sábado, abril 26, 2008

A desconstrução da memória pela abolição da memorização

Com a abolição da memorização do ensino, os reformadores acabaram por atirar fora a "água da banheira com o bébé lá dentro". Muito do que era memorizado no ensino tradicional, concordamos, pouco valor prático tinha, como por exemplo, conhecer todas as estações de comboio e apeadeiros, contudo passou-se do 80 para o 8. O resultado destas reformas faz-se sentir na qualidade do ensino, que perde rigor, e na qualidade da aprendizagem, que perde profundidade. Queixa-se também do facto o professor Shwanitz entre outros professores. É uma evidência notada por muitos académicos, esses que frequentam os mares onde vão desaguar os rios de alunos vindos dos níveis inferiores.
Refere Shwanitz:

A grande narrativa da nossa História é o esqueleto em que inserimos todos os outros conhecimentos: o nosso saber cultural encontra-se ordenado por critérios históricos, e não sistemáticos. E esta esquematização da História opera através da cronologia. Por tudo isto, é necessário termos uma ideia aproximada do esqueleto temporal.

Para tal, temos de esquecer a imbecilidade com que os reformadores do ensino entrecortaram a ordem cronológica enquanto fio condutor do ensino da História, tendo-a substituído por escombros desconexos como unidades de ensino sobre «o castelo medieval» ou «o cultivo de arroz no Vietname». Ao protestar-se contra a memorização de datas deu-se a conhecer a perda definitiva do juízo: as datas não são simples números, mas pontos de referência no espaço e no tempo, marcações para o ordenamento de períodos, bóias no mar de acontecimentos, placas de sinalização iluminadas na noite que desde já ordenam a caminhada da História. Quem se envolve em polémicas contra a cronologia é tão maluco como alguém que faça da abolição das tábuas das estantes para livros a tarefa da sua vida. No entanto foi precisamente isso que os reformadores do ensino fizeram. Deste modo, os alunos perderam em grande medida o sentido para a História, nunca tendo adquirido a sensibilidade para a «índole temporal» da História.

Schwanitz, Dietrich, CulturaTudo o que é preciso saber, Dom Quixote, 4ª edição. Lisboa, 2005, página 31.
Então, em relação ao 25 de Abril e ao desconhecimento de alguns jovens dos detalhes dos factos, em que ficamos? É verdade que os jovens poderiam e deveriam estar mais informados acerca dos detalhes dos factos, e talvez a maioria só venha a saber o que realmente a liberdade é, se esta um dia, por infelicidade, lhes for retirada, dado que vivem nela, porém muitos, estamos certos, acompanham os esforços dos mais velhos que tiveram de lutar pela liberdade e indagam-se no seu íntimo, acerca das razões de tanta comemoração, procurando respostas. Porque a curiosidade faz parte da sua natureza.
Mas o tempo encarregar-se-á do esquecimento, mesmo contra a vontade dos homens.
Mas então nessa altura, teremos vivido.
*****
Voltarei à questão da importância da memória na Educação. E trarei Steiner comigo. Até breve.

O cravo na lapela

Existem formas subtis de desvalorização de um feito histórico, como o 25 de Abril, por exemplo, no discurso e na postura dos que dizem, surpreendentemente, valorizá-lo . Com toda a subtileza no discurso, é possível fazer parecer à populaça que se valoriza tal realização histórica, quando na realidade, no fundo, no mais profundo do ser, se a abomina.
Quando se salienta o desconhecimento da juventude (que tipo de desconhecimento e que tipo de juventude?), em vez de alguma juventude, para os factos ocorridos, mais não se está a dizer de que se trata basicamente, de uma realização que já é coisa do passado, pois que, nem os jovens se identificam com ela, não a comemoram, não a vivem. Como poderia ser doutra forma, se desconhecem a origem da Liberdade? O facto já passou à história portanto. Ou deverá passar na óptica do discursante.
Por outro lado, o valor de determinados símbolos e da sua utilização adequada nos momentos comemorativos, em particular pelos mais altos representantes da nação, na qual se inclui o discursante, é fundamental até como um acto pedagógico de adesão aos ideais que o símbolo representa: a Liberdade, a Democracia, o Desenvolvimento, a Solidariedade, etc.
O discurso e o acto são reveladores de pensamentos e de sentimentos. Mas nem sempre os verdadeiros sentimentos e pensamentos são revelados claramente no discurso. Por outras palavras, nem sempre se diz o que se pensa, nem sempre se pensa o que se diz.
Portanto pergunto, muito singelamente:
Onde está o seu cravo na lapela?

sexta-feira, abril 25, 2008

A falência da memória, mais uma vez

Surpreendem-se porque os jovens desconhecem o passado, em particular o que nos é mais próximo?! A falência da memória é um dos problemas mais diagnosticados nos sistemas educativos dos países ocidentais. Não é um problema da História, mas da desvalorização da memória e da memorização enquanto processo de ensino e de aprendizagem. Não existe educação sem memória. A História, a Geografia e outras ciências sociais fundamentais na formação do Homem, têm sido progressivamente remetidas para as margens dos currículos, cada vez mais preenchidos por “tralha pedagógica”, como as áreas curriculares não disciplinares. O jovem estudante superprotegido, super mimado nas sociedades ocidentais (talvez porque a população esteja a envelhecer e os jovens escasseiem, quem sabe), tem de ser acompanhado no seu estudo, qual aleijado mental, através de um Estudo Acompanhado. Antes vigorava o estudo desacompanhado. O jovem tinha de aprender por si próprio a ser autónomo, responsável e disciplinado nos seus hábitos, facto que não obscurecia necessariamente a sua salutar irreverência.

A Área de Projecto, outra novidade introduzida nos currículos, talvez por aqueles que saltitam de contentes, cada vez que ouvem no ar a palavra “projecto”, encontra-se à margem das disciplinas, contra as intenções iniciais de quem a criou (é uma área não disciplinar e não poderia acabar de outra forma). Os projectos a realizar deveriam ocorrer dentro de cada área do conhecimento ou no seio de cada disciplina, se assim conviesse, ou de acordo com as aspirações de professores e alunos – nunca numa Área de Projecto imposta. As disciplinas, na verdade, já são projectos em si que visam a formação dos alunos. E esse é o verdadeiro projecto.

Mas a falência da memória não é a falência da História, é a falência de uma sociedade e de uma cultura que não soube organizar-se para educar os seus jovens.

quinta-feira, março 27, 2008

Platero

ASNOGRAFIA*

Leio num dicionário: «Asnografia: s.f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno».

Pobre asno! Tão bom, tão nobre, tão arguto, como tu és! Ironicamente…Porquê? Nem uma descrição séria mereces, tu, cuja descrição certa seria um conto de primavera? Se até ao homem que é bom se deveria chamar asno! Ironicamente…De ti, tão intelectual, amigo do velho e da criança, do arroio e da borboleta, do sol e do cão, da flor e da lua, paciente e reflectido, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados…

Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com os grandes olhos brilhantes, de uma branda dureza, onde brilha o sol, pequenito e chispeante num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeça idílica soubesse que lhe faço justiça, que eu sou melhor do que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!

E escrevi à margem do livro: «Asnografia: s.f.: deve dizer-se com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve Dicionários»


Juan Ramón Jiménez

(*) in Trocar de Rosa, do saudoso poeta Eugénio de Andrade, que traduziu e me deu a conhecer Juan Ramón Jiménez.

quarta-feira, março 26, 2008

A solução americana

A história e a cultura dos Estados Unidos estão a ser usadas para criar tipos ideais que apontam o futuro às gentes de todo o mundo no que respeita a «raça» e a racismo. Os modelos derivados do caso norte-americano são propostos como portadores de um equilíbrio desejável entre diferentes versões étnicas, cívicas e separáveis como unidades discretas do nacionalismo. As tecnologias raciais dos Estados Unidos – a sua política identitária, a acção afirmativa e o profiling – são exportadas como solução pronta a usar para os problemas gerados pelo racismo.

Gilroy, Paul, “Multicultura e Convivialidade na Europa Pós-Colonial” in A Urgência da Teoria, Editora Tinta da China, págs. 174-175

A difusão mundial no modelo norte-americano já se iniciou há muito tempo pela principal indústria difusora de cultura dos Estados Unidos, a indústria de Hollywood e das séries televisivas. É um imperativo que muitos filmes e séries televisivas, como Perdidos, Anatomia de Grey, entre outras, apresentem um elenco multi-étnico, multi-cultural, multi-racial. Subjazem no entanto realidades mais duras como uma hierarquia racial que perdura e ressentimentos que por vezes afloram em epifenómenos, como o do discurso do pastor Jeremiah Wright que apoia Obama, ou quando uma população pobre predominantemente negra, fica presa e abandonada à sua sorte, numa cidade como Nova Orleães ao ser assolada por um furacão.

segunda-feira, março 24, 2008

Lá, onde o Douro se afunda...

Lá, nas altas escarpas onde os grifos nidificam e o Douro se afunda, sopra um vento seco e gélido ao entardecer. Paradoxalmente, em Portugal, conseguimos estar longe de Portugal. Sentamo-nos em silêncio numa rocha e escutamos o rumor das águas que em pequenas cascatas, entre amieiros e salgueiros, se dirigem do pequeno tributário para o rio principal e deste para o mar longínquo. Subimos a sinuosa calçada romana de Alpajares até ao castro, e lá do alto, alongámos o olhar. A paisagem é deslumbrante. Posteriormente aos romanos chamaram à calçada, “Calçada do Diabo”, facto que atesta o retrocesso civilizacional dos povos que lhes sucederam. A calçada foi obra de homens. Homens práticos e organizados, sem dúvida. Obra de romanos.

A morte de Deus

Para dizer a verdade, Deus morreu para poucos, muito poucos. Por certo, morreu para alguns iluminados dos nossos tempos, que muito sabem de Deus e dos homens. Deus morreu, afirmam com veemência, mas não se apercebem realmente, que foram eles que morreram para Deus. Se não, que percorram o mundo, não só o Ocidente, e questionem os homens acerca de Deus e da Sua certa morte. Que oiçam atentamente as respostas. Que viajem por África, pela América Latina, pela Ásia e também, porque não, que percorram as aldeias e vilas da Europa e falem com os homens acerca da morte de Deus.

O século XX foi chão fértil para uma ideia com raízes nos dois séculos precedentes, ideia essa que floresceu no jardim de alguns e que se fundou no fim do Absoluto. A relatividade na Física liga-se ao relativismo na Filosofia e nas Ciências Sociais. Tudo é relativo. Até o Absoluto se tornou relativo. Relativismo cultural... O fim das verdades absolutas… O fim dos axiomas... Uma contradição nos seus termos. Abomina-se, nalguns círculos intelectuais, o Absoluto.

Mas sem referenciais absolutos, sem referências, o Homem perde-se na dúvida. Até Descartes que tudo colocou em metódica dúvida teve de encontrar uma certeza, uma evidência que servisse de suporte a toda a sua estrutura filosófica: e a única certeza a que chegou foi a de que duvidava, ou que pensava que duvidava. Mas como diz Ortega y Gasset, a questão não dever ser “Eu penso logo existo”, mas sim, “Eu existo”.

O Homem para viver neste mundo precisa de referenciais, referências absolutas, caso contrário perde-se. O relativismo é o Caos.

Pois bem, Deus morreu, dizem-nos esses sábios iluminados. Aceitemos. Face a essa morte anunciada aos quatro ventos, o que têm agora a propor-nos? O vazio? O desespero? O Caos?

É que não basta proclamar assim sem mais a morte de Deus. Isso é fácil. É desistir da ideia de Deus. É cessar de O procurar.

Às vezes somos demasiado cegos às evidências que nos rodeiam. Não vemos o que é demasiado evidente, da mesma forma que não vemos o ar que respiramos ou sentimos o solo que pisamos, mesmo por baixo da sola dos nossos sapatos.

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