os trabalhos têm tomado conta dos dias. Os dias afogam-se em trabalhos que não nos deixam respirar. Qualquer fuga episódica ao trabalho está condenada ao fracasso. Pagam-se caras as fugas com o acumular dos trabalhos aquando do regresso.

São os tempos de uma ideologia para a qual o trabalho é um fim e não um meio. Esta fé incondicional no trabalho como um fim em si mesmo*, no papel da empresa e no crescimento económico como panaceias para a resolução dos problemas sociais é completamente equívoca. Se uma empresa puder realizar a sua produção com dois, não empregará quatro, nem que tenha de sobrecarregar os dois que emprega (Se tal lhe for permitido! E com estes que nos governam, diga-se de passagem, tudo lhes é permitido). Tão simples como isso. E se necessário fá-lo-ão só com um, sobrecarregando-o mais ainda e baixando-lhe o salário, que é um "custo de produção". As empresas não são a Santa Casa da Misericórdia nem a sua vocação é o combate aos problemas sociais. E assim vamos sendo conduzidos à servidão por uma ideologia marcada pela fé cega na Empresa, no empresário e no empreendedorismo que resvala para a exploração do Homem pelo Homem. Esta sim, é a estrada que conduz à servidão. Num extremo, lá está a velha memória da escravatura, as mulheres e crianças das minas de carvão ou nas fábricas inglesas, exploradas por patrões humanos, muito humanos.

***

Alguns papagaios, comentadores do regime, afirmam por aí que o PSD não tem um programa e blá, blá, blá…e que já devia ter e blá, blá, blá… Como se precisasse. Ainda não perceberam ao fim de quatro anos o programa do PSD? Ele é austeridade, redução de funcionários públicos, redução de salários e de pensões, congelamento de carreiras, desestruturação do Estado, retirada do Estado da economia (como se fosse possível colocar o Estado num compartimento estanque, desligado da economia) e a transferência dos seus serviços para os privados (os mercados), as privatizações, a precariedade, etc., etc., etc. Claro que para realizar tudo isto é preciso criar um ambiente de desconfiança em relação aos serviços do Estado. E estes governantes desconfiam do Estado que governam e manifestam-no às claras. A empresa privada realiza melhor, acreditam eles. É o cúmulo.

E eis um dos resultados dantescos desta política: num dos países demograficamente mais velhos do mundo, os jovens foram, e ainda são, obrigados a emigrar em massa. Um desperdício de recursos humanos e dos esforços de uma sociedade que neles investiu, sendo agora outras as sociedades que colhem os frutos desse investimento. Há exemplo maior do que este acerca do que é um mau governo num período de paz?

Enfim, prosseguem os dias afogados em trabalhos. São os trabalhos e os dias dos tempos que correm.

É sábado. Vou trabalhar que o trabalho já se acumula.
_____________________________________________
(*) Aos amantes do trabalho, fiquem sabendo: os nazis tinham a política de extermínio pelo trabalho, a Vernichtung durch Arbeit. O trabalho não era um fim em si mesmo. O trabalho era o fim. O trabalho liberta? Talvez, se não for excessivo, caso contrário, mata.

2 comentários:

  1. O que é verdadeiramente preocupante (para além de passarmos fins-de-semana a trabalhar - eu também sei bem o que é isso...) é que esta "fé incondicional no trabalho e no crescimento económico como panaceias para a resolução dos problemas sociais" é partilhada à esquerda e à direita, o que nos deixa orfãos. De um lado, os que insistem na ladaínha de achar que a Coreia do Norte é uma república "popular e democrática"; que apoiam a ocupação do Tibete pela China porque são "contra o feudalismo"; ou que achincalham o Syriza por este apoiar a legalização da canábis e no nosso parlamento votam ao lado do PSD e do CDS contra o uso livre desta planta - o "haxixe, que adormece a juventude", dizem... (devem preferir o futebol, para andarem mais acordadinhos...). Destes, que endeusam o trabalho, até aos hipócitas liberais do centrão e da direita, que se especializaram em fabricar desempregados para depois os perseguirem e maltratarem com requintes de malvadez, uma única causa merece o aplauso partilhado de todos: o "crescimento". Enquanto não houver, à esquerda, quem queira romper com este insano unanimismo e mudar de paradigma, nada feito. Como naquele sábio verso de Borges, "nem outro céu nem outro inferno esperes"...
    Bom descanso

    ResponderEliminar

Etiquetas