«A tragédia de um quarto vazio. A tragédia de encher quatro paredes do
sentido da nossa intimidade. Mas, afinal, bastou abrir a mala, espalhar pelas
cadeiras o pijama e a gabardine, e pôr em cima da mesa a pasta dentífrica e o
pente. Com mais um cobertor na cama e duas toalhas limpas, considerei-me
aninhado. Um homem é pouca coisa. O tacão da bota ou a direcção da risca do
cabelo podem resumi-lo.»
Miguel Torga, Coimbra,
1 de Julho de 1940
Miguel Torga (1967), Diário I, 5ª ed. revista, pág. 154.
***
Não sabia muito acerca de Torga,
nem sei. Por isso a leitura do Diário I
está a ser uma agradável surpresa. Escuto a voz do Torga. Desilude-se numa
viagem à Europa gélida e triste, no Inverno de 1937. “Andar mais era entristecer
e desanimar mais ainda”, diz ele, ansioso por regressar à Península, enquanto
aguardava na estação de comboio de Bruxelas. A Europa anoitecia e ele, nesse
desencanto, já parecia pressenti-lo. Três anos depois ressoariam as botas da tropa
alemã, em marcha cadenciada, nos Campos Elísios que ele visitou.
A páginas tantas, dou com o Torga
nas prisões. Escreve poemas na cadeia de Leiria e no Aljube, em Lisboa. O Torga
na prisão. Que surpresa! O que teria feito? Estaria a dar consultas aos presos,
tendo ficado por ali? Não há qualquer alusão no Diário I às razões que o levaram à prisão. Só por outras fontes
descubro que esteve mesmo preso por razões políticas. Na prisão, liberta o
espírito em poemas. Nada de prosa. Mas sofre. A prová-lo, o seu primeiro poema
da prisão escrito no Diário:
«EXORTAÇÃO
Meu irmão na distância, homem
Que nesta cama hás-de sofrer:
Que nem a terra nem o céu te domem;
Nenhuma dor te impeça de viver!»
Miguel Torga, Cadeia de Leiria, 30 de Novembro de 1939, Diário II, pág. 121.
Muitos outros haveriam de
suceder-lhe nas prisões e Torga já lhes antevia o sofrimento, a tortura e a
dor. Talvez porque o tenha também sentido na pele. Apelava à indomabilidade, à
resistência e à vida dos prisioneiros políticos vindouros.
Grande Torga!





