quinta-feira, maio 07, 2020

A anormal normalidade

Quando se adiciona estas extinções que nós já causámos àquelas que nós estamos para provocar, é claro que a actual onda de extinção está a ultrapassar a colisão do asteróide que erradicou os dinossauros. (…) Assim, a anunciada crise de extinção não é nem uma fantasia histérica, nem simplesmente um risco sério para o futuro. Em vez disso, é um acontecimento que tem vindo a acelerar há cinquenta mil anos e começará a aproximar-se do término no tempo de vida das nossas crianças.

Jared Diamond (1993), O Terceiro Chimpanzé, Círculo de Leitores. 2014. Pág. 492.

Seria agora uma boa hora para mudar o modelo económico que se baseia no crescimento sem fim do Produto Interno Bruto, no consumo perpétuo de recursos naturais e no consumo infinito de mercadorias, a maior parte delas supérfluas. Sim, agora que a globalização regride parou (embora prossiga dentro de momentos). Seria agora boa a hora para repensar este modelo insano de perpétua acumulação do capital, como se a exploração dos recursos naturais, em particular dos recursos naturais vivos, não tivesse fim nem limites. Seria agora uma boa hora para substituir definitivamente os combustíveis fósseis por fontes de energia alternativas não poluentes, não geradoras de gases com efeito de estufa. Parar de vez a extracção e a combustão de petróleo e de carvão. Mas não. Não aprendemos. Na nossa mira continua o crescimento do PIB acima de 0%, custe o que custar. Objectivo supremo.

É preciso parar com isto.

A extrema poluição atmosférica está de regresso às cidades da Ásia Oriental. Em breve regressará também às outras cidades do mundo industrializado, à medida que os homens vão abandonando os seus bunkers.

E assim regressamos à anormal normalidade.

sábado, maio 02, 2020

Homem-vírus



Não é novidade: o comportamento demográfico da população mundial, considerando o seu crescimento natural ao longo dos tempos, com particular destaque após a Revolução Industrial, é idêntico ao comportamento difusivo de um vírus.

De há uns tempos para cá o ser humano assumiu um comportamento infeccioso em relação ao planeta que habita. A continuar assim sabemos o que acontece. Sabemos o que acontece aos corpos que os vírus infectam.

No entanto não se trata aqui de considerar o ser humano um vírus. Este comportamento evolutivo exponencial e viral do Homo sapiens tem origem bem marcada. Não foi sempre assim.

Deveremos regressar à Era Pré-Industrial? Talvez não seja necessário, mas teremos de mudar de vida, caso queiramos ter um planeta com condições para nos suportar. 

Mas não tenhamos dúvidas: nesta refrega entre Homem e Planeta, a prosseguir, é o Homem que terá os dias contados. A Terra, tal como a Vida, encontrará sempre o seu caminho, com o ser humano ou sem ele.

Vejam só: alguns animais selvagens, mal os homens se retiraram para os seus lares-bunkers, invadiram as ruas vazias das cidades. E nem perderam muito tempo.

Que atrevimento!

Enfim, "o tempo e a maré não esperam por homem nenhum" e os animais selvagens também não.

sábado, abril 25, 2020

terça-feira, abril 14, 2020

Prescientes

O Presidente Barack Obama (2014), ao contrário do primata que ocupa actualmente a Casa Branca. Ora vejam só.




E Bill Gates (2015), pois claro. Aqui.

domingo, abril 12, 2020

Examinar é preciso, viver não é preciso


O nosso sistema educativo, que se pretende inclusivo, dizem, tem no final provas exclusivas, provas excludentes, provas selectivas. Um paradoxo. Provas para separar o trigo do joio. Provas para seriar.

No fim do dia, afinal o que conta são os exames. A avaliação, selectiva, sobrepõe-se a tudo o resto, ou seja, a todas as outras funções que a escola tem ou deveria ter, na escala de valores que a sociedade lhe atribui. É assim que a sociedade vê a escola e quanto a isso não há nada a fazer. As outras funções da escola não atingem tal magnitude nessa escala de valorização social, é o que se depreende da decisão de priorizar a reabertura do ensino presencial pelos 11º e 12º anos, logo que seja possível, nas disciplinas em que o exame se exige para entrada no ensino superior. Por outras palavras, a razão magna para reabrir o ensino presencial, no contexto actual, é a necessidade de realizar exames de acesso ao ensino superior.

O que diria Sócrates, o Filósofo, desta nossa concepção de escola?

(De Platão não falo, pois consta que a encimar o portão da Academia estava uma placa com a inscrição “Exigem-se conhecimentos de Matemática!”)

O que diria Agostinho da Silva, que defendia um ensino superior com portas abertas para todos os que nele quisessem entrar?

Os exames são a magna obra da Escola. Examinar é preciso, viver não é preciso.

Lista de Livros da Quarentena


O Amor nos Tempos de Cólera, Gabriel García Márquez
A Peste, Albert Camus
Decameron, Giovanni Boccaccio
A Guerra dos Mundos, H. G. Wells
1984, George Orwell
A Estrada, Cormac McCarthy
Diário do Ano da Peste, Daniel Defoe [por sugestão de Orhan Pamuk]
Os Noivos, Alessandro Manzoni [por sugestão de Orhan Pamuk]
Diário da Peste, Daniel Defoe [por sugestão de Orhan Pamuk]

[Outros livros poderão vir a ser acrescentados à lista]

***

Avisos à navegação:

A Estrada, de Cormac McCarthy, é apocalíptico e deprimente. Ali o homem é lobo do homem. Um livro a evitar nos tempos que correm por gente com propensão para a depressão.

A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, pode ser lido como uma parábola em que os alienígenas somos nós.

1984, de George Orwell, mostra-nos o totalitarismo em que podemos cair ou para onde já alegremente nos encaminhamos. O Grande Irmão, mais conhecido por Big Brother, zelará por nós.

No nosso caso será o Grande Algoritmo.

sexta-feira, abril 10, 2020

Passeio higiénico em retirada


Os passeios higiénicos, esporádicos, converteram-se em rápidas retiradas de meia-hora em direcção ao bunker caseiro. Passeios tristes, passeios vazios pelas ruas quase desertas.

Hoje vi avós à janela no rés-do chão a conversarem com a pequena neta acompanhada pelos pais. O casal e a filha estavam encostados ao automóvel de porta aberta frente à janela. Conviviam assim. Próximos, mas cautelosamente distanciados, a dois metros da janela. Não queriam aproximar-se mais. Havia risos que ecoavam na rua vazia vindos dali. A alegria dos avós, dos pais e da neta. Mais adiante, noutra rua, deparei-me com uma cena idêntica.

Maldito vírus que impõe distâncias entre os entes mais queridos. Maldito vírus que nos tolhe a liberdade.

Vi também papoilas cujas pétalas eram de um vermelho muito vivo. Cresciam junto à base de um sinal de trânsito, no meio do estreito passeio que acompanha a via rápida. Cruzei-me também com um sem-abrigo, um jovem muito envelhecido, encurvado e cabisbaixo. Pressentia-se o sofrimento.

Não me cruzei com mais ninguém.

Regressei a casa.

domingo, abril 05, 2020

Era de paradoxos: um vírus que é um gigante


Todos os dias na TVI, após o Jornal das 8, são agora declamados, contra um fundo negro onde correm as palavras,  os versos do “Monstrengo” da Mensagem de Fernando Pessoa, pela voz do saudoso João Villaret:

        O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo;
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»


9-9-1918
in Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
  - 62.


Um vírus que é um gigante.

Era de paradoxos.

sábado, março 28, 2020

Um estado de sei lá

Parece que estamos a viver dentro de uma história de George Orwell. Tudo isto é demasiado horroroso. Enclausurados em casa com o terror lá fora, e, pior, com o terror cá dentro. O terror a tomar conta de tudo. O medo de virmos a perder os nossos entes mais queridos, mais frágeis e mais velhos. O medo a querer tomar conta de nós como o Grande Irmão a querer zelar por nós. Esse medo parasita, viral.

Vivemos um estado de emergência. Um estado de sei lá.

Um pesadelo orwelliano.

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