sábado, dezembro 31, 2016

O Mediterrâneo, no Porto

Nestes dias caminhei pelo Porto. Não subi à Torre dos Clérigos, não entrei no Majestic, nem na livraria Lello & Irmão. Infelizmente as multidões bloqueavam as entradas. Limitei-me a flanar pela cidade, pela Ribeira e pela Foz. Contemplei o Douro e o Atlântico, mas a maior descoberta foi o Mediterrâneo. Tropecei na obra por acaso, na livraria Bertrand, quando folheava as Odes de Horácio, um livro caríssimo que me é caro, e que merece ser caro, na secção de poesia. O meu olhar desviou-se para outros livros de poesia mais baratos que lá estavam empilhados. Um livro prendeu-me a atenção: ostentava na capa o desenho de uma oliveira. Após vários regressos à livraria, e ao Mediterrâneo, de João Luís Barreto Guimarães, lá adquiri o livro desse poeta nascido no Porto. É que sempre que abria o Mediterrâneo o Mediterrâneo encontrava, em todo o seu esplendor, em todo o seu perfume, em toda a sua história e em toda a sua dor. O Mediterrâneo estava ali.

Valeu a pena vir ao Porto encontrar o Mediterrâneo.

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sexta-feira, dezembro 30, 2016

Grandes aberturas: Criação


Sou cego, mas não sou surdo. E porque a minha desgraça não é completa ontem fui obrigado a ouvir, durante quase seis horas, um auto-intitulado historiador cuja descrição do que os Atenienses gostam de chamar «as Guerras Persas» era um disparate de tal ordem que, se fosse menos velho e tivesse mais privilégios, ter-me-ia levantado do lugar, no Odeon, e escandalizado Atenas inteira com a resposta que lhe daria.

A verdade é que eu sei qual foi a origem das guerras gregas. Ele não. Como poderia sabê-la? Como poderia um Grego saber uma coisa dessas? Passei a maior parte da minha vida na corte da Pérsia e ainda hoje, com setenta e cinco anos, sirvo o Grande Rei, como servi o seu pai, o meu querido amigo Xerxes, e, antes de Xerxes, o pai de Xerxes, um herói conhecido inclusivamente pelos Gregos como Dario, o Grande.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989

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Assim começa a Criação, de Gore Vidal. Com a irritação de Ciro Spitama, filho de uma grega e de um persa, destacado na sua velhice pelo Grande Rei para ser embaixador da Pérsia em Atenas, onde passará os seus últimos dias. Ciro irrita-se com a descrição que ouve contar de Heródoto acerca dos feitos dos Gregos contra os Persas, numa conferência dada pelo historiador no Odeon. Trata-se de disparates e inverdades, a seu ver. Desta forma é dado o tom ao personagem que, ao longo de toda a história narrada ao seu sobrinho, Demócrito, não se coíbe de desmistificar e minimizar os feitos e as obras dos Gregos em relação aos feitos e às obras dos Persas.

Ciro tem razão, se pensarmos bem. Afinal que relatos persas nos chegaram desses encontros e confrontos? Porventura existiu algum Ésquilo ou algum Heródoto persa que enaltecesse as façanhas dos próprios Persas ou nos transmitisse o seu ponto de vista acerca dos factos? Os Persas não tinham as tradições escritas dos Gregos e as suas façanhas eram valorizadas doutra forma, que não a escrita. Por outro lado os historiadores, os poetas e os dramaturgos gregos, inauguraram uma velha tradição que ainda hoje, infelizmente, persiste nas narrativas dos historiadores actuais: a visão parcial dos factos; o enaltecimento dos feitos realizados pelos seus próprios povos. Desse chauvinismo manso não parecem os historiadores conseguir escapar. Aqui aplica-se um velho provérbio: é o olhar do dono que engorda a galinha. Por muito imparciais que tentem ser, os historiadores acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por trair essa intenção de imparcialidade, nalguma frase ou ideia que deixam inadvertidamente transparecer no seu “imparcial” texto.


Ciro Spitama é uma personagem brilhante e marcante no seu sarcasmo em relação aos feitos dos Gregos. Ele questiona e escarnece de uma civilização que por nós é unanimemente aclamada e da qual nos orgulhamos, pois é a raiz da nossa própria civilização. Nesta obra de Gore Vidal a civilização Grega é colocada no seu devido lugar, não só em relação à Persa, mas também em relação à Chinesa e à Hindu.

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P.S. É uma grande obra, esta Criação de Gore Vidal. Perdoa-se-lhe a alocução latina “non sequitur” (pág. 332) no pensamento do persa do séc. V a.C. entre outros, poucos, anacronismos. Não chegam para a beliscar. 

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Os sábios e os políticos deste Mundo

Confúcio era um dos poucos sábios que fazem realmente perguntas para saber o que não sabem. Regra geral, os sábios deste Mundo preferem prender o ouvinte com perguntas cuidadosamente preparadas tendo em vista obter respostas que reflictam as opiniões imutáveis do sábio.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 477

Felizmente – ou infelizmente – o homem público acaba sempre por se confundir com o povo que dirige. Quando o general Péricles pensa em Atenas, está a pensar em si próprio. Quando ajuda a primeira, ajuda o segundo.


Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 602

segunda-feira, dezembro 26, 2016

O fim de toda a educação

Sabemos já por Pascal e Montaigne que o fim de toda a educação consiste em tornar-nos capazes de estarmos sentados num quarto em silêncio. Ora, noventa por cento dos jovens, segundo as estatísticas já não são capazes de ler sem ouvir música ou espreitar de relance a televisão.

George Steiner, Quatro Entrevistas com George Steiner (por Ramin Jahanbegloo),  Fenda, 2006, pág. 90. (destaques nossos)

domingo, dezembro 25, 2016

A morte em fuga, à sua frente

Num Domingo, no Montesinho, cedo pela manhã, 
Caminhava um octogenário à beira de um caminho.
Lento e determinado, transportava uma gadanha.

E assim, sem o saber,  afugentava a própria morte
com as suas próprias armas. 

sábado, dezembro 24, 2016

Feliz Natal

Caravaggio, Madonna dei Palafrenieri, 1606

Feliz Natal,

P'ra esconjurar o Mal.

A triste grandeza

Trump e Putin falam de novas corridas ao armamento. Um atreve-se a dizer que o mundo precisa da hegemonia das duas nações porque entregue a si mesmo é a loucura que se vê. Uma piada com certeza. Nenhum fala da necessária corrida ao desarmamento do mundo.

EUA e Rússia querem ser os patronos do mundo. Os novos moralizadores. Adivinham-se novos tratados das Tordesilhas. Dividir para reinar. Parece que irão reavivar este velho lema nos próximos tempos. Mas não é de estranhar que os líderes das velhas superpotências sonhem com os tempos áureos após 1945, quando o mundo as olhava com temerosa veneração. Na verdade sentem que o tapete lhes está a ser puxado debaixo dos pés. Estão a fugir para a frente.

É preciso tornar os EUA grandes novamente, disse Trump. A Rússia já persegue esse desígnio há algum tempo, em relação a si própria - é o sonho de Putin. Infelizmente, Putin e Trump, parecem não ter outros argumentos para defender a sua grandeza para além dos que assentam na ponta das suas armas. É uma triste grandeza.

Imagens dos tempos da grandeza americana.
(Não se colocaram aqui imagens dos tempos da grandeza russa, mas são do mesmo jaez)

sexta-feira, dezembro 23, 2016

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Os ocupantes que têm logo à partida o objectivo de dominar e explorar criam inevitavelmente um inferno à superfície da Terra.


Norman Davies, A Europa em Guerra, 1939 - 1945, Edições 70, pág. 323

sexta-feira, dezembro 16, 2016

C.B.


O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
 Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Charles Baudelaire, As Flores do Mal

sábado, dezembro 10, 2016

Dívida pública: a cobardia nacional.

A dívida e o crédito são formas de transferir para o futuro pagamentos a realizar pelas despesas do presente. Com uma dívida pública desta magnitude os portugueses do presente comprometem irremediavelmente os portugueses do futuro: os seus filhos e os seus netos, os não nascidos, os que não podem defender-se e os que não votam. Todos eles encontram-se já condenados ao pagamento dos desvarios do presente, e nem o sabem.

terça-feira, dezembro 06, 2016

O Futuro

Seria lindo que se tivesse realizado o sonho de vivermos num mundo sem fome, com diferenças materiais e sociais menos gritantes. Mas os profetas que no-lo prometeram, e se fizeram pastores do rebanho, foram mais prontos a pegar o cajado e a chamar a si os benefícios. De forma que a revolução anunciada não veio e jamais virá. Os abastados terão os meios para partir e colonizar novos e mais confortáveis planetas, abandonando neste a massa que lentamente irá apodrecendo, afogada na sua própria sujidade.

Rentes de Carvalho, A Ira de Deus sobre a Europa, Quetzal, pág. 137

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Uma espécie de Elysium.


domingo, dezembro 04, 2016

Respeito

Recuso odiar o meu semelhante, discriminá-lo, suspeitá-lo, ameaçá-lo. Importa-me pouco em que divindade acredita, e nada me interessam os seus hábitos e rituais. Mas dele espero reciprocidade no respeito que lhe tenho e na dignidade que lhe reconheço.

Rentes de Carvalho, A Ira de Deus sobre a Europa, Quetzal, 2016, pág. 241.

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Nada de confusões1.

O respeito vale mais, muito mais, do que a simples tolerância.

O assunto já aqui foi abordado.

Um excelente livro - A Ira de Deus sobre a Europa - e uma excelente análise, a de Rentes, sobre a mudança num país sito no coração da Europa, e sobre o futuro deste continente e quiçá do mundo.

Ainda voltaremos a falar dele.

E, diga-se de passagem, uma excelente capa.

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(1) - A Ira de Rentes, está longe de ser uma imprecação contra o "politicamente correcto" ou contra o multiculturalismo. 

Versões pindéricas

As imprecações contra o “politicamente correcto” e o multiculturalismo são versões pindéricas de uma cultura de extrema-direita.

António Guerreiro, "A História Gosta de se Citar", Público, 25 de Novembro de 2016

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